domingo, dezembro 03, 2006

De Botha a Rumsfeld, a dolorosa questão da impunidade

Depois do fim da Segunda Guerra Mundial e do horror da Shoah, a comunidade internacional comprometeu-se a pôr termo à impunidade de todos os autores de crimes de genocídio, de guerra e contra a humanidade. O julgamento de Nuremberga abriu caminho declarando que «a situação oficial dos acusados, quer como chefe de Estado, quer como altos funcionários, não será considerada nem como uma desculpa absolutória, nem como um motivo de diminuição da pena» [1].

Mas é forçoso constatar o desfasamento entre os compromisso internacionais e a realidade. A morte aprazível de Pieter Willem Botha, a 31 de Outubro de 2006, com a idade de 90 anos, é uma ilustração recente. Botha esteve à frente do regime do apartheid na África do Sul como primeiro­‑ministro de 1978 a 1984 antes de se tornar Presidente de 1984 a 1989. Toda a sua carreira política foi marcada profundamente pelo racismo: após ter sido membro de uma organização pró­‑nazi (o Ossewabrandwag) durante a Segunda Guerra Mundial, entrou ao Parlamento sul-africano em 1948, o ano em que a legislação do apartheid foi adoptada.

Cognominado “o grande crocodilo”, dirigiu o regime do apartheid com mão de ferro. As poucas reformas destacadas por aqueles que, apesar de tudo, lhe quiseram render homenagem, são bem magras. Levantando as restrições sobre os casamentos inter­raciais e criando o Parlamento tricameral em 1983 (com câmaras separadas para os mestiços e os indianos), Botha procurava de facto apenas a relegitimação de uma política cada vez mais contestada.

Na verdade, a segregação não enfraquecia: o regime continuava baseado na supremacia branca e os negros não tinham ainda o direito de votar. Contavam-se nessa época uns 30.000 prisioneiros políticos. Além disso, Botha sempre recusou a libertação do prisioneiro mais famoso: Nelson Mandela. Não tendo estas “mini­‑reformas” alterado a natureza racista do regime, a África do Sul foi objecto de novas sanções económicas pela ONU em 1985. Apesar destas sanções internacionais, Botha desencadeou no ano seguinte a pior repressão que o apartheid conheceu decretando o estado de emergência no seguimento das confrontações violentas entre os negros oprimidos e a polícia.

Em 1989, após um acidente cardíaco, retirou-se do poder, deixando o lugar a Frederick de Klerk que iniciou então um desmantelamento progressivo do apartheid e foi por isso fortemente criticado por Botha. A Comissão “Verdade e Reconciliação”, perante a qual Botha se tinha recusado a testemunhar em 1997, conclui que este último tinha dado ordem aos serviços secretos de cometer um atentado contra um edifício de Joanesburgo que abrigava um grupo anti­‑apartheid e que era directamente responsável pelo atentado contra as sedes do Congresso Nacional Africano (ANC) em Londres em 1987. Foi então condenado a um ano de prisão com suspensão, mas ganho um apelo sobre um vício de procedimento. Pouco antes do seu falecimento, tinha declarado em 2005, numa entrevista emitida pela televisão, que não pediria nenhumas desculpas pelo Apartheid.

Apesar das violações flagrantes dos direitos do homem das quais é directamente o autor e da sua recusa de se desculpar pela sua participação activa no cumprimento do crime de apartheid, que constitui um crime contra a humanidade (desde a Convenção de 1968 sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e contra a humanidade), Botha foi objecto de uma homenagem por parte de vários líderes de partidos sul-africanos como o ANC, contudo classificado como organização terrorista sob o regime de Botha, e por chefes de Estado como Omar Bongo, actual Presidente do Gabão. Esta homenagem é pura e simplesmente insultante para a população sul-africana, em particular a população negra que sofreu com violência a política racista de Botha e que não obteve justiça.

Os autores de crimes internacionais como Botha não mais devem beneficiar até à sua morte de uma insuportável impunidade. De resto, uma nova ocasião se apresenta para recordá-lo: o procurador federal alemão tem a possibilidade de instaurar processos contra o Secretário de Estado da Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, e o Procurador­‑geral, Alberto Gonzales, por crimes de guerra cometidos no Iraque e no campo de detenção da base americana de Guantánamo. Esta queixa penal, apresentada em nome de 11 vítimas iraquianas e de um prisioneiro de Guantánamo pelo advogado berlinense Wolfgang Kalek, que representa várias associações de direitos humanos, é fundada na lei de competência universal adoptada pela Alemanha em 2002. As pressões políticas dos Estados Unidos são muito fortes desde que processos judiciais são instaurados no estrangeiro contra alguns dos seus cidadãos. Há três anos, a Bélgica tinha limitado fortemente o alcance da sua lei de competência universal, principalmente sob a pressão dos Estados Unidos.

Hoje, os movimentos sociais devem mobilizar-se para que Donald Rumsfeld e seus semelhantes prestem contas e para que outros governos adoptem a lei de competência universal e aceitem a competência do Tribunal Penal Internacional.

Para que justiça seja feita, é preciso sobretudo não ignorar o papel activo do Banco Mundial e do FMI no financiamento do regime do apartheid. Estas duas instituições passaram à frente das numerosas resoluções da ONU (de 1966, 1976, 1980, 1985) que condenavam a assistência ao regime racista, atribuindo importantes empréstimos à África do Sul. Em 1976-1977, a ajuda do FMI à África do Sul excedia a concedida ao conjunto de todos os outros países de África. No período 1948-67, o Banco Mundial atribuiu empréstimos que eram de longe superiores aos atribuídos a qualquer outro país de África. Para além dos próprios números, o sinal do apoio do FMI e do Banco Mundial, tanto financeiro como político, era claro. Botha pôde seguidamente beneficiar do apoio dos grandes bancos europeus, que tomaram as rédeas de 1980 a 1985, quintuplicando os seus empréstimos (passando de 13 mil milhões a 71 mil milhões). São pois numerosos os actores que contribuíram para a longevidade deste regime racista e que escarneceram das regras da ONU.

As dívidas contratadas por este regime culpado de crime contra a humanidade são dívidas odiosas, noutros termos, dívidas de regime que não podem ser suportadas pela população sul-africana. Com efeito, de acordo com a doutrina da dívida odiosa, as dívidas contraídas por um regime sem o consentimento da população e que não beneficiaram esta última, não devem ser reembolsadas pelo governo sucessor se os credores conheciam à época as intenções do devedor. Não há nenhuma dúvida disso no caso do regime de apartheid. Por conseguinte, a parte destas dívidas odiosas que já foi reembolsada deve ser restituída às populações. O resto dos créditos odiosos deve ser abolido.

[1] Artigo 7 do Estatuto do Tribunal de Nuremberga (Acordo de Londres de 8 de Agosto de 1945).
Éric Toussaint, Damien Millet, Renaud Vivien
CADTM
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo197.htm

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