A partir do início do século XX, num contexto de mercados protegidos, o “modelo Ford” dominou a economia mundial. Postulava que o enriquecimento, relativo, dos assalariados e a garantia do seu emprego lhes permitia serem bons clientes da indústria – automóvel ou outra – a qual poderia, portanto, escoar sem dificuldade uma produção crescente. Construído sobre os pilares do comércio livre, da flexibilidade do trabalho e das remunerações medíocres, o “modelo Wal-Mart” parece ser o exacto oposto do anterior. Por um lado, o distribuidor impõe a sua lei ao produtor, particularmente nos países pobres [1]; por outro, o abaixamento do seu poder de compra incita os consumidores a fazerem as suas compras nos hipermercados que, depois de terem esmagado os salários, esmagam os preços. Tudo estaria a correr bem para a Wal-Mart se, nos Estados Unidos e noutros lugares, não tivesse surgido um movimento popular decidido a contrariar a sua expansão e a pôr em causa o “modelo” que a multinacional gostaria de generalizar por todo o mundo.
Na altura em que Émile Zola dava os últimos retoques no seu romance Au Bonheur des dames (1883), nos Estados Unidos já tinham surgido autênticas cadeias de grandes lojas. Com efeito, quando os grandes armazéns Le Bon Marché, Le Louvre, La Samaritaine ou Le Printemps eram ainda um fenómeno tipicamente parisiense, a Woolworth, criada em 1879 em Lancaster, na Pensilvânia, tinha já, em 1900, 59 grandes armazéns. Cerca de vinte anos mais tarde, as rádios locais transmitiram uma mensagem de resistência a estes grandes monstros comerciais devoradores da concorrência, clamando, por exemplo: «Povo da América, acorda! É possível derrubar estas cadeias de armazéns»! [2]
Um século mais tarde, o advento do mastodonte Wal-Mart provocou a falência de dezenas de milhares de lojas, fornecedores e empresas subsidiárias de todo o género. Um exemplo eloquente é o que se passou no Iowa. Segundo um estudo levado a cabo pelo professor de economia Ken Stone, da Universidade do Iowa, a implantação em massa de armazéns Wal-Mart causou o encerramento de 7326 lojas neste pequeno Estado, entre 1983 e 1993 [3]. A agressividade desta marca pode avaliar-se pelo seguinte excerto do número de Outubro de 1996 da revista Wal-Mart Today, destinada aos “associados” da empresa, em que o vice‑presidente da multinacional, Tom Coughlin, declara: «Na Wal-Mart, nós somos negociantes de poeira. A concorrência é atirada ao chão e tem de lamber a poeira. Literalmente.» [4]
Acontece também com frequência que a própria Wal-Mart decide encerrar os seus centros comerciais, as famosas “caixas de sapatos” (referência à forma dos edifícios), que pululam mas que a empresa não se coíbe de abandonar por todo o país. Em 2004, a Wal-Mart apoderou-se de uns 400 destes shopping malls, encerrando depois todos esses estabelecimentos – correspondentes a uma superfície total de 8,54 milhões de metros quadrados – por serem «muito pequenos» ou «insuficientemente rentáveis»! Todas estas ocorrências, juntando-se à interminável lista das infâmias cometidas pela empresa, têm provocado em todo o país uma reacção de repúdio nas comunidades locais.
UMA PARTICIPAÇÃO ELEITORAL MACIÇA
A primeira grande luta vitoriosa empreendida contra a multinacional foi a ocorrida em Greenfield, no Massachusetts, em 1993, pondo em cena a figura que se tornou o inimigo público número um da Wal‑Mart, Albert Norman. Este homem, uma espécie de “profissional dos grupos de pressão”, age por conta de associações de todo o género e de todas as cores políticas. Depois de inicialmente ter sido um pouco forçado, Norman depressa se apercebeu da desproporção que havia entre a sua cidade de 20.000 habitantes e o “hiper”, com cerca de 40.000 metros quadrados, que tencionava ocupar em Greenfield uma área com mais de trinta hectares, encetando então uma luta que ainda hoje prossegue.
