Logo após a sua eleição para a presidência da Venezuela, em 1998, Hugo Chávez assinou com o governo cubano um acordo que dá nascimento a um programa maciço de saúde pública, a Misión Barrio Adentro. Desde então, na Venezuela, 14.000 médicos cubanos tratam gratuitamente os mais pobres. Raramente noticiada, esta operação é contudo apenas a ponta do icebergue de uma cooperação sanitária de Havana com as populações desfavorecidas dos países do Sul.
Fim de Agosto de 2005... O furacão Katrina acaba de devastar o Sul dos Estados Unidos. As autoridades são rapidamente ultrapassadas pela amplitude da catástrofe. A governadora do Louisiana, Kathleen Babineaux Blanco, lança um apelo à comunidade internacional para pedir uma ajuda médica urgente. Em Havana, o governo cubano reage imediatamente. Propõe enviar para Nova Orleães, mas também para o Mississípi e para o Alabama, Estados igualmente afectados pelo ciclone, sob a forma de ajuda humanitária e num prazo máximo de 48 horas, um contingente de 1.600 médicos formados para intervir neste tipo de catástrofe. Trarão com eles todo o equipamento necessário e 36 toneladas de medicamentos. Mas esta proposta, bem como a feita directamente ao presidente George W. Bush permaneceria sem resposta, enquanto mais de 1.800 pessoas, sobretudo pobres, morriam, por falta de ajuda e de cuidados.
Este drama está ainda próximo quando, a 8 de Outubro de 2005, o Paquistão conhece, na região da Caxemira, um dos piores tremores de terra da sua história. As consequências humanas e sanitárias são dramáticas, sobretudo nas zonas mais deserdadas e mais isoladas do norte do país. No dia 15 de Outubro, um primeiro contingente de 200 médicos cubanos socorristas chega com várias toneladas de equipamento. Alguns dias mais tarde, Havana expede o material necessário para montar e equipar 30 hospitais de campanha, em zonas de montanha que, na sua maioria, nunca receberam a visita de um médico. Muitos habitantes descobrem a existência de um país chamado a Cuba.
TODO COMEÇOU NA ARGÉLIA
Para não ir contra a tradição neste país muçulmano, as cubanas – 44% dos quase 3.000 médicos deslocados para o Paquistão até Maio de 2006 – dissimulam os seus cabelos sob um lenço. O bom entendimento estabelece-se em pouco tempo: muitos paquistaneses aceitam que a sua esposa ou a sua filha sejam tratadas por um homem. No final de Abril de 2006, pouco tempo antes da sua partida, a equipa médica cubana tinha tratado de um milhão e meio de pacientes, principalmente mulheres, e efectuado cerca de 13.000 intervenções cirúrgicas. Só alguns pacientes atingidos por traumatismos muito complexos tiveram de ser transportados para Havana. O presidente Pervez Musharraf, grande aliado dos Estados Unidos e amigo de Bush, agradeceu oficialmente às autoridades de Havana e reconheceu que a ajuda deste pequeno país das Antilhas foi a mais importante de todas as recebidos por ocasião desta catástrofe.
A primeira brigada médica internacional cubana foi formada em 1963. Foi para a Argélia, que tinha acabado de se tornar independente, que se deslocaram então os 58 médicos e técnicos que a compunham. Em 1998, o governo cubano começou a estruturar a ajuda médica maciça às populações de países pobres atingidos por catástrofes naturais. Após a passagem dos ciclones George e Mitch na América central e nas Caraíbas, Havana ofereceu os seus médicos e enfermeiros para trabalhar no âmbito dos programas integrais de saúde. A República Dominicana, as Honduras, a Guatemala, a Nicarágua, o Haiti e Belize aceitam esta proposta.
