Em 1992, o presidente dos Estados Unidos declarou o seguinte: «O êxito da Wal-Mart é o êxito da América». A multinacional da distribuição tornou-se agora a maior empresa do mundo. E o dumping social que pratica – acaba de ser condenada a 172 milhões de dólares de multa por ter recusado aos empregados uma pausa para almoço – está a contaminar a economia ocidental. Assim, em nome da luta contra a Toyota, a General Motors, que anunciou já a supressão de 30.000 empregos, exige aos operários uma diminuição dos salários e aos fornecedores uma redução de preços. A maior empresa de equipamentos americana, a Delphi, queria simplesmente pagar aos assalariados 9,50 dólares por hora em vez dos... 28 dólares actuais.
“Dos andrajos à fortuna”: esta definição ritual do “sonho americano” de mobilidade social tem de andar sempre a desencantar estórias que entretenham a ilusão comum. Depois de John D. Rockfeller, modesto contabilista de Cleveland que aos 31 anos se transformou no mais poderoso empresário mundial do petróleo, depois do californiano Steve Jobs, que saiu da universidade sem diplomas para na sua garagem fundar uma empresa, a Apple, que aos 30 anos o tornou multimilionário, é agora a vez da Wal-Mart, mas em maiores dimensões.
À partida, a Wal-Mart era uma lojinha num dos estados mais pobres do país, o Arkansas; à chegada, um volume de negócios que em 2005 ronda os 310 mil milhões de dólares, uma família em que quatro dos filhos se situam entre os dez indivíduos mais ricos do planeta, uma cadeia de hipermercados que se tornou a maior empresa do mundo – em 2003 ultrapassou a ExxonMobil – e o primeiro empregador privado. As vendas da Wal‑Mart correspondem a 1 CD em cada 5 comprados nos Estados Unidos, a 1 bisnaga de dentífrico em cada 4, a 1 fralda de bebé em cada 3. E, de forma mais significativa, a 2,5 por cento do total do produto nacional bruto norte‑americano [1]! Mais rica e influente que cento e cinquenta países, esta empresa deve o poder que hoje tem às regras que aplicou.
Tendo esta empresa chegado a um tal grau de poderio, não pode espantar-nos que a maior parte das transformações do planeta (económicas, sociais, políticas) tenham tido a sua correspondência – e às vezes também a sua origem, a sua correia de transmissão, o seu acelerador – em Bentonville, no Arkansas, sede da firma. Combater os sindicatos, proceder a deslocalizações, recorrer a uma mão-de-obra superexplorada que a desregulamentação do trabalho e os acordos de comércio livre vão tornando ano após ano mais prolífica: é este o modelo Wal-Mart. Pressionar os fornecedores para os obrigar a comprimir os seus preços comprimindo os salários (ou implantando-se no estrangeiro); tornar as funções indefinidas para favorecer o encadeamento das tarefas laborais e acossar assim qualquer tempo livre, qualquer leve pausa: é este o modelo Wal‑Mart. Construir edifícios medonhos (as “caixas de sapatos”), aprovisionados por um exército de 7100 camiões gigantes da empresa, que circulam e poluem 24 horas por dia, para encher a horas as malas dos milhões de carros alinhados nos imensos parques de estacionamento de quase todas as 5000 grandes superfícies em que a multinacional opera pelo mundo fora: é este o modelo Wal-Mart.
E depois, quando os sindicatos contra-atacam, quando os ecologistas acordam, quando por fim os clientes enxergam aquilo que “os mais baixos preços” lhes andavam a esconder, quando alguns artistas deixam por momentos de se vender para aderir ao movimento popular, quando grupos de cidadãos se opõem à instalação nas suas terras de novos cubos de cimento [2], mais uma vez a Wal-Mart recruta antigos “comunicadores” da Casa Branca, democratas ou republicanos, ordenando-lhes que branqueiem a imagem da empresa e encham os media com as suas explicações [3]. E esses “comunicadores” dirão: a Wal-Mart tornou-se uma empresa “ética”; a sua única preocupação consiste em criar empregos, cujos salários são sem dúvida medíocres, mas mais vale isso do que nada, e os clientes adoram os preços baixos... Acrescentando depois que a busca obstinada de rendimentos conseguiu melhorar a produtividade nacional. E que doravante a empresa passará a defender o meio ambiente, tal como já socorreu as vítimas do furacão Katrina. Exploração, comunicação: é mais um modelo com o cunho da Wal-Mart.
No fundo, como podemos nós espantar-nos realmente? Não é por acaso que um negócio se transforma na maior empresa do mundo; não é só porque quarenta anos antes o fundador, Sam Walton (falecido em Abril de 1992, dias depois de lhe ter sido entregue pelo presidente George Herbert Bush uma das mais altas distinções americanas), teve a luminosa ideia de vender melancias no passeio da sua loja e de ao mesmo tempo oferecer aos filhos dos seus clientes passeios de burro no parque de estacionamento [4].