Muitas das implantações de centros comerciais nos Estados Unidos são submetidas a referendos populares, chegando a acontecer que as controvérsias em torno da construção de vastas “caixas de sapatos” nas zonas periféricas das cidades leva mais cidadãos a votar do que as eleições presidenciais. Foi o que aconteceu em Greenfield, em 1993, onde as pessoas votaram em muito maior número do que nas eleições que um ano antes tinham “coroado” Bill Clinton. Este género de consulta democrática é aliás a arma principal das pessoas que se opõem à Wal-Mart.
Albert Norman só aceitou encabeçar a rede associativa local que se opunha ao colosso do Arkansas dez semanas antes da realização do referendo, previsto para 19 de Outubro de 1993. Mas desde logo foi posta em acção uma campanha política bem organizada. A Wal-Mart recorreu a toda a espécie de estratagemas para convencer os eleitores, chegando a fazer chegar às suas caixas do correio várias circulares em que imitava a chancela da autarquia de Greenfield, conferindo assim carácter oficial e respeitável à sua estratégia de marketing político. Por seu turno, Norman apoiou-se nas contribuições financeiras de numerosos comerciantes locais. Contribuições essas anónimas, para que o movimento não se expusesse como uma iniciativa de “interesse corporativo”, segundo a novilíngua utilizada pela Wal-Mart.
A multinacional tentou convencer os indecisos fazendo apelo a associações de tipo astroturf, ou seja, numa tradução forçosamente aproximativa, qualquer coisa como “pessoas da terra que as altas esferas atiram de pára-quedas para a liça”. O objectivo consiste em disfarçar essas pessoas – literalmente – de cidadãos banais, vindos, por exemplo, de uma cidade vizinha para enaltecer os méritos da “vida mais barata todos os dias”, sendo esses “cidadãos” pagos chorudamente por um gabinete de comunicação de Nova Iorque ou Washington. Perante a fortuna que a Wal-Mart gastou em marketing, Albert Norman e os seus apoiantes directos tinham a seu favor um perfeito conhecimento do terreno e o apego dos habitantes a uma comunidade confrontada com intrusos multimilionários, originários do longínquo Arkansas.
Na noite do referendo, 2854 sufrágios opuseram-se à implantação local da Wal-Mart, contra 2845 que lhe eram favoráveis. Os 9 votos de diferença levaram as televisões, jornais e repórteres radiofónicos de todo o país a deslocar-se a Greenfield, cidade de que ninguém até então tinha falado.
Greenfield foi apenas o início de uma longa série de “boicotes preventivos”. Em Eureka, na Califórnia, em 1998, a própria Wal-Mart apelou a um referendo popular, convencida de que podia implantar-se sem oposição no Norte da Califórnia – onde já havia hipermercados Wal-Mart a poucos quilómetros a norte, a leste e a sul de Eureka.
Uma central telefónica contratada pela firma de Bentonville começou a assediar os habitantes de Eureka. Telefonemas feitos muito cedo de manhã tiravam os moradores da cama para lhes fazer perguntas, algumas das quais extremamente insistentes, em particular as que se referiam à oposição à Wal-Mart, à credibilidade dos autarcas e da imprensa ou à personalidade do «comunista» Albert Norman. Uma moradora, Linda Hanrahan, relatou ao jornal local que chegou a receber onze telefonemas por dia. Deficiente, vira‑se obrigada a aumentar a sua dose habitual de calmantes. Mais: estava à espera duma chamada do hospital da cidade, que devia informá-la do estado de saúde de seu pai, que contraíra um cancro e se encontrava em fase terminal. A revelação deste assédio teve o efeito de uma bomba e foi desde logo utilizada pelos opositores. A 23 de Agosto de 1999, 2605 pessoas declararam-se a favor da construção dum centro comercial e 4015 opuseram-se-lhe.
