quarta-feira, janeiro 17, 2007

As Vacas Sagradas da França

Para os defensores do “fundamentalismo de mercado”, o problema da França se resume ao seu apego as idéias “atrasadas” relativas à seguridade social, a legislação trabalhista e o sistema de aposentadorias.

Em artigo que leva o sugestivo título “Atraso na cabeça”, publicado na revista “Primeira Leitura” de março de 2006 (pág. 88), o autor, Fernando Eichenberg, a pretexto de comentar dois livros recém editados na França, expõe sem rodeios o real pensamento dos “fundamentalistas do mercado” sobre a situação na França.

Segundo o artigo, enquanto alguns países estariam tentando tirar partido das mudanças radicais do mundo para “recuperar o atraso” de suas economias, outros “perdem o trem da história” por se recusarem a promover as “reformas indispensáveis” exigidas pelos novos tempos.

Quais seriam os primeiros? Na opinião do autor a China, a Índia e, por incrível que pareça, o Brasil. E os segundos? São o Japão, a Alemanha, a Itália e a França. Como o Brasil, o país com a menor taxa de crescimento entre os “emergentes”, e um ambiente considerado francamente “hostil aos negócios”, se enquadra no primeiro grupo, escapa ao nosso raciocínio.

Quanto à China e a Índia não há dúvidas, a formula do sucesso é clara: Mão-de-obra barata, ausência de movimentos sindicais independentes e leis sociais que equivalem ao quadro do século 19 na Europa. Tudo isso seria a verdadeira “modernidade”.

Já o “atraso” estaria entre os países que possuem as mais generosas estruturas de bem-estar social do primeiro mundo. Esse é o verdadeiro “pecado mortal” para os fundamentalistas do mercado, a nova religião da globalização.

De todos os “pecadores” o pior seria a França que, segundo o autor do artigo, sofre de “psicose maníaco-depressiva” porque em vez de admitir a “morte do passado” continua a venerar suas “Vacas Sagradas”, a saber: Seu modelo de seguridade social, a legislação trabalhista, os serviços públicos, o sistema de aposentadoria e a política agrícola.

Em outras palavras, tirando esse último item, o autor identifica toda e qualquer conquista social da classe trabalhadora como um sério empecilho à “modernidade” e ao desenvolvimento da economia global. As classes trabalhadoras dos países do ”atraso” devem ser logo convencidas a se equiparar aos trabalhadores da China e da Índia, esses sim, “modernos”e “globalizados”, sem esquecer os do Brasil!.

Não faltou o habitual elogio aos Estados Unidos, que segundo o autor “agem para reafirmar a sua liderança”. O elementar fato de que os EUA enfrentam os mesmos problemas, apenas com algumas variações, não parece abalar a convicção do autor. É preciso lembrar que nos EUA a classe média está virtualmente desaparecendo e que é o país com a maior população carcerária do planeta?


Além disso, quem disse que os EUA “resolveram” seus problemas com seu sistema de seguridade? O déficit previdenciário deles e tão explosivo quanto o de qualquer outro país. Mas os EUA vêm aos poucos adotando o novo caminho da “salvação”. Cortes cada vez mais severos nos programas sociais (largamente compensados pelo aumento nos gastos militares) contribuem para lançar cada vez mais cidadãos do país na “modernidade”.

O “padrão Wal-Mart” de empregos e os “MacJobs” fazem a alegria dos neoliberais. Isso porque tem a enorme vantagem de aliviar as estatísticas de desemprego. As constantes reclamações de que os empregos nos EUA “pecam pela falta de qualidade” conforme demonstra com desenvoltura o estudo "A Armadilha da Qualidade de Emprego na América", publicado em fins de 2004 são solenemente ignoradas.

Entre as conclusões do estudo: “...a admissão cresceu em outras indústrias na ponta mais baixa da escala hierárquica, ou seja, em supermercados, lojas de roupas, serviços de lavanderia etc. Este último grupo de indústrias foi responsável por 19% do crescimento das vagas no período. Somando tais segmentos, os empregos de pior qualidade responderam por cerca de 44% das contratações no período de março a junho [de 2004]”.

É o que consta em artigo publicado na Folha de S. Paulo de 1/8/2004, sob o título “Nos EUA, vagas pecam por falta de qualidade“. Ali se afirma que “Apesar de haver alguma melhora nos números de contratações no mercado norte-americano nos últimos meses, não há o que comemorar quando o assunto é a qualidade das vagas, avalia Stephen Roach, economista-chefe do Morgan Stanley”.
O artigo continua no mesmo tom: “Ao analisar detalhadamente os números das diferentes indústrias de março a junho de 2004, Roach diz que as principais fontes de emprego foram restaurantes, agências de contratação temporária e serviços de construção. Juntos, eles responderam por 25% do crescimento das contratações no período”.
Coincidentemente, no Brasil, apontado como entre os “modernos” da globalização, temos um artigo da mesma Folha de S. Paulo do mesmo dia, com o título “Crescem os empregos com salários baixos”, onde podemos ler que:

“Cresce o número de empregos formais no país, mas é cada vez mais precária a qualidade das vagas criadas. Sete em cada dez trabalhadores que entraram no mercado de trabalho com carteira assinada ou voltaram para ele entre janeiro e junho deste ano receberam entre meio (R$ 130) e dois salários mínimos (R$ 520)”.
Em todo o caso, Eichenberg é bem objetivo: “A França estaria hoje numa situação pré-revolucionária e o futuro aponta duas possibilidades: o aumento da violência política ou a aceitação de mudanças necessárias e de uma ruptura radical”.

A tal “ruptura radical” significaria “um redirecionamento do Estado de bem-estar social para a produção, a atividade e a inovação”. Fórmula vaga e contraditória que em outras palavras, significa o desmantelamento sistemático do próprio Estado de bem-estar social.

Os últimos acontecimentos na França parecem confirmar as hipóteses mais pessimistas, com o perigo de um rápido “contágio” para outras nações, as voltas com os mesmos problemas.
http://lauromonteclaro.sites.uol.com.br/

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