No Haiti, onde a população humilde conhece uma falta crónica de cuidados médicos, Cuba oferece‑se para enviar uma ajuda médica maciça. Havana propõe mesmo, em 1998, ao governo francês, antiga potência colonial, uma espécie de associação humanitária para ir em ajuda à população haitiana. Mas Paris guardou silêncio, e optou finalmente, em 2004, por enviar tropas... Cuba mobiliza os seus médicos – 2.500 sucederam‑se desde 1998 – e tantas toneladas de medicamentos quanto a sua economia frágil lhe permite.
A eficácia e a gratuitidade da ajuda, o facto de estes novos “médicos descalços” intervirem em zonas aonde os seus confrades locais recusam ir (devido à pobreza da “clientela”, à insegurança ou à dificuldade de acesso...) fazem com que outros países, principalmente de África, peçam para beneficiar do programa. O pessoal de saúde cubano é pago pelo seu próprio governo.
De 1963 até ao final de 2005, mais de 100.000 médicos e técnicos de saúde intervieram em 97 países, sobretudo em África e na América Latina [1]. Em Março de 2006, 25.000 profissionais encontravam-se repartidos por 68 nações. Uma mobilização que mesmo a Organização Mundial de Saúde (OMS) não pode assegurar. A organização não governamental (ONG) Médicos Sem Fronteiras (MSF), quanto a ela, despachou 2.040 médicos e enfermeiros para o estrangeiro em 2003, 2.290 em 2004 [2]. A isso acrescentam‑se os cuidados efectuados no próprio território cubano, para onde frequentemente são encaminhados os doentes mais graves de qualquer país. Foi em Havana, por exemplo, que foi tratada Kim Phuc, essa rapariguinha cuja fotografia de Nick Ut tinha abalado o mundo, que corria nua numa estrada do Vietname, a pele queimada pelos bombardeamentos de napalm do exército americano. Cuba recebeu igualmente crianças e adultos, mais de 19.000 no total, vindos das três repúblicas soviéticas atingidas pelo acidente nuclear de Chernobil, em 1986.
Aproveitando a sua experiência na prevenção da SIDA (a predominância é de 0,09% face aos 0,6% dos Estados Unidos, por exemplo), Cuba ofereceu, durando a sessão extraordinária da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) reunida sobre o assunto, em Julho de 2001, «os médicos, pedagogos, psicólogos e outros especialistas necessários para aconselhar e colaborar nas campanhas de prevenção da SIDA e outras doenças. Os equipamentos e kits de diagnóstico necessários para os programas básicos de prevenção da SIDA, o tratamento anti‑retroviral para 30.000 pacientes...» E, se o projecto fosse adoptado, «seria suficiente que a comunidade internacional contribuísse com as matérias primas para os medicamentos. Cuba não retiraria nenhum benefício, e forneceria mesmo os salários do seu pessoal».
A proposta não foi avante. Mas 8 países de África e 6 Estados da América Latina beneficiam do projecto Intervenção Educativa sobre o VIH/SIDA, que permitiu a divulgação de programas de rádio e/ou de televisão, bem como a possibilidade de mais de 200.000 pacientes serem tratados e mais de um milhão de trabalhadores da saúde serem formados.
Actualmente, uns 14.000 médicos cubanos trabalham em barrios (bairros desfavorecidos) da Venezuela. Entretanto, Caracas e Havana puseram em marcha a operação “Milagro” (“Milagre”) que, durante os dez primeiros meses do ano 2005, permitiu devolver a vista, gratuitamente, a quase 80.000 venezuelanos dos quais muitos, vítimas de catarata ou glaucoma, tiveram de ser transferidos para Cuba para serem operados [3]. O programa diz mais amplamente respeito a latino-americanos e caribenhos atingidos pela cegueira e por outras deficiências oculares. A Venezuela contribui com o financiamento, Cuba com os especialistas, o material operacional e a infra-estrutura para os cuidados aos pacientes durante a duração do seu tratamento na ilha.