BENEFICIAR DO COMÉRCIO LIVRE
O primeiro Wal-Mart abriu em 1962, em Rogers, no Arkansas, uma zona rural e abandonada. Nove anos depois a empresa alargou a sua esfera de influência a cinco estados. Os primeiros mercados que ela assegurou, de baixa densidade, eram ignorados pelos grandes distribuidores; foi ali que a Wal-Mart assentou o seu monopólio, antes de se expandir em outras paragens. Privilegiou a periferia dos centros urbanos para tirar proveito, ao mesmo tempo, da clientela das cidades e do baixo preço dos terrenos. Em 1991, antecipando o Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA) que o presidente Bill Clinton, antigo governador do Arkansas, fará ratificar dois anos mais tarde [5], o Pequeno Polegar de Bentonville internacionalizou-se, instalando-se no México. Em 1994 seguiu-se o Canadá. Depois, o Brasil e a Argentina (em 1995), a China (em 1996), a Alemanha (em 1998) e o Reino Unido (em 1999). Em 2001, as receitas da Wal-Mart ultrapassaram o produto interno bruto da maior parte dos países, incluindo a Suécia. A Carrefour, número dois do sector (72 mil milhões de euros em 2004), que a Wal-Mart tencionou comprar em 2004, tem uma maior presença internacional. Mas a empresa fundada por Sam Walton dispõe de um trunfo capital: os 100 milhões de estadunidenses que actualmente vão todas as semanas à procura dos «everyday low prices» («os preços diariamente mais baixos») que ela lhes propõe.
Esses preços são de facto mais baixos. Em média, 14 por cento [6]. Mas a questão está em saber a que preço eles são mais baixos. A resposta difere segundo nos preocupemos sobretudo com o indivíduo‑cliente que anda à cata das melhores promoções, ou com os assalariados que trabalham para os milhares de fornecedores duma empresa suficientemente poderosa para impor a cada um deles que contenha – ou reduza – os seus custos. Para que o cliente da Wal-Mart se sinta satisfeito, o trabalhador tem de sofrer... Para que os preços da Wal‑Mart e das empresas suas subsidiárias sejam sempre os mais baixos, é também necessário que em redor as condições sociais se degradem. Por consequência, mais vale que os sindicatos não existam. Ou que os produtos venham da China [7].
A esquizofrenia do cliente que economiza tão obstinadamente que contribui assim para empobrecer o produtor que ele também é, pode parecer coisa teórica e longínqua. Mas chegando-se ao grau de poder que a Wal‑Mart exerce (8,5 por cento das vendas a retalho dos Estados Unidos, com excepção do ramo automóvel), esta contradição depressa se torna real e imediata. A firma de Bentonville gaba-se dos «2329 dólares por ano» que «faz economizar às famílias que trabalham»; afirma ter feito aumentar em 401 dólares, em 2004, o poder de compra de cada americano, e ter criado, nesse mesmo ano, directa ou indirectamente, 210.000 empregos (ideia segundo a qual o dinheiro economizado pelos seus clientes terá sido investido noutros consumos, estimulando portanto a actividade económica noutros lugares). Mas os adversários da multinacional não esquecem outros indicadores menos atraentes. Com efeito, os preços baixos não caem do céu; aquilo que os explica é em parte a redução de 2,5 a 4,8 por cento do rendimento médio dos assalariados em todos os condados dos Estados Unidos onde a multinacional se estabeleceu. A firma deprime as remunerações nas zonas onde se instala, criando assim as condições dos «everyday low prices». E, de passagem, multiplica o número dos clientes que a breve trecho se hão-de ver obrigados a economizar nos seus supermercados.
Porque entre o tacho de ferro da distribuição e as marmitas de barro da subcontratação, dos empregados da multinacional, das grandes superfícies rivais, o “jogo do mercado” provoca um triplo efeito de deflação salarial. Primeiro, por causa da dominação que uma empresa pouco pródiga exerce sobre os seus “associados” (é a expressão consagrada). Depois, por causa da eliminação da maior parte dos seus concorrentes ou da obrigação a que estes se vêem sujeitos, para sobreviver, de alinhar pela inferior tabela social da Wal‑Mart. Por último, e sobretudo, por causa do autoritarismo com que esta multinacional lida com os seus fornecedores, incluindo os Estados, cujos preços, na realidade, ela amiúde determina (em 2002, comprava, por exemplo, 14 por cento dos 1,9 mil milhões de dólares de produtos têxteis exportados para os Estados Unidos pelo Bangladeche [8]).
