O ano de 2006, para os Estados Unidos, viveu-se no Iraque. A guerra e a derrota política e militar norte‑americana foram não só o facto maior da agenda política norte-americana mas o catalisador das crescentes contradições que atravessam aquele país. Essas contradições têm três expressões principais que se acentuaram dramaticamente ao longo de 2006: um ataque inédito às liberdades fundamentais do povo americano, um sentido fortemente regressivo nas políticas económicas e sociais e uma política externa desvairada.
Os resultados eleitorais de 7 de Novembro, com uma derrota em toda a linha dos Republicanos, dão voz ao repúdio pela hiper-concentração de poder nas mãos da direita mais conservadora e pelas políticas que conduziram a América ao bloqueamento que agora vive e que dão corpo a uma situação de estado de emergência continuado. Bush e o ultra-conservadorismo pagaram também pela arrogância das políticas discriminatórias que tinham tido na incompetente resposta ao Katrina a sua expressão mais drástica.
A esse autoritarismo castigado nas urnas tem-se associado – e 2006 só acentuou essa tendência – uma condução da política económica profundamente ambivalente. De um lado, uma lógica globalizadora traduzida no domínio, de escala mundial, de fontes de energia e outras matérias-primas e dos eixos fundamentais da sua circulação. Os depósitos petrolíferos e as grandes redes de distribuição (no Cáucaso, no Médio Oriente, etc.) são hoje o eixo prioritário da geoeconomia mundial conduzida por Washington e motivação maior da sua estratégia política imperial. Mas, a par desta estratégia de globalização dos mercados, os Estados Unidos evidenciam traços de fechamento muito claros, decorrentes da deriva securitária adoptada desde 2002. A política de imigração materializa este traço: da obstaculização à concessão de autorizações de residência às políticas de expulsão em massa, passando pela construção do muro na fronteira com o México, é a mesma lógica de criminalização da imigração que se insinua, dando azo a uma contestação pública de dimensões inéditas como a que trouxe para a rua centenas de milhares de imigrantes e activistas de direitos humanos em Março.
Apesar de tudo, como diagnosticou Immanuel Wallerstein, «os que estão dispostos a olhar de frente as falácias das políticas dos Estados Unidos são uma minoria – mais ainda, uma minoria sem uma agenda clara e certamente sem um líder político de peso para expressar uma visão alternativa». Nesse sentido, o alcance da vitória democrata de Novembro tem que ser matizado. Sendo uma importante mudança, é uma evidente mistificação afirmar que ganhou a esquerda. Para além das vitórias locais de candidatos democratas com uma agenda profundamente conservadora, importa vincar a convergência entre as duas direcções partidárias em torno da convicção no excepcionalismo americano e na conveniência de uma alteração de forma (concretizada em mais habilidade diplomática e mais procedimentos multilaterais), em detrimento de mudanças substantivas (uma agenda política diferente).
Ora, a derrota na guerra do Iraque radicaliza as contradições na sociedade americana e confronta os norte‑americanos com a necessidade de algo bem mais denso do que a simples mudança cosmética. Porque a questão de fundo com que se depara hoje o povo americano é a de saber se se opera ou não uma ruptura com o messianismo americano – a crença numa espécie de missão sagrada de civilização atribuída por Deus aos Estados Unidos para promoverem os seus valores e ideais por todo o mundo, incendiando-o se necessário for – de que esta Administração foi protagonista.
Rumsfeld, saído de cena depois das eleições de Novembro, era o protagonista da resposta negacionista a esta pergunta. Para ele e para o seu grupo, os Estados Unidos não só não estão em decadência como o seu poder é uma força do bem para o mundo. E sobre essa convicção messiânica construíram uma dupla estratégia. Externa em primeiro lugar: guerra preventiva e apologia grosseira do estado de excepção, com violação grave das regras básicas do direito humanitário, designadamente da proibição da tortura e do respeito pela dignidade essencial dos prisioneiros de guerra. Interna depois: exacerbação dos poderes presidenciais, no quadro de uma suposta guerra contra agressores da América.
O trauma de mais uma derrota militar séria (quando o síndrome do Vietname não tinha sido resolvido na sociedade americana) traz consigo um dilema que Wallerstein enunciou: ou o país se deixa dominar pela raiva da impotência e faz do cercear das liberdades a sua resposta, ou assume uma tomada de consciência colectiva, um sobressalto cívico que proporcione um regresso à melhor América, a dos valores cívicos da liberdade, da crítica e da insubmissão.