O episódio mais recente destas lutas, e incontestavelmente o mais emblemático, foi o de Inglewood, subúrbio pobre de Los Angeles onde metade da população é negra e outra metade hispânica. Em Inglewood, mais de 60 por cento dos eleitores opuseram-se, em 6 de Abril de 2004, à maior empresa do mundo. A onda de choque esteve à altura da desigualdade das forças e dos meios em presença. A Wal-Mart gastou nessa campanha mais de um milhão de dólares – soma indecente para quem conhece Inglewood –, tendo os seus adversários dispendido 110.000 dólares, principalmente graças aos contributos dos sindicatos, conscientes de que estava em jogo a sua própria sobrevivência, visto dez mil famílias estarem filiadas. Algumas Igrejas opuseram‑se também à instalação da multinacional, mas, em contrapartida, uma histórica instituição negra, a National Association for lhe Advancement of Colored People (NAACP), mostrou-se muito mais passiva. Desde há anos, a Wal‑Mart tem conseguido calar os seus potenciais críticos atribuindo-lhes diversos donativos [5].
RAZÕES PARA A RECUSA
Em princípio, pode parecer estranho que uma população maioritariamente pobre decida recusar as propostas de emprego brandidas pela Wal‑Mart. Para essa recusa contribuiu sem dúvida a fama detestável da empresa, mas Tracy Gray-Barkan, membro da Los Angeles Association for a New Economy (LAANE), dá-nos uma outra explicação: «As pessoas de Inglewood não se opunham forçosamente à Wal-Mart em si mesma. Opunham‑se era à maneira como a empresa queria implantar-se na cidade, sem que a população tivesse o mais leve voto na matéria. Na área já prevista, a Wal-Mart teria criado a sua própria pequena cidade e teria feito tudo quanto lhe apetecesse, quando quisesse e durante o tempo que entendesse. Foi isso que pareceu inaceitável. Na realidade, foi tudo uma questão de falta de respeito.»
Segundo o reverendo Altagracia Perez, «a tarefa mais difícil de realizar foi pedagógica; era preciso mostrar às pessoas que não se lhes pedia que dissessem sim ou não à Wal-Mart, enquanto se ficava à espera de negociar mais tarde as modalidades exactas da sua implantação, mas sim que se estava a dar de mão beijada carta branca à empresa para ela fazer o que quisesse num perímetro muito extenso e em pleno centro da cidade. Mas para passar a haver consciência desse perigo era necessário que se lesse e compreendesse o texto do relatório oficial “04-A”, um documento de 72 páginas que tinha de ser analisado em pormenor com uma população pobre pouco habituada a ler documentos oficiais. Além disso, o relatório estava redigido de tal maneira que podia ser aprovado por maioria simples, mas depois de votado qualquer alteração exigiria uma maioria de dois terços.»
O episódio de Inglewood desmentiu como um açoite algumas ideias feitas relativas à “América de Bush”, encarada como a da Bíblia do “connosco ou contra nós”, das armas de fogo e da cadeira eléctrica. O processo de Inglewood começou por demonstrar que a fraqueza sindical nos Estados Unidos não impede que os opositores saiam vitoriosos de uma contenda, que a apatia dos operários norte-americanos não é coisa que esteja estabelecida para todo o sempre, desmontando igualmente a equação simplificadora entre esfera religiosa e ultraconservadorismo. Porque os que se opuseram à Wal-Mart foram também homens de igreja e de mesquita.
Por último, este episódio desmentiu a ideia de que há sistematicamente um fosso entre os habitantes e os autarcas locais; os moradores de Inglewood sentiram-se escandalizados pelo facto de a Wal-Mart pretender ignorar a decisão tomada pelos representantes do povo no sentido de recusarem a construção dum centro comercial. Inglewood foi o campo de batalha de uma longa guerra contra a Wal-Mart, desta vez vitoriosa [6].