Ao longo das suas peregrinações, a firma de Bentonville nunca renunciou a duas das suas características de nascença: o paternalismo e a aversão aos sindicatos. No Sul dos Estados Unidos, os estados mais pobres – em particular o Arkansas no tempo em que Bill Clinton era o seu jovem governador – fizeram regularmente alarde das medíocres remunerações locais para atrair os investimentos das empresas. Para os 130.000 “associados” da Wal‑Mart nos Estados Unidos, as coisas são perfeitamente simples: não têm sindicatos. Mona Williams, porta‑voz da empresa, explicou-se assim a esse respeito: «A nossa filosofia é que só os associados infelizes desejariam aderir a um sindicato. Ora, a Wal‑Mart faz tudo quanto pode para lhes dar aquilo que eles querem e de que têm necessidade». Com a condição, obviamente, de não terem “necessidades” excessivas: «Será realista», interroga‑se Mona Williams, «que se pague a uma pessoa 15 ou 17 dólares para pôr os produtos nas prateleiras?» [9] O director-geral da empresa, Lee Scott, não põe os produtos nas prateleiras. Por isso auferiu 17,5 milhões de dólares em 2004.
Para melhor se livrarem de sindicatos de duvidoso realismo, todos os gerentes das lojas têm à mão uma «caixa de ferramentas». Mal pressintam qualquer descontentamento organizado, ligam para um número vermelho, sendo imediatamente despachado de avião, da sede de Bentonville, um quadro superior para o local em perigo. Seguir‑se‑ão vários dias de pedagogia interna, infligidos aos “associados” para os purgarem das más tentações [10]. Em 2000, porém, essas coisas de nada serviram, tendo-se filiado numa organização operária a secção de corte dum talho texano da Wal‑Mart. A empresa suprimiu esse serviço e despediu os “amotinados”. É ilegal, mas interpor recurso acaba por nunca dar resultado (a desregulamentação já fez a sua obra nesse âmbito), e além disso o processo é interminável. De resto, no caso vertente, ainda prossegue. No ano passado, os “associados” duma loja do Quebeque quiseram também ser representados por um sindicato. A Wal‑Mart encerrou a loja e deu a seguinte explicação: «Este estabelecimento não teria sido viável. Considerámos que o sindicato pretendia alterar por completo o nosso habitual sistema de operações» [11].
E é verdade. Para ter êxito, o modelo Wal-Mart impõe que a empresa pague aos seus “associados” 20 a 30 por cento abaixo dos concorrentes do sector, mas também que seja muito mais avara do que eles no tocante às protecções sociais (doença, aposentação, etc.) com que os assalariados poderão contar. Como amiúde acontece entre o patronato liberal, o Estado ou a caridade servem de carro-vassoura. Depois de um relatório do Congresso ter avaliado que cada assalariado da Wal-Mart custava 2103 dólares por ano à colectividade nacional, sob a forma de diversos complementos de assistência (saúde, filhos, habitação), um estudo interno da empresa admitiu: «A nossa cobertura social fica cara às famílias de baixos rendimentos e a Wal-Mart tem um grande número de associados e respectivos filhos nos registos da assistência pública».
GUERRA DOS SUPERMERCADOS
Com efeito, são menos de 45 por cento os empregados que podem dar-se ao luxo de ter a assistência médica que a empresa lhes propõe; 46 por cento dos filhos de “associados” não têm protecção nenhuma ou estão apenas cobertos pelo programa federal destinado aos indigentes (Medicaid). Lucros privados (10 mil milhões de dólares em 2004), prejuízos públicos. Forçando um pouco a nota, Jesse Jackson, candidato democrata à Casa Branca em 1984 e 1988, comparou recentemente as secções da multinacional a «plantações» que lhe lembravam as condições de trabalho nos campos de algodão do Sul.
Desta vez, porém, o Sul está em vias de ganhar a guerra. A guerra dos salários. Em 2002, a Wal‑Mart previu implantar-se no mercado californiano e instalar na região de Los Angeles uns quarenta dos seus supercenters, onde se encontra de tudo, dos produtos alimentares aos acessórios automóveis. Ora, qual foi então a reacção dos concorrentes ameaçados (Safeway, Albertson)? Foi muito simples: exigiram de imediato aos seus empregados – estes representados por um sindicato – uma redução dos salários e das garantias sociais. De um lado, 13 dólares de salário horário e uma boa protecção médica; do outro (Wal-Mart), 8,50 dólares e uma protecção social mínima. A luta é desigual. Em Outubro de 2003, os 70.000 empregados das cadeias de supermercados estabelecidos na Califórnia recusaram as concessões que lhes estavam a ser exigidas pelo patronato e entraram em greve, uma greve que durou cinco meses. Lock-out, recrutamento de substitutos dos grevistas – vinte e cinco anos de desregulamentação do direito laboral apoiaram a resposta patronal. O sindicato cedeu.