Até hoje, nenhum governo, nenhuma entidade privada ou organismo internacional tinha chegado a estruturar um programa médico mundial de tal amplitude, capaz de dar uma resposta a grande escala às pessoas com necessidade de cuidados. No âmbito da operação “Milagro”, está previsto operar aos olhos perto de um milhão de pessoas por ano...
Algumas horas antes de assumir as suas funções, foi com Havana que o novo presidente boliviano Evo Morales assinou, em Dezembro de 2005, o seu primeiro acordo internacional. Criava uma unidade cubano‑boliviana para praticar cuidados oftalmológicos gratuitos. Para além do Instituto Nacional de Oftalmologia de La Paz, recentemente equipado por Cuba, o programa disporá de um centro médico nas cidades de Cochabamba e de Santa Cruz. Os jovens médicos bolivianos que acabam de obter o seu diploma na Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) participarão neste programa.
A escola foi inaugurada em 1998, quando Cuba começava a enviar médicos para as Caraíbas e para a América Central. Situada numa antiga base naval, nos arredores de Havana, forma jovens que provêm de famílias pobres de todo o continente americano, incluindo dos Estados Unidos (mas há também centenas de estudantes africanos, árabes, asiáticos e mesmo europeus). As 21 faculdades de medicina de que Cuba dispõe participam nesta formação. Em Julho de 2005, os primeiros 1.610 estudantes latino‑americanos receberam o seu diploma. Cada ano, uns 2.000 jovens são admitidos na escola. Formação, alimentação, alojamento, bem como os elementos para a prática são-lhes fornecidos gratuitamente. Em troca, devem comprometer-se a voltar ao seu país para tratar dos seus compatriotas [4].
PROTESTOS E PRESSÕES POLÍTICAS
Inspiradas por considerações ideológicas, as ordens de médicos e de oftalmologistas de vários países lançaram campanhas contra esta iniciativa. A revista do Conselho Argentino de Oftalmologia, por exemplo, insurge-se contra os oftalmologistas cubanos: «Não sabemos se são médicos» [5]. De repente, o Conselho anunciou que vai «iniciar as diligências» com ONG humanitárias para financiar um programa semelhante.
Na Nicarágua, quando o presidente Arnoldo Alemán, apesar da amplitude do desastre provocado pelo furacão Mitch, começou por recusar a presença destes activos praticantes cubanos, na Venezuela desde 2002, e na Bolívia actualmente, os médicos ligados aos sectores conservadores – que concebem a medicina como um comércio junto de populações solventes e que recusam deslocar‑se aos bairros de lata – insurgiram‑se contra estes “médicos descalços”: «incompetência», «exercício ilegal da medicina», «concorrência desleal»... Em Abril de 2005, uma decisão judicial do Estado brasileiro de Tocantins obrigou 96 médicos cubanos que tratavam de indigentes a partir. Em desacordo com a decisão, o governador do Estado pôde apenas «reconhecer a coragem profissional dos médicos que foram aqui muito bem recebidos e [a quem] devemos agradecer».
Os protestos e pressões políticas das ordens de médicos aumentam à medida que cresce o número de jovens diplomados que chegam das universidades cubanas. Estes novos confrades poderiam fazer cair as tarifas ou mesmo oferecer gratuitamente uma parte dos seus serviços, deixando assim os cuidados médicos de ser um serviço elitista e mercador.
Uma ameaça pende de resto sobre o reconhecimento no estrangeiro dos diplomas obtidos em Cuba. No Chile, muitos jovens formados na ilha não puderam fazer validar os seus títulos médicos devido ao custo demasiado elevado das despesas. Mas, sublinha a BBC, se as Ordens de médicos da América Latina se obstinarem na sua oposição, «poderiam ter dificuldades em obter o apoio de uma população que tem cada vez menos acesso aos serviços de saúde e para quem este projecto aparece como uma pequena luz de esperança na escuridão» [6].