Finalmente, e talvez isto seja ainda mais importante, o caso de Inglewood revelou que os opositores à multinacional e aos seus “preços mais baixos” não provêm todos de classes médias nostálgicas dos pequenos estabelecimentos comerciais de outrora (mom’n’pop stores). Pela primeira vez, a Wal-Mart não conseguiu estigmatizar aqueles a quem chama «elitistas boémios burgueses», que bebem café latte e vinho, que saboreiam queijos importados e que acima de tudo não se sentem seduzidos pela “autenticidade” da Wal-Mart, “nirvana da América profunda” [7]. Milhares de pobres fizeram saber aos media norte-americanos e mundiais que a implantação dum hipermercado Wal-Mart os tornaria ainda mais pobres. E desde então têm-se registado outras vitórias retumbantes – as mais recentes, ocorridas em Setembro de 2005, chamam-se Staughton (no Wisconsin), Avondale (no Arizona) e Miramar (na Florida).
_______
* Docente e investigador da Universidade de Lille III; autor de Une Histoire populaire du boycott (a publicar em 2006).
[1] Jean-Christophe Servant, Mão-de-obra do Sul para firma do Norte, Le Monde diplomatique, Janeiro de 2006.
[2] Sobre todos estes pontos, pode ler-se Bob Ortega, In Sam We Trust: The Untold Story of Sam Walton and How Wal-Mart is Devouring the World, Kogan Page, Londres, 2000, pp. 33-40.
[3] Ler, sobre estes pormenores, Albert Norman, Slam-Dunking Wal-Mart!, Raphel Marketing Editions, Atlantic City, 1999, pp. 20-21.
[4] Ibid., p. 29.
[5] Earl Ofari Hutchinson, The Disappearance of Black Leadership, Middle Passage, Los Angeles, 2000.
[6] Sobre este movimento, consultar: http://www.sprawl-busters.com/.
[7] A respeito de tais alegorias, ler Thomas Frank, Cette Amérique qui vote George W. Bush [ed. brasileira: A América que vota em Bush], e Serge Halimi, Le petit peuple de George W. Bush [ed. brasileira: O povo simplório de Bush], Le Monde diplomatique, respectivamente de Fevereiro de 2004 e de
Olivier Esteves
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/usa/usa128.htm
Na altura em que Émile Zola dava os últimos retoques no seu romance Au Bonheur des dames (1883), nos Estados Unidos já tinham surgido autênticas cadeias de grandes lojas. Com efeito, quando os grandes armazéns Le Bon Marché, Le Louvre, La Samaritaine ou Le Printemps eram ainda um fenómeno tipicamente parisiense, a Woolworth, criada em 1879 em Lancaster, na Pensilvânia, tinha já, em 1900, 59 grandes armazéns. Cerca de vinte anos mais tarde, as rádios locais transmitiram uma mensagem de resistência a estes grandes monstros comerciais devoradores da concorrência, clamando, por exemplo: «Povo da América, acorda! É possível derrubar estas cadeias de armazéns»! [2]
Um século mais tarde, o advento do mastodonte Wal-Mart provocou a falência de dezenas de milhares de lojas, fornecedores e empresas subsidiárias de todo o género. Um exemplo eloquente é o que se passou no Iowa. Segundo um estudo levado a cabo pelo professor de economia Ken Stone, da Universidade do Iowa, a implantação em massa de armazéns Wal-Mart causou o encerramento de 7326 lojas neste pequeno Estado, entre 1983 e 1993 [3]. A agressividade desta marca pode avaliar-se pelo seguinte excerto do número de Outubro de 1996 da revista Wal-Mart Today, destinada aos “associados” da empresa, em que o vice‑presidente da multinacional, Tom Coughlin, declara: «Na Wal-Mart, nós somos negociantes de poeira. A concorrência é atirada ao chão e tem de lamber a poeira. Literalmente.» [4]
Acontece também com frequência que a própria Wal-Mart decide encerrar os seus centros comerciais, as famosas “caixas de sapatos” (referência à forma dos edifícios), que pululam mas que a empresa não se coíbe de abandonar por todo o país. Em 2004, a Wal-Mart apoderou-se de uns 400 destes shopping malls, encerrando depois todos esses estabelecimentos – correspondentes a uma superfície total de 8,54 milhões de metros quadrados – por serem «muito pequenos» ou «insuficientemente rentáveis»! Todas estas ocorrências, juntando-se à interminável lista das infâmias cometidas pela empresa, têm provocado em todo o país uma reacção de repúdio nas comunidades locais.