Onde a Wal-Mart se implanta, os pequenos estabelecimentos comerciais fecham. Desde que a firma se estabeleceu no Iowa, em meados da década de 1980, este estado perdeu metade das suas mercearias, 45 por cento das lojas de ferragens e 70 por cento dos fabricantes de vestuário masculino. Inspirando-se no habitual registo do “populismo de mercado”, a empresa responde que se limita a defender os consumidores que têm baixos recursos e que legitimamente reclamam “os preços mais baixos” a abastadas corporações de produtores ou a retalhistas que usufruem de remunerações indefensáveis. A republicana Wal-Mart orgulha-se de ser “eleita” todos os dias pelos dólares dos seus clientes, alinhados em pacientes filas diante das caixas registadoras [12].
Segundo Lee Scott, o resto não passa de uma visão «utópica» e pastoral destinada a privilegiados, ao mesmo tempo que os subalternos, quanto a eles, «não poderiam ter acesso a uma vida agradável só porque outros indivíduos criaram uma imagem particular daquilo que o mundo deveria ser, em vez de começarem por se preocupar com o método mais eficaz de servir o consumidor» [13]. E em termos velados, Lee Scott ameaça: se uma dada localidade recusar a Wal-Mart, outra localidade vizinha a receberá, tendo então a rebelde de suportar quase todos os inconvenientes da submissa (eliminação dos estabelecimentos comerciais de proximidade, redução dos salários), sem tirar proveito das suas vantagens (empregos, rendimentos do imposto fundiário).
As empresas subcontratadas têm direito à mesma liberdade bem trancada. Tal como um Gosplan privado, o maior retalhista do mundo pode decidir quais hão-de ser os preços dos seus fornecedores, os salários que pagam, os seus prazos de entrega. E eles que se desenrasquem, que empreguem trabalhadores clandestinos, que se forneçam na China. Se houver algum “acidente”, a Wal-Mart poderá sempre clamar que não é ela que está em causa, e que obviamente ficou indignada ao saber do acontecido... Mas alguma multinacional se comporta de outra maneira? A Sanofi Aventis, por exemplo, subcontrata nos Estados Unidos os serviços de limpeza a uma empresa cujos assalariados são pagos abaixo da tabela e não dispõem de nenhuma assistência na doença nem de direitos sindicais. O que a Wal-Mart faz é ir um pouco mais longe que a maior parte das multinacionais: «Segundo o jornal mexicano La Jornada, alguns [dos seus] fornecedores vêem-se obrigados a deixar a poderosa manda-chuva inspeccionar a sua contabilidade com vista a detectar “custos supérfluos”» [14].
No fundo, a Wal-Mart é apenas o sintoma de um mal que se está a propagar. Sempre que o direito sindical é atacado, sempre que as protecções sociais dos assalariados são diminuídas, sempre que um acordo de comércio livre faz aumentar a insegurança social, sempre que as políticas públicas se tornam a sombra das opções das multinacionais, sempre que o individualismo do consumidor suplanta a solidariedade dos produtores – a Wal‑Mart avança...
[1] The Wall Street Journal, 3 de Dezembro de 2005.
[2] Olivier Esteves, Resistências populares, Le Monde diplomatique, Janeiro de 2006.
[3] Por exemplo, Michael Deaver, que foi conselheiro do presidente republicano Ronald Reagan, e Thomas McLarty, que o foi do presidente Bill Clinton. Sobre as técnicas que utilizaram e às que actualmente recorrem, ler Faiseurs d’élections made in USA, Le Monde diplomatique, Agosto de 1999.
[4] História contada por George Herbert Walker Bush ao entregar, em Março de 1992, a Presidential Medal of Freedom a Sam Walton.
[5] Hillary Clinton fez parte do conselho de administração da Wal-Mart entre 1986 e 1992.
[6] Steven Greenhouse, “Wal-Mart, Driving Workers and Supermarkets Crazy”, The New York Times, 19 de Outubro de 2003.
[7] Jean-Christophe Servant, Mão‑de‑obra do Sul para firma do Norte, Le Monde diplomatique, Janeiro de 2006.
[8] Relatório parlamentar de George Miller à Câmara dos Representantes, 16 de Fevereiro de 2004.
[9] Wall Street Journal Europe, 7-9 de Novembro de 2003.
[10] Barbara Ehrenreich, “Dirigentes ao nosso serviço”..., Le Monde diplomatique, Janeiro de 2006.
[11] International Herald Tribune, 11 de Março de 2005.
[12] Thomas Frank, Le Marche de droit divin. Capitalisme sauvage et populisme de marché, Agone, Marselha, 2003.