A situação mais difícil refere-se aos estudantes de nacionalidade americana, que arriscam uma pena de dez anos de prisão e multas que vão até 200.000 dólares. As leis do bloqueio proíbem-lhes com efeito a entrada em Cuba! No entanto, no seu país onde 45 milhões de pessoas vivem sem cobertura médica, os estudos para tornar-se médico custam cerca de 300.000 dólares.
Alguns consideram que esta ajuda “humanitária” seria apenas uma operação de propaganda, um “investimento” que permite ao governo de Havana colher apoios diplomáticos inesperados perante a hostilidade persistente dos Estados Unidos. Podem notar, por exemplo, que a eleição de Cuba para o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, criado em Março de 2006, foi conseguida, aquando de uma votação secreta, com o apoio de pelo menos 96 dos 191 Estados-Membros da ONU (enquanto, ao mesmo tempo, as candidaturas da Nicarágua, do Peru e da Venezuela, onde o pluralismo político é respeitado, não foram avante). Perante isso, um diplomata ocidental foi obrigado a reconhecer que o envio de médicos cubanos para o estrangeiro constitui «uma iniciativa que beneficia tantas pessoas que deveria ser aplaudida mesmo pelos seus inimigos políticos» [7].
[1] Em 2005, os beneficiários do programa encontravam-se nas zonas mais necessitadas de 6 países latino‑americanos e de 20 países africanos. No fim de 2005, mais de 500.000 partos, de 1.657.867 intervenções cirúrgicas e de quase 9 milhões de vacinações puderam ser realizados.
[2] De acordo com o seu relatório financeiro de 2004.
[3] Na maior parte dos países da região, a operação à catarata custa no mínimo 600 dólares.
[4] Vários projectos unem o governo da Venezuela ao de Cuba. Entre outros, o de formar gratuitamente 10.000 médicos latino‑americanos por ano, ou seja, 100.000 em dez anos, não apenas em universidades cubanas, mas também em faculdades em construção na Venezuela.
[5] Periódico Informativo Oftalmológico, n.º 37, Buenos Aires, 26 de Dezembro de 2005.
[6] BBC, 5 de Abril de 2001.
[7] BBC, ibid. http://www.infoalternativa.org/amlatina/amlatina026.htm
Hernando Calvo Ospina
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/amlatina/amlatina026.htm
Fim de Agosto de 2005... O furacão Katrina acaba de devastar o Sul dos Estados Unidos. As autoridades são rapidamente ultrapassadas pela amplitude da catástrofe. A governadora do Louisiana, Kathleen Babineaux Blanco, lança um apelo à comunidade internacional para pedir uma ajuda médica urgente. Em Havana, o governo cubano reage imediatamente. Propõe enviar para Nova Orleães, mas também para o Mississípi e para o Alabama, Estados igualmente afectados pelo ciclone, sob a forma de ajuda humanitária e num prazo máximo de 48 horas, um contingente de 1.600 médicos formados para intervir neste tipo de catástrofe. Trarão com eles todo o equipamento necessário e 36 toneladas de medicamentos. Mas esta proposta, bem como a feita directamente ao presidente George W. Bush permaneceria sem resposta, enquanto mais de 1.800 pessoas, sobretudo pobres, morriam, por falta de ajuda e de cuidados.
Este drama está ainda próximo quando, a 8 de Outubro de 2005, o Paquistão conhece, na região da Caxemira, um dos piores tremores de terra da sua história. As consequências humanas e sanitárias são dramáticas, sobretudo nas zonas mais deserdadas e mais isoladas do norte do país. No dia 15 de Outubro, um primeiro contingente de 200 médicos cubanos socorristas chega com várias toneladas de equipamento. Alguns dias mais tarde, Havana expede o material necessário para montar e equipar 30 hospitais de campanha, em zonas de montanha que, na sua maioria, nunca receberam a visita de um médico. Muitos habitantes descobrem a existência de um país chamado a Cuba.