UMA PARTICIPAÇÃO ELEITORAL MACIÇA
A primeira grande luta vitoriosa empreendida contra a multinacional foi a ocorrida em Greenfield, no Massachusetts, em 1993, pondo em cena a figura que se tornou o inimigo público número um da Wal‑Mart, Albert Norman. Este homem, uma espécie de “profissional dos grupos de pressão”, age por conta de associações de todo o género e de todas as cores políticas. Depois de inicialmente ter sido um pouco forçado, Norman depressa se apercebeu da desproporção que havia entre a sua cidade de 20.000 habitantes e o “hiper”, com cerca de 40.000 metros quadrados, que tencionava ocupar em Greenfield uma área com mais de trinta hectares, encetando então uma luta que ainda hoje prossegue.
Muitas das implantações de centros comerciais nos Estados Unidos são submetidas a referendos populares, chegando a acontecer que as controvérsias em torno da construção de vastas “caixas de sapatos” nas zonas periféricas das cidades leva mais cidadãos a votar do que as eleições presidenciais. Foi o que aconteceu em Greenfield, em 1993, onde as pessoas votaram em muito maior número do que nas eleições que um ano antes tinham “coroado” Bill Clinton. Este género de consulta democrática é aliás a arma principal das pessoas que se opõem à Wal-Mart.
Albert Norman só aceitou encabeçar a rede associativa local que se opunha ao colosso do Arkansas dez semanas antes da realização do referendo, previsto para 19 de Outubro de 1993. Mas desde logo foi posta em acção uma campanha política bem organizada. A Wal-Mart recorreu a toda a espécie de estratagemas para convencer os eleitores, chegando a fazer chegar às suas caixas do correio várias circulares em que imitava a chancela da autarquia de Greenfield, conferindo assim carácter oficial e respeitável à sua estratégia de marketing político. Por seu turno, Norman apoiou-se nas contribuições financeiras de numerosos comerciantes locais. Contribuições essas anónimas, para que o movimento não se expusesse como uma iniciativa de “interesse corporativo”, segundo a novilíngua utilizada pela Wal-Mart.
A multinacional tentou convencer os indecisos fazendo apelo a associações de tipo astroturf, ou seja, numa tradução forçosamente aproximativa, qualquer coisa como “pessoas da terra que as altas esferas atiram de pára-quedas para a liça”. O objectivo consiste em disfarçar essas pessoas – literalmente – de cidadãos banais, vindos, por exemplo, de uma cidade vizinha para enaltecer os méritos da “vida mais barata todos os dias”, sendo esses “cidadãos” pagos chorudamente por um gabinete de comunicação de Nova Iorque ou Washington. Perante a fortuna que a Wal-Mart gastou em marketing, Albert Norman e os seus apoiantes directos tinham a seu favor um perfeito conhecimento do terreno e o apego dos habitantes a uma comunidade confrontada com intrusos multimilionários, originários do longínquo Arkansas.