[13] Citado pelo Financial Times, 6 de Julho de 2004.
[14] Walter Bouvais e David Garcia, Multinationales 2005, Éditions Danger Public, Paris, 2005, p. 325.
Serge Halimi
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/usa/usa127.htm
“Dos andrajos à fortuna”: esta definição ritual do “sonho americano” de mobilidade social tem de andar sempre a desencantar estórias que entretenham a ilusão comum. Depois de John D. Rockfeller, modesto contabilista de Cleveland que aos 31 anos se transformou no mais poderoso empresário mundial do petróleo, depois do californiano Steve Jobs, que saiu da universidade sem diplomas para na sua garagem fundar uma empresa, a Apple, que aos 30 anos o tornou multimilionário, é agora a vez da Wal-Mart, mas em maiores dimensões.
À partida, a Wal-Mart era uma lojinha num dos estados mais pobres do país, o Arkansas; à chegada, um volume de negócios que em 2005 ronda os 310 mil milhões de dólares, uma família em que quatro dos filhos se situam entre os dez indivíduos mais ricos do planeta, uma cadeia de hipermercados que se tornou a maior empresa do mundo – em 2003 ultrapassou a ExxonMobil – e o primeiro empregador privado. As vendas da Wal‑Mart correspondem a 1 CD em cada 5 comprados nos Estados Unidos, a 1 bisnaga de dentífrico em cada 4, a 1 fralda de bebé em cada 3. E, de forma mais significativa, a 2,5 por cento do total do produto nacional bruto norte‑americano [1]! Mais rica e influente que cento e cinquenta países, esta empresa deve o poder que hoje tem às regras que aplicou.
Tendo esta empresa chegado a um tal grau de poderio, não pode espantar-nos que a maior parte das transformações do planeta (económicas, sociais, políticas) tenham tido a sua correspondência – e às vezes também a sua origem, a sua correia de transmissão, o seu acelerador – em Bentonville, no Arkansas, sede da firma. Combater os sindicatos, proceder a deslocalizações, recorrer a uma mão-de-obra superexplorada que a desregulamentação do trabalho e os acordos de comércio livre vão tornando ano após ano mais prolífica: é este o modelo Wal-Mart. Pressionar os fornecedores para os obrigar a comprimir os seus preços comprimindo os salários (ou implantando-se no estrangeiro); tornar as funções indefinidas para favorecer o encadeamento das tarefas laborais e acossar assim qualquer tempo livre, qualquer leve pausa: é este o modelo Wal‑Mart. Construir edifícios medonhos (as “caixas de sapatos”), aprovisionados por um exército de 7100 camiões gigantes da empresa, que circulam e poluem 24 horas por dia, para encher a horas as malas dos milhões de carros alinhados nos imensos parques de estacionamento de quase todas as 5000 grandes superfícies em que a multinacional opera pelo mundo fora: é este o modelo Wal-Mart.
E depois, quando os sindicatos contra-atacam, quando os ecologistas acordam, quando por fim os clientes enxergam aquilo que “os mais baixos preços” lhes andavam a esconder, quando alguns artistas deixam por momentos de se vender para aderir ao movimento popular, quando grupos de cidadãos se opõem à instalação nas suas terras de novos cubos de cimento [2], mais uma vez a Wal-Mart recruta antigos “comunicadores” da Casa Branca, democratas ou republicanos, ordenando-lhes que branqueiem a imagem da empresa e encham os media com as suas explicações [3]. E esses “comunicadores” dirão: a Wal-Mart tornou-se uma empresa “ética”; a sua única preocupação consiste em criar empregos, cujos salários são sem dúvida medíocres, mas mais vale isso do que nada, e os clientes adoram os preços baixos... Acrescentando depois que a busca obstinada de rendimentos conseguiu melhorar a produtividade nacional. E que doravante a empresa passará a defender o meio ambiente, tal como já socorreu as vítimas do furacão Katrina. Exploração, comunicação: é mais um modelo com o cunho da Wal-Mart.
No fundo, como podemos nós espantar-nos realmente? Não é por acaso que um negócio se transforma na maior empresa do mundo; não é só porque quarenta anos antes o fundador, Sam Walton (falecido em Abril de 1992, dias depois de lhe ter sido entregue pelo presidente George Herbert Bush uma das mais altas distinções americanas), teve a luminosa ideia de vender melancias no passeio da sua loja e de ao mesmo tempo oferecer aos filhos dos seus clientes passeios de burro no parque de estacionamento [4].
