O meu primeiro trauma cinematográfico foi televisivo e consistiu na visualização inesperada do afogamento de dezenas de crianças negras, de pés e mãos amarrados juntos atrás das costas, empurradas a pontapé para as ondas por polícias brancos armados, enquanto uma audiência aplaudia com palmas cada afogamento, sentada em magote na areia da praia, sob a ameaça das armas. O meu pai esclareceu-me que não era filme, era verdade, que os espectadores eram os familiares das vítimas e que não faziam nada e até aplaudiam porque estavam aterrorizados e a tratar de se manter vivos a eles mesmos. O segundo foi filme e mesmo no cinema: horrorizada, vi Ben Hur coberto de sangue depois de arrastado pelo carro de cavalos. A estes seguiram-se muitos outros e como a idade não tenha minorado a minha susceptibilidade digestiva às imagens que expõem, de forma documental ou simbólica, o sofrimento, a dor, a violência, aprendi a dosear cuidadosamente o seu consumo. Se, por um lado, conscientemente me recuso a fechar os olhos ao sofrimento do mundo, por outro evito deixar que mo sirvam como circo. O meu ávido consumo de cinema põe algumas dificuldades a uma triagem efectiva. Mas um realizador tem que ter o condão de estrututurar a sua estória em algo de muito envolvente e chegar-me bem fundo ao coração antes de convencer-me que vale a pena ficar a ver imagens desse tipo como imprescindíveis à obra em questão e com frequência abandono a sala ou adormeço poucos minutos depois do filme começar. E à priori estão postos na beira do prato realizadores circenses por excelência e quase exclusiva definição. Um destes autores de faca e alguidar é o Mel Gibson. Claro, quando não se vê determinado filme, também não se pode criticar a sua realização. Mas neste mundo violentador, a atitude descaradamente intrusiva da publicidade não se fica pelos caminhos do quotidiano, com os seus zigliões de cartazes e mensagens entrando-nos olhos e ouvidos apenas por estarmos a ir de um lado a outro nas nossas vidas. E foi assim, sentada no cinema para assistir a um filme que paguei a bom preço, que imagens duma extrema violência me foram enfiadas olhos adentro, tentando vender-me o trabalho de Gibson sobre Jesus, e convencendo-me, em poucos segundos, que seria um dinheiro a poupar zelosamente e que não valia a pena ver para poder sequer dizer mal. Mais recentemente, preparava-me para ver Borat, recebi nova dose deste circo. Mas desta vez houve alguma coisa que me pôs a pulga atrás da orelha. Não eram só sangue, adrenalina, medo e violência em catadupa entre picados vertiginosos da câmara, aqueles tan-tans e urros selvagens traziam sub-texto… E na véspera de ano novo, um amigo meu que é projeccionista e já viu o filme, saiu-se de repente com um desabafo onde senti um ponta de mágoa violentada: "este Mel Gibson gosta mesmo de sangue"… "(…) gosta mesmo de sangue"? Isto lembrou-me o comentário de Helmholtz (no "Admirável mundo novo", A. Huxley) a respeito de Shakespeare, quando o Selvagem lhe tenta, debalde, porque este está condicionado para ignorar a paixão individual, trasmitir o infinitamente belo na vontade de Julieta em erguer o leito nupcial na capela mortuária de Thibald: "(…) Porque é que esse bom velho era um tão maravilhoso técnico de propaganda? Porque dispunha de tantas coisas insensatas, loucamente dolorosas, pelas quais se podia exaltar. É preciso estar-se ferido, perturbado; pois sem isso não se encontram as expressões verdadeiramente boas, penetrantes, as frases de raio X.(…)" E a complementar este pensamento, dois capítulos à frente, as considerações de sua Forderia o Admnistrador Mustafá Mond, (…)" é evidente que a estabilidade, como espectáculo, não chega aos calcanhares da instabilidade. E o facto de se estar satisfeito não tem nada do encanto mágico de uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a tentação, ou de uma derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa.(…) Toda a ordem social seria desorganizada se os homens se puzessem a fazer coisas por iniciativa própria (…) a civilização industrial só é possível quando não há renúncias. O gozo até aos limites extremos impostos pela higiene e pelas leis económicas (…) a civilização não tem a menor necessidade de nobreza ou de heroísmo, Essas coisas são sinónimo de incapacidade política. (…)" E conclui, quando o Selvagem lhe fala da necessidade das lágrimas: "(…) Os homens e as mulheres têm necessidade que de vez em quando lhe estimulem as cápsulas supra-renais. É uma das condições da saúde perfeita. Foi por isso que tornamos obrigatórios os tratamentos de S.P.V. (…) – Sucedâneo de Paixão Violenta. Regularmente, todos os meses, irrigamos todo o organismo com uma torrente de adrenalina. É o equivalente fisiológico completo do medo e da cólera. Todos os efeitos tónicos (…) sem nenhum dos seus inconvenientes." Voltando ao Mel Gibson e ao seu recente Apocalypto, parece-me evidente o papel de tónico social deste género de coisa e que as multidões procurem em tais filmes os efeitos com que compensem a ausência de nobreza ou heroísmo, de actos de iniciativa própria e coragem política que arrastam consigo as inseguranças da liberdade e da responsabilidade pelas consequências. A necessidade de molho de tomate do público vai de mãos dadas com a receita de Mel Gibson ao cozinhar fascínios de horror enlatado com a mestria apurada dum técnico de propaganda pós-moderno. Não tão evidente, porque não o vi, surge-me o seu efeito condicionador num artigo de Liza Grandia em http://www.commondreams.org/views06/1217-24.htm , "the sober racism of Mel Gibson Apocalypto", e que fala exactamente do sub-texto que pressenti ao ver o trailer de anúncio. Porque me foi ali servido, em concentrado, o suposto estado permanenente de êxtase adrenalítico dos Selvagens a dois passos de serem salvos da sua incapacidade social pela "nossa civilização", sem sombra de referência a um quotidiano urbano e civilizado em si mesmo. Como no tal artigo muito bem se compara, o filme descreve qualquer coisa como seria ver a civilização americana dita em meia dúzia de traços, fazendo acontecer no espaço duma semana as torturas de Abu Ghraib e Guantanamo, as experiências de Tuskegee, lichamentos dos Ku Klux Klan, a batalha de Wounded Knee, Campos de concentração de Japoneses, o "Trail of Tears" (http://en.wikipedia.org/wiki/Trail_of_Tears) , as perseguições às bruxas de Salem, as cruas execuções noTexas, os espancamentos policiais de Rodney King, o massacre no campo de batalha de Gettysburg e as bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki. Dum retrato minimamente fiel do que foram realmente os Maias, e do que são os índios seus descendentes, nem sombra de intenção. Não fui nem vou ver o filme. A única diferença de outras milhentas produções hollywodescas é que, neste, é levado a um extremo visível que é para racistas que estamos a ser constantemente condicionados, um racismo subtil que nos assegure de como é evidente e claro o nosso direito a uma estável felicidade sem iniciativas próprias nem paixões incandescentes, mas com uma saudável raiz de ciência e eficiência racional; e como é a incapacidade dos selvagens em estruturar sociedades funcionais sem uma dose horrenda de caos e sofrimento estrondosamente culpada do estado em que se encontra o terceiro mundo, apesar dos nossos bélicos esforços para civilizá-lo. As palavras sucedem-se a ditar características estranhamente coincidentes, ao governo americano já se chama "admnistração-qualquer-coisa" (Bush, actualmente) e a propaganda para a ordem e a estabilidade aniquila, por direito próprio, qualquer tentativa de divulgação da verdade como "intenção terrorista". Porque é para furtar-se aos "terrores" da consciência e da liberdade individual que, à sociedade da insegurança e da precariedade, veremos suceder em condomínio fechado, em fortalezas de fronteira, a sociedade da plena satisfação de cada macaco no seu galho, do consumo, da uniformização e do circo, bem servida, da cerveja ao prosac, de "somas" específicos para todas as ocasiões, de admnistrações cada vez mais masculinas, de mulheres cada vez mais "pneumáticas" e menos procriativas, de prazeres cada vez menos proibidos mas mais oficialmente regulamentados; enquanto os selvagens, presos da sua própria incapacidade civilizacional, se matam uns aos outros nas reservas do sul. Ah, admirável mundo novo…
Noosfera
http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=113006&cidade=1
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