Na noite do referendo, 2854 sufrágios opuseram-se à implantação local da Wal-Mart, contra 2845 que lhe eram favoráveis. Os 9 votos de diferença levaram as televisões, jornais e repórteres radiofónicos de todo o país a deslocar-se a Greenfield, cidade de que ninguém até então tinha falado.
Greenfield foi apenas o início de uma longa série de “boicotes preventivos”. Em Eureka, na Califórnia, em 1998, a própria Wal-Mart apelou a um referendo popular, convencida de que podia implantar-se sem oposição no Norte da Califórnia – onde já havia hipermercados Wal-Mart a poucos quilómetros a norte, a leste e a sul de Eureka.
Uma central telefónica contratada pela firma de Bentonville começou a assediar os habitantes de Eureka. Telefonemas feitos muito cedo de manhã tiravam os moradores da cama para lhes fazer perguntas, algumas das quais extremamente insistentes, em particular as que se referiam à oposição à Wal-Mart, à credibilidade dos autarcas e da imprensa ou à personalidade do «comunista» Albert Norman. Uma moradora, Linda Hanrahan, relatou ao jornal local que chegou a receber onze telefonemas por dia. Deficiente, vira‑se obrigada a aumentar a sua dose habitual de calmantes. Mais: estava à espera duma chamada do hospital da cidade, que devia informá-la do estado de saúde de seu pai, que contraíra um cancro e se encontrava em fase terminal. A revelação deste assédio teve o efeito de uma bomba e foi desde logo utilizada pelos opositores. A 23 de Agosto de 1999, 2605 pessoas declararam-se a favor da construção dum centro comercial e 4015 opuseram-se-lhe.
O episódio mais recente destas lutas, e incontestavelmente o mais emblemático, foi o de Inglewood, subúrbio pobre de Los Angeles onde metade da população é negra e outra metade hispânica. Em Inglewood, mais de 60 por cento dos eleitores opuseram-se, em 6 de Abril de 2004, à maior empresa do mundo. A onda de choque esteve à altura da desigualdade das forças e dos meios em presença. A Wal-Mart gastou nessa campanha mais de um milhão de dólares – soma indecente para quem conhece Inglewood –, tendo os seus adversários dispendido 110.000 dólares, principalmente graças aos contributos dos sindicatos, conscientes de que estava em jogo a sua própria sobrevivência, visto dez mil famílias estarem filiadas. Algumas Igrejas opuseram‑se também à instalação da multinacional, mas, em contrapartida, uma histórica instituição negra, a National Association for lhe Advancement of Colored People (NAACP), mostrou-se muito mais passiva. Desde há anos, a Wal‑Mart tem conseguido calar os seus potenciais críticos atribuindo-lhes diversos donativos [5].
RAZÕES PARA A RECUSA
Em princípio, pode parecer estranho que uma população maioritariamente pobre decida recusar as propostas de emprego brandidas pela Wal‑Mart. Para essa recusa contribuiu sem dúvida a fama detestável da empresa, mas Tracy Gray-Barkan, membro da Los Angeles Association for a New Economy (LAANE), dá-nos uma outra explicação: «As pessoas de Inglewood não se opunham forçosamente à Wal-Mart em si mesma. Opunham‑se era à maneira como a empresa queria implantar-se na cidade, sem que a população tivesse o mais leve voto na matéria. Na área já prevista, a Wal-Mart teria criado a sua própria pequena cidade e teria feito tudo quanto lhe apetecesse, quando quisesse e durante o tempo que entendesse. Foi isso que pareceu inaceitável. Na realidade, foi tudo uma questão de falta de respeito.»