BENEFICIAR DO COMÉRCIO LIVRE
O primeiro Wal-Mart abriu em 1962, em Rogers, no Arkansas, uma zona rural e abandonada. Nove anos depois a empresa alargou a sua esfera de influência a cinco estados. Os primeiros mercados que ela assegurou, de baixa densidade, eram ignorados pelos grandes distribuidores; foi ali que a Wal-Mart assentou o seu monopólio, antes de se expandir em outras paragens. Privilegiou a periferia dos centros urbanos para tirar proveito, ao mesmo tempo, da clientela das cidades e do baixo preço dos terrenos. Em 1991, antecipando o Acordo de Comércio Livre da América do Norte (NAFTA) que o presidente Bill Clinton, antigo governador do Arkansas, fará ratificar dois anos mais tarde [5], o Pequeno Polegar de Bentonville internacionalizou-se, instalando-se no México. Em 1994 seguiu-se o Canadá. Depois, o Brasil e a Argentina (em 1995), a China (em 1996), a Alemanha (em 1998) e o Reino Unido (em 1999). Em 2001, as receitas da Wal-Mart ultrapassaram o produto interno bruto da maior parte dos países, incluindo a Suécia. A Carrefour, número dois do sector (72 mil milhões de euros em 2004), que a Wal-Mart tencionou comprar em 2004, tem uma maior presença internacional. Mas a empresa fundada por Sam Walton dispõe de um trunfo capital: os 100 milhões de estadunidenses que actualmente vão todas as semanas à procura dos «everyday low prices» («os preços diariamente mais baixos») que ela lhes propõe.
Esses preços são de facto mais baixos. Em média, 14 por cento [6]. Mas a questão está em saber a que preço eles são mais baixos. A resposta difere segundo nos preocupemos sobretudo com o indivíduo‑cliente que anda à cata das melhores promoções, ou com os assalariados que trabalham para os milhares de fornecedores duma empresa suficientemente poderosa para impor a cada um deles que contenha – ou reduza – os seus custos. Para que o cliente da Wal-Mart se sinta satisfeito, o trabalhador tem de sofrer... Para que os preços da Wal‑Mart e das empresas suas subsidiárias sejam sempre os mais baixos, é também necessário que em redor as condições sociais se degradem. Por consequência, mais vale que os sindicatos não existam. Ou que os produtos venham da China [7].
A esquizofrenia do cliente que economiza tão obstinadamente que contribui assim para empobrecer o produtor que ele também é, pode parecer coisa teórica e longínqua. Mas chegando-se ao grau de poder que a Wal‑Mart exerce (8,5 por cento das vendas a retalho dos Estados Unidos, com excepção do ramo automóvel), esta contradição depressa se torna real e imediata. A firma de Bentonville gaba-se dos «2329 dólares por ano» que «faz economizar às famílias que trabalham»; afirma ter feito aumentar em 401 dólares, em 2004, o poder de compra de cada americano, e ter criado, nesse mesmo ano, directa ou indirectamente, 210.000 empregos (ideia segundo a qual o dinheiro economizado pelos seus clientes terá sido investido noutros consumos, estimulando portanto a actividade económica noutros lugares). Mas os adversários da multinacional não esquecem outros indicadores menos atraentes. Com efeito, os preços baixos não caem do céu; aquilo que os explica é em parte a redução de 2,5 a 4,8 por cento do rendimento médio dos assalariados em todos os condados dos Estados Unidos onde a multinacional se estabeleceu. A firma deprime as remunerações nas zonas onde se instala, criando assim as condições dos «everyday low prices». E, de passagem, multiplica o número dos clientes que a breve trecho se hão-de ver obrigados a economizar nos seus supermercados.
Porque entre o tacho de ferro da distribuição e as marmitas de barro da subcontratação, dos empregados da multinacional, das grandes superfícies rivais, o “jogo do mercado” provoca um triplo efeito de deflação salarial. Primeiro, por causa da dominação que uma empresa pouco pródiga exerce sobre os seus “associados” (é a expressão consagrada). Depois, por causa da eliminação da maior parte dos seus concorrentes ou da obrigação a que estes se vêem sujeitos, para sobreviver, de alinhar pela inferior tabela social da Wal‑Mart. Por último, e sobretudo, por causa do autoritarismo com que esta multinacional lida com os seus fornecedores, incluindo os Estados, cujos preços, na realidade, ela amiúde determina (em 2002, comprava, por exemplo, 14 por cento dos 1,9 mil milhões de dólares de produtos têxteis exportados para os Estados Unidos pelo Bangladeche [8]).