TODO COMEÇOU NA ARGÉLIA
Para não ir contra a tradição neste país muçulmano, as cubanas – 44% dos quase 3.000 médicos deslocados para o Paquistão até Maio de 2006 – dissimulam os seus cabelos sob um lenço. O bom entendimento estabelece-se em pouco tempo: muitos paquistaneses aceitam que a sua esposa ou a sua filha sejam tratadas por um homem. No final de Abril de 2006, pouco tempo antes da sua partida, a equipa médica cubana tinha tratado de um milhão e meio de pacientes, principalmente mulheres, e efectuado cerca de 13.000 intervenções cirúrgicas. Só alguns pacientes atingidos por traumatismos muito complexos tiveram de ser transportados para Havana. O presidente Pervez Musharraf, grande aliado dos Estados Unidos e amigo de Bush, agradeceu oficialmente às autoridades de Havana e reconheceu que a ajuda deste pequeno país das Antilhas foi a mais importante de todas as recebidos por ocasião desta catástrofe.
A primeira brigada médica internacional cubana foi formada em 1963. Foi para a Argélia, que tinha acabado de se tornar independente, que se deslocaram então os 58 médicos e técnicos que a compunham. Em 1998, o governo cubano começou a estruturar a ajuda médica maciça às populações de países pobres atingidos por catástrofes naturais. Após a passagem dos ciclones George e Mitch na América central e nas Caraíbas, Havana ofereceu os seus médicos e enfermeiros para trabalhar no âmbito dos programas integrais de saúde. A República Dominicana, as Honduras, a Guatemala, a Nicarágua, o Haiti e Belize aceitam esta proposta.
No Haiti, onde a população humilde conhece uma falta crónica de cuidados médicos, Cuba oferece‑se para enviar uma ajuda médica maciça. Havana propõe mesmo, em 1998, ao governo francês, antiga potência colonial, uma espécie de associação humanitária para ir em ajuda à população haitiana. Mas Paris guardou silêncio, e optou finalmente, em 2004, por enviar tropas... Cuba mobiliza os seus médicos – 2.500 sucederam‑se desde 1998 – e tantas toneladas de medicamentos quanto a sua economia frágil lhe permite.
A eficácia e a gratuitidade da ajuda, o facto de estes novos “médicos descalços” intervirem em zonas aonde os seus confrades locais recusam ir (devido à pobreza da “clientela”, à insegurança ou à dificuldade de acesso...) fazem com que outros países, principalmente de África, peçam para beneficiar do programa. O pessoal de saúde cubano é pago pelo seu próprio governo.
De 1963 até ao final de 2005, mais de 100.000 médicos e técnicos de saúde intervieram em 97 países, sobretudo em África e na América Latina [1]. Em Março de 2006, 25.000 profissionais encontravam-se repartidos por 68 nações. Uma mobilização que mesmo a Organização Mundial de Saúde (OMS) não pode assegurar. A organização não governamental (ONG) Médicos Sem Fronteiras (MSF), quanto a ela, despachou 2.040 médicos e enfermeiros para o estrangeiro em 2003, 2.290 em 2004 [2]. A isso acrescentam‑se os cuidados efectuados no próprio território cubano, para onde frequentemente são encaminhados os doentes mais graves de qualquer país. Foi em Havana, por exemplo, que foi tratada Kim Phuc, essa rapariguinha cuja fotografia de Nick Ut tinha abalado o mundo, que corria nua numa estrada do Vietname, a pele queimada pelos bombardeamentos de napalm do exército americano. Cuba recebeu igualmente crianças e adultos, mais de 19.000 no total, vindos das três repúblicas soviéticas atingidas pelo acidente nuclear de Chernobil, em 1986.