Segundo o reverendo Altagracia Perez, «a tarefa mais difícil de realizar foi pedagógica; era preciso mostrar às pessoas que não se lhes pedia que dissessem sim ou não à Wal-Mart, enquanto se ficava à espera de negociar mais tarde as modalidades exactas da sua implantação, mas sim que se estava a dar de mão beijada carta branca à empresa para ela fazer o que quisesse num perímetro muito extenso e em pleno centro da cidade. Mas para passar a haver consciência desse perigo era necessário que se lesse e compreendesse o texto do relatório oficial “04-A”, um documento de 72 páginas que tinha de ser analisado em pormenor com uma população pobre pouco habituada a ler documentos oficiais. Além disso, o relatório estava redigido de tal maneira que podia ser aprovado por maioria simples, mas depois de votado qualquer alteração exigiria uma maioria de dois terços.»
O episódio de Inglewood desmentiu como um açoite algumas ideias feitas relativas à “América de Bush”, encarada como a da Bíblia do “connosco ou contra nós”, das armas de fogo e da cadeira eléctrica. O processo de Inglewood começou por demonstrar que a fraqueza sindical nos Estados Unidos não impede que os opositores saiam vitoriosos de uma contenda, que a apatia dos operários norte-americanos não é coisa que esteja estabelecida para todo o sempre, desmontando igualmente a equação simplificadora entre esfera religiosa e ultraconservadorismo. Porque os que se opuseram à Wal-Mart foram também homens de igreja e de mesquita.
Por último, este episódio desmentiu a ideia de que há sistematicamente um fosso entre os habitantes e os autarcas locais; os moradores de Inglewood sentiram-se escandalizados pelo facto de a Wal-Mart pretender ignorar a decisão tomada pelos representantes do povo no sentido de recusarem a construção dum centro comercial. Inglewood foi o campo de batalha de uma longa guerra contra a Wal-Mart, desta vez vitoriosa [6].
Finalmente, e talvez isto seja ainda mais importante, o caso de Inglewood revelou que os opositores à multinacional e aos seus “preços mais baixos” não provêm todos de classes médias nostálgicas dos pequenos estabelecimentos comerciais de outrora (mom’n’pop stores). Pela primeira vez, a Wal-Mart não conseguiu estigmatizar aqueles a quem chama «elitistas boémios burgueses», que bebem café latte e vinho, que saboreiam queijos importados e que acima de tudo não se sentem seduzidos pela “autenticidade” da Wal-Mart, “nirvana da América profunda” [7]. Milhares de pobres fizeram saber aos media norte-americanos e mundiais que a implantação dum hipermercado Wal-Mart os tornaria ainda mais pobres. E desde então têm-se registado outras vitórias retumbantes – as mais recentes, ocorridas em Setembro de 2005, chamam-se Staughton (no Wisconsin), Avondale (no Arizona) e Miramar (na Florida).
_______
* Docente e investigador da Universidade de Lille III; autor de Une Histoire populaire du boycott (a publicar em 2006).
[1] Jean-Christophe Servant, Mão-de-obra do Sul para firma do Norte, Le Monde diplomatique, Janeiro de 2006.
[2] Sobre todos estes pontos, pode ler-se Bob Ortega, In Sam We Trust: The Untold Story of Sam Walton and How Wal-Mart is Devouring the World, Kogan Page, Londres, 2000, pp. 33-40.
[3] Ler, sobre estes pormenores, Albert Norman, Slam-Dunking Wal-Mart!, Raphel Marketing Editions, Atlantic City, 1999, pp. 20-21.
[4] Ibid., p. 29.
[5] Earl Ofari Hutchinson, The Disappearance of Black Leadership, Middle Passage, Los Angeles, 2000.
[6] Sobre este movimento, consultar: http://www.sprawl-busters.com/.
[7] A respeito de tais alegorias, ler Thomas Frank, Cette Amérique qui vote George W. Bush [ed. brasileira: A América que vota em Bush], e Serge Halimi, Le petit peuple de George W. Bush [ed. brasileira: O povo simplório de Bush], Le Monde diplomatique, respectivamente de Fevereiro de 2004 e de
Olivier Esteves
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/usa/usa128.htm
Sem comentários:
Enviar um comentário