Ao longo das suas peregrinações, a firma de Bentonville nunca renunciou a duas das suas características de nascença: o paternalismo e a aversão aos sindicatos. No Sul dos Estados Unidos, os estados mais pobres – em particular o Arkansas no tempo em que Bill Clinton era o seu jovem governador – fizeram regularmente alarde das medíocres remunerações locais para atrair os investimentos das empresas. Para os 130.000 “associados” da Wal‑Mart nos Estados Unidos, as coisas são perfeitamente simples: não têm sindicatos. Mona Williams, porta‑voz da empresa, explicou-se assim a esse respeito: «A nossa filosofia é que só os associados infelizes desejariam aderir a um sindicato. Ora, a Wal‑Mart faz tudo quanto pode para lhes dar aquilo que eles querem e de que têm necessidade». Com a condição, obviamente, de não terem “necessidades” excessivas: «Será realista», interroga‑se Mona Williams, «que se pague a uma pessoa 15 ou 17 dólares para pôr os produtos nas prateleiras?» [9] O director-geral da empresa, Lee Scott, não põe os produtos nas prateleiras. Por isso auferiu 17,5 milhões de dólares em 2004.
Para melhor se livrarem de sindicatos de duvidoso realismo, todos os gerentes das lojas têm à mão uma «caixa de ferramentas». Mal pressintam qualquer descontentamento organizado, ligam para um número vermelho, sendo imediatamente despachado de avião, da sede de Bentonville, um quadro superior para o local em perigo. Seguir‑se‑ão vários dias de pedagogia interna, infligidos aos “associados” para os purgarem das más tentações [10]. Em 2000, porém, essas coisas de nada serviram, tendo-se filiado numa organização operária a secção de corte dum talho texano da Wal‑Mart. A empresa suprimiu esse serviço e despediu os “amotinados”. É ilegal, mas interpor recurso acaba por nunca dar resultado (a desregulamentação já fez a sua obra nesse âmbito), e além disso o processo é interminável. De resto, no caso vertente, ainda prossegue. No ano passado, os “associados” duma loja do Quebeque quiseram também ser representados por um sindicato. A Wal‑Mart encerrou a loja e deu a seguinte explicação: «Este estabelecimento não teria sido viável. Considerámos que o sindicato pretendia alterar por completo o nosso habitual sistema de operações» [11].
E é verdade. Para ter êxito, o modelo Wal-Mart impõe que a empresa pague aos seus “associados” 20 a 30 por cento abaixo dos concorrentes do sector, mas também que seja muito mais avara do que eles no tocante às protecções sociais (doença, aposentação, etc.) com que os assalariados poderão contar. Como amiúde acontece entre o patronato liberal, o Estado ou a caridade servem de carro-vassoura. Depois de um relatório do Congresso ter avaliado que cada assalariado da Wal-Mart custava 2103 dólares por ano à colectividade nacional, sob a forma de diversos complementos de assistência (saúde, filhos, habitação), um estudo interno da empresa admitiu: «A nossa cobertura social fica cara às famílias de baixos rendimentos e a Wal-Mart tem um grande número de associados e respectivos filhos nos registos da assistência pública».
GUERRA DOS SUPERMERCADOS
Com efeito, são menos de 45 por cento os empregados que podem dar-se ao luxo de ter a assistência médica que a empresa lhes propõe; 46 por cento dos filhos de “associados” não têm protecção nenhuma ou estão apenas cobertos pelo programa federal destinado aos indigentes (Medicaid). Lucros privados (10 mil milhões de dólares em 2004), prejuízos públicos. Forçando um pouco a nota, Jesse Jackson, candidato democrata à Casa Branca em 1984 e 1988, comparou recentemente as secções da multinacional a «plantações» que lhe lembravam as condições de trabalho nos campos de algodão do Sul.
Desta vez, porém, o Sul está em vias de ganhar a guerra. A guerra dos salários. Em 2002, a Wal‑Mart previu implantar-se no mercado californiano e instalar na região de Los Angeles uns quarenta dos seus supercenters, onde se encontra de tudo, dos produtos alimentares aos acessórios automóveis. Ora, qual foi então a reacção dos concorrentes ameaçados (Safeway, Albertson)? Foi muito simples: exigiram de imediato aos seus empregados – estes representados por um sindicato – uma redução dos salários e das garantias sociais. De um lado, 13 dólares de salário horário e uma boa protecção médica; do outro (Wal-Mart), 8,50 dólares e uma protecção social mínima. A luta é desigual. Em Outubro de 2003, os 70.000 empregados das cadeias de supermercados estabelecidos na Califórnia recusaram as concessões que lhes estavam a ser exigidas pelo patronato e entraram em greve, uma greve que durou cinco meses. Lock-out, recrutamento de substitutos dos grevistas – vinte e cinco anos de desregulamentação do direito laboral apoiaram a resposta patronal. O sindicato cedeu.