Aproveitando a sua experiência na prevenção da SIDA (a predominância é de 0,09% face aos 0,6% dos Estados Unidos, por exemplo), Cuba ofereceu, durando a sessão extraordinária da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) reunida sobre o assunto, em Julho de 2001, «os médicos, pedagogos, psicólogos e outros especialistas necessários para aconselhar e colaborar nas campanhas de prevenção da SIDA e outras doenças. Os equipamentos e kits de diagnóstico necessários para os programas básicos de prevenção da SIDA, o tratamento anti‑retroviral para 30.000 pacientes...» E, se o projecto fosse adoptado, «seria suficiente que a comunidade internacional contribuísse com as matérias primas para os medicamentos. Cuba não retiraria nenhum benefício, e forneceria mesmo os salários do seu pessoal».
A proposta não foi avante. Mas 8 países de África e 6 Estados da América Latina beneficiam do projecto Intervenção Educativa sobre o VIH/SIDA, que permitiu a divulgação de programas de rádio e/ou de televisão, bem como a possibilidade de mais de 200.000 pacientes serem tratados e mais de um milhão de trabalhadores da saúde serem formados.
Actualmente, uns 14.000 médicos cubanos trabalham em barrios (bairros desfavorecidos) da Venezuela. Entretanto, Caracas e Havana puseram em marcha a operação “Milagro” (“Milagre”) que, durante os dez primeiros meses do ano 2005, permitiu devolver a vista, gratuitamente, a quase 80.000 venezuelanos dos quais muitos, vítimas de catarata ou glaucoma, tiveram de ser transferidos para Cuba para serem operados [3]. O programa diz mais amplamente respeito a latino-americanos e caribenhos atingidos pela cegueira e por outras deficiências oculares. A Venezuela contribui com o financiamento, Cuba com os especialistas, o material operacional e a infra-estrutura para os cuidados aos pacientes durante a duração do seu tratamento na ilha.
Até hoje, nenhum governo, nenhuma entidade privada ou organismo internacional tinha chegado a estruturar um programa médico mundial de tal amplitude, capaz de dar uma resposta a grande escala às pessoas com necessidade de cuidados. No âmbito da operação “Milagro”, está previsto operar aos olhos perto de um milhão de pessoas por ano...
Algumas horas antes de assumir as suas funções, foi com Havana que o novo presidente boliviano Evo Morales assinou, em Dezembro de 2005, o seu primeiro acordo internacional. Criava uma unidade cubano‑boliviana para praticar cuidados oftalmológicos gratuitos. Para além do Instituto Nacional de Oftalmologia de La Paz, recentemente equipado por Cuba, o programa disporá de um centro médico nas cidades de Cochabamba e de Santa Cruz. Os jovens médicos bolivianos que acabam de obter o seu diploma na Escola Latino-Americana de Medicina (ELAM) participarão neste programa.
A escola foi inaugurada em 1998, quando Cuba começava a enviar médicos para as Caraíbas e para a América Central. Situada numa antiga base naval, nos arredores de Havana, forma jovens que provêm de famílias pobres de todo o continente americano, incluindo dos Estados Unidos (mas há também centenas de estudantes africanos, árabes, asiáticos e mesmo europeus). As 21 faculdades de medicina de que Cuba dispõe participam nesta formação. Em Julho de 2005, os primeiros 1.610 estudantes latino‑americanos receberam o seu diploma. Cada ano, uns 2.000 jovens são admitidos na escola. Formação, alimentação, alojamento, bem como os elementos para a prática são-lhes fornecidos gratuitamente. Em troca, devem comprometer-se a voltar ao seu país para tratar dos seus compatriotas [4].
PROTESTOS E PRESSÕES POLÍTICAS
Inspiradas por considerações ideológicas, as ordens de médicos e de oftalmologistas de vários países lançaram campanhas contra esta iniciativa. A revista do Conselho Argentino de Oftalmologia, por exemplo, insurge-se contra os oftalmologistas cubanos: «Não sabemos se são médicos» [5]. De repente, o Conselho anunciou que vai «iniciar as diligências» com ONG humanitárias para financiar um programa semelhante.