Essa é já a mãe de todas as batalhas para os Estados Unidos.
José Manuel Pureza
Esquerda
http://www.infoalternativa.org/usa/usa139.htm
Os resultados eleitorais de 7 de Novembro, com uma derrota em toda a linha dos Republicanos, dão voz ao repúdio pela hiper-concentração de poder nas mãos da direita mais conservadora e pelas políticas que conduziram a América ao bloqueamento que agora vive e que dão corpo a uma situação de estado de emergência continuado. Bush e o ultra-conservadorismo pagaram também pela arrogância das políticas discriminatórias que tinham tido na incompetente resposta ao Katrina a sua expressão mais drástica.
A esse autoritarismo castigado nas urnas tem-se associado – e 2006 só acentuou essa tendência – uma condução da política económica profundamente ambivalente. De um lado, uma lógica globalizadora traduzida no domínio, de escala mundial, de fontes de energia e outras matérias-primas e dos eixos fundamentais da sua circulação. Os depósitos petrolíferos e as grandes redes de distribuição (no Cáucaso, no Médio Oriente, etc.) são hoje o eixo prioritário da geoeconomia mundial conduzida por Washington e motivação maior da sua estratégia política imperial. Mas, a par desta estratégia de globalização dos mercados, os Estados Unidos evidenciam traços de fechamento muito claros, decorrentes da deriva securitária adoptada desde 2002. A política de imigração materializa este traço: da obstaculização à concessão de autorizações de residência às políticas de expulsão em massa, passando pela construção do muro na fronteira com o México, é a mesma lógica de criminalização da imigração que se insinua, dando azo a uma contestação pública de dimensões inéditas como a que trouxe para a rua centenas de milhares de imigrantes e activistas de direitos humanos em Março.
Apesar de tudo, como diagnosticou Immanuel Wallerstein, «os que estão dispostos a olhar de frente as falácias das políticas dos Estados Unidos são uma minoria – mais ainda, uma minoria sem uma agenda clara e certamente sem um líder político de peso para expressar uma visão alternativa». Nesse sentido, o alcance da vitória democrata de Novembro tem que ser matizado. Sendo uma importante mudança, é uma evidente mistificação afirmar que ganhou a esquerda. Para além das vitórias locais de candidatos democratas com uma agenda profundamente conservadora, importa vincar a convergência entre as duas direcções partidárias em torno da convicção no excepcionalismo americano e na conveniência de uma alteração de forma (concretizada em mais habilidade diplomática e mais procedimentos multilaterais), em detrimento de mudanças substantivas (uma agenda política diferente).
Ora, a derrota na guerra do Iraque radicaliza as contradições na sociedade americana e confronta os norte‑americanos com a necessidade de algo bem mais denso do que a simples mudança cosmética. Porque a questão de fundo com que se depara hoje o povo americano é a de saber se se opera ou não uma ruptura com o messianismo americano – a crença numa espécie de missão sagrada de civilização atribuída por Deus aos Estados Unidos para promoverem os seus valores e ideais por todo o mundo, incendiando-o se necessário for – de que esta Administração foi protagonista.
Rumsfeld, saído de cena depois das eleições de Novembro, era o protagonista da resposta negacionista a esta pergunta. Para ele e para o seu grupo, os Estados Unidos não só não estão em decadência como o seu poder é uma força do bem para o mundo. E sobre essa convicção messiânica construíram uma dupla estratégia. Externa em primeiro lugar: guerra preventiva e apologia grosseira do estado de excepção, com violação grave das regras básicas do direito humanitário, designadamente da proibição da tortura e do respeito pela dignidade essencial dos prisioneiros de guerra. Interna depois: exacerbação dos poderes presidenciais, no quadro de uma suposta guerra contra agressores da América.
O trauma de mais uma derrota militar séria (quando o síndrome do Vietname não tinha sido resolvido na sociedade americana) traz consigo um dilema que Wallerstein enunciou: ou o país se deixa dominar pela raiva da impotência e faz do cercear das liberdades a sua resposta, ou assume uma tomada de consciência colectiva, um sobressalto cívico que proporcione um regresso à melhor América, a dos valores cívicos da liberdade, da crítica e da insubmissão.
Essa é já a mãe de todas as batalhas para os Estados Unidos.
José Manuel Pureza
Esquerda
http://www.infoalternativa.org/usa/usa139.htm
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