Onde a Wal-Mart se implanta, os pequenos estabelecimentos comerciais fecham. Desde que a firma se estabeleceu no Iowa, em meados da década de 1980, este estado perdeu metade das suas mercearias, 45 por cento das lojas de ferragens e 70 por cento dos fabricantes de vestuário masculino. Inspirando-se no habitual registo do “populismo de mercado”, a empresa responde que se limita a defender os consumidores que têm baixos recursos e que legitimamente reclamam “os preços mais baixos” a abastadas corporações de produtores ou a retalhistas que usufruem de remunerações indefensáveis. A republicana Wal-Mart orgulha-se de ser “eleita” todos os dias pelos dólares dos seus clientes, alinhados em pacientes filas diante das caixas registadoras [12].
Segundo Lee Scott, o resto não passa de uma visão «utópica» e pastoral destinada a privilegiados, ao mesmo tempo que os subalternos, quanto a eles, «não poderiam ter acesso a uma vida agradável só porque outros indivíduos criaram uma imagem particular daquilo que o mundo deveria ser, em vez de começarem por se preocupar com o método mais eficaz de servir o consumidor» [13]. E em termos velados, Lee Scott ameaça: se uma dada localidade recusar a Wal-Mart, outra localidade vizinha a receberá, tendo então a rebelde de suportar quase todos os inconvenientes da submissa (eliminação dos estabelecimentos comerciais de proximidade, redução dos salários), sem tirar proveito das suas vantagens (empregos, rendimentos do imposto fundiário).
As empresas subcontratadas têm direito à mesma liberdade bem trancada. Tal como um Gosplan privado, o maior retalhista do mundo pode decidir quais hão-de ser os preços dos seus fornecedores, os salários que pagam, os seus prazos de entrega. E eles que se desenrasquem, que empreguem trabalhadores clandestinos, que se forneçam na China. Se houver algum “acidente”, a Wal-Mart poderá sempre clamar que não é ela que está em causa, e que obviamente ficou indignada ao saber do acontecido... Mas alguma multinacional se comporta de outra maneira? A Sanofi Aventis, por exemplo, subcontrata nos Estados Unidos os serviços de limpeza a uma empresa cujos assalariados são pagos abaixo da tabela e não dispõem de nenhuma assistência na doença nem de direitos sindicais. O que a Wal-Mart faz é ir um pouco mais longe que a maior parte das multinacionais: «Segundo o jornal mexicano La Jornada, alguns [dos seus] fornecedores vêem-se obrigados a deixar a poderosa manda-chuva inspeccionar a sua contabilidade com vista a detectar “custos supérfluos”» [14].
No fundo, a Wal-Mart é apenas o sintoma de um mal que se está a propagar. Sempre que o direito sindical é atacado, sempre que as protecções sociais dos assalariados são diminuídas, sempre que um acordo de comércio livre faz aumentar a insegurança social, sempre que as políticas públicas se tornam a sombra das opções das multinacionais, sempre que o individualismo do consumidor suplanta a solidariedade dos produtores – a Wal‑Mart avança...
[1] The Wall Street Journal, 3 de Dezembro de 2005.
[2] Olivier Esteves, Resistências populares, Le Monde diplomatique, Janeiro de 2006.
[3] Por exemplo, Michael Deaver, que foi conselheiro do presidente republicano Ronald Reagan, e Thomas McLarty, que o foi do presidente Bill Clinton. Sobre as técnicas que utilizaram e às que actualmente recorrem, ler Faiseurs d’élections made in USA, Le Monde diplomatique, Agosto de 1999.
[4] História contada por George Herbert Walker Bush ao entregar, em Março de 1992, a Presidential Medal of Freedom a Sam Walton.
[5] Hillary Clinton fez parte do conselho de administração da Wal-Mart entre 1986 e 1992.
[6] Steven Greenhouse, “Wal-Mart, Driving Workers and Supermarkets Crazy”, The New York Times, 19 de Outubro de 2003.
[7] Jean-Christophe Servant, Mão‑de‑obra do Sul para firma do Norte, Le Monde diplomatique, Janeiro de 2006.
[8] Relatório parlamentar de George Miller à Câmara dos Representantes, 16 de Fevereiro de 2004.
[9] Wall Street Journal Europe, 7-9 de Novembro de 2003.
[10] Barbara Ehrenreich, “Dirigentes ao nosso serviço”..., Le Monde diplomatique, Janeiro de 2006.
[11] International Herald Tribune, 11 de Março de 2005.
[12] Thomas Frank, Le Marche de droit divin. Capitalisme sauvage et populisme de marché, Agone, Marselha, 2003.
[13] Citado pelo Financial Times, 6 de Julho de 2004.
[14] Walter Bouvais e David Garcia, Multinationales 2005, Éditions Danger Public, Paris, 2005, p. 325.
Serge Halimi
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/usa/usa127.htm
Sem comentários:
Enviar um comentário