Na Nicarágua, quando o presidente Arnoldo Alemán, apesar da amplitude do desastre provocado pelo furacão Mitch, começou por recusar a presença destes activos praticantes cubanos, na Venezuela desde 2002, e na Bolívia actualmente, os médicos ligados aos sectores conservadores – que concebem a medicina como um comércio junto de populações solventes e que recusam deslocar‑se aos bairros de lata – insurgiram‑se contra estes “médicos descalços”: «incompetência», «exercício ilegal da medicina», «concorrência desleal»... Em Abril de 2005, uma decisão judicial do Estado brasileiro de Tocantins obrigou 96 médicos cubanos que tratavam de indigentes a partir. Em desacordo com a decisão, o governador do Estado pôde apenas «reconhecer a coragem profissional dos médicos que foram aqui muito bem recebidos e [a quem] devemos agradecer».
Os protestos e pressões políticas das ordens de médicos aumentam à medida que cresce o número de jovens diplomados que chegam das universidades cubanas. Estes novos confrades poderiam fazer cair as tarifas ou mesmo oferecer gratuitamente uma parte dos seus serviços, deixando assim os cuidados médicos de ser um serviço elitista e mercador.
Uma ameaça pende de resto sobre o reconhecimento no estrangeiro dos diplomas obtidos em Cuba. No Chile, muitos jovens formados na ilha não puderam fazer validar os seus títulos médicos devido ao custo demasiado elevado das despesas. Mas, sublinha a BBC, se as Ordens de médicos da América Latina se obstinarem na sua oposição, «poderiam ter dificuldades em obter o apoio de uma população que tem cada vez menos acesso aos serviços de saúde e para quem este projecto aparece como uma pequena luz de esperança na escuridão» [6].
A situação mais difícil refere-se aos estudantes de nacionalidade americana, que arriscam uma pena de dez anos de prisão e multas que vão até 200.000 dólares. As leis do bloqueio proíbem-lhes com efeito a entrada em Cuba! No entanto, no seu país onde 45 milhões de pessoas vivem sem cobertura médica, os estudos para tornar-se médico custam cerca de 300.000 dólares.
Alguns consideram que esta ajuda “humanitária” seria apenas uma operação de propaganda, um “investimento” que permite ao governo de Havana colher apoios diplomáticos inesperados perante a hostilidade persistente dos Estados Unidos. Podem notar, por exemplo, que a eleição de Cuba para o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, criado em Março de 2006, foi conseguida, aquando de uma votação secreta, com o apoio de pelo menos 96 dos 191 Estados-Membros da ONU (enquanto, ao mesmo tempo, as candidaturas da Nicarágua, do Peru e da Venezuela, onde o pluralismo político é respeitado, não foram avante). Perante isso, um diplomata ocidental foi obrigado a reconhecer que o envio de médicos cubanos para o estrangeiro constitui «uma iniciativa que beneficia tantas pessoas que deveria ser aplaudida mesmo pelos seus inimigos políticos» [7].
[1] Em 2005, os beneficiários do programa encontravam-se nas zonas mais necessitadas de 6 países latino‑americanos e de 20 países africanos. No fim de 2005, mais de 500.000 partos, de 1.657.867 intervenções cirúrgicas e de quase 9 milhões de vacinações puderam ser realizados.
[2] De acordo com o seu relatório financeiro de 2004.
[3] Na maior parte dos países da região, a operação à catarata custa no mínimo 600 dólares.
[4] Vários projectos unem o governo da Venezuela ao de Cuba. Entre outros, o de formar gratuitamente 10.000 médicos latino‑americanos por ano, ou seja, 100.000 em dez anos, não apenas em universidades cubanas, mas também em faculdades em construção na Venezuela.
[5] Periódico Informativo Oftalmológico, n.º 37, Buenos Aires, 26 de Dezembro de 2005.
[6] BBC, 5 de Abril de 2001.
[7] BBC, ibid. http://www.infoalternativa.org/amlatina/amlatina026.htm
Hernando Calvo Ospina
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/amlatina/amlatina026.htm
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