segunda-feira, janeiro 29, 2007

A Cultura como Instrumento de Normalização, Inclusão, Coesão e Controlo Social

Apesar de tanta desigualdade, de tanta exclusão económica e social, não se passa nada porque o poder trata de garantir que todos estejamos bem integrados culturalmente. Assim, longe de defender que a cultura das instituições chegue aos mais desfavorecidos, cheguei a uma conclusão que foi um ponto de partida: libertar-nos desse alicerce da "cultura" far-nos-á menos obedientes, menos passivos e mais criativos. Por esse caminho cheguei a conceitos e ideias que foi necessário pôr em questão. Além disso, encontrei novas interrogações e novos caminhos pelos quais me aventurei com a ajuda de variadas leituras - curiosamente casuais, algumas- em alguns livros e bastantes artigos de fanzines e revistas que o meu requentado cérebro ia filtrando e estruturando.
Mas tudo continuava a ser notas, ideias mais ou menos dispersas, unidas com alfinetes. Quando a Ekintza Zuzena me propôs converter as palestras num texto, a ideia seduziu-me, por um lado, porque teria que solidificá-lo, preencher os espaços vazios, sistematizá-lo; mas, por outro lado, a preguiça vencia-me. Quando tudo eram notas, as possibilidades, os caminhos, as sugestões, as intuições eram múltiplas, nada era demasiado categórico; ao escrevê-lo, todas essas potencialidades se evaporavam e, pouco a pouco, iria ficar como algo rígido, fechado, doutrinal e até soaria um pouco, ou bastante, forçado. Tentei que isso acontecesse o menos possível. O caminho seguido explica também que o texto aprofunde pouco; desenvolve-se mais em extensão do que em profundidade. O texto expande-se relacionando, unindo, vinculando para apresentar a necessária visão de uma paisagem desoladora e não demorando-se a analisar uma planta. E, apesar de vê-la assim, desoladora, não ser derrotista. Seria o mais fácil. Como se diz nessa espécie de conclusão final, só é preciso saber, querer e conseguir olhar mais além das constrições quotidianas, negar a nossa colaboração diária, desenvolver uma sensibilidade que nos permita perceber de que possibilidades nos estão a privar constantemente… Como quase todas, "cultura" é uma palavra perfeitamente vazia; vazia até à perfeição. O conceito que se esconde por trás dessa palavra não é, de forma alguma, inocente. No entanto, ouvimos falar pomposamente de cultura, como se de uma categoria universal e inamovível se tratasse. A umas circunstâncias determinadas, a um determinado tipo de sociedade, de relações sociais, de relações de produção corresponde uma cultura determinada. É preciso, portanto, colocar depois do substantivo os apelidos que lhe correspondam, é preciso relativizá-la; neste caso: cultura capitalista, cultura consumista, cultura mediatizada e mediática, cultura especulativa e espectacular. Quem tem o poder fabrica a realidade à sua medida e fá-lo por intermédio da cultura. A cultura vem a ser o conjunto mais ou menos complexo de elementos cuja missão é legitimar essa sociedade; está encarregada de reproduzi-la, de perpetuá-la. A cultura é necessária para criar um consenso sobre o tipo de sociedade, apresentando-a como a única possível, a normal, a natural, a melhor; normalizando, assim, uma realidade que, se fôssemos capazes de encarar com outros olhos, nos daríamos conta de que, talvez, não seja tão normal. A cultura é o principal factor de consenso e coesão social. Por isso, uma sociedade baseada na legitimidade que o bem estar material lhe outorga, reforça, em momentos de crise, o controlo cultural sobre os cidadãos. Assim, as franjas mais desfavorecidas economicamente, as que poderiam questionar uma sociedade baseada no ter, já que elas não têm, apenas articulam contestação, questionamento, protesto. Sobre os excluídos económica e socialmente, o poder deve potenciar a inclusão cultural, para que não se produza uma fractura no sistema. Um breve parêntesis para um par de reflexões de rasante. Não são só "os que não têm" os que podem pôr em questão um sistema baseado no ter. Também, e quiçá em maior medida, poderiam fazê-lo "os que têm de sobra", ao comprovar que esse ter não os faz mais felizes. E isto sucede, porque a nossa sociedade não se sustenta no ter, mas no alcançar, no conseguir; o crescimento ilimitado e irreflectido, com o que isso implica de eterna abolição do presente em função de um futuro que nunca chegará. Temo que, no âmbito psicológico, os efeitos deste mecanismo sejam mais demolidores do que no económico ou no ecológico. Da mesma forma que, nos últimos séculos, o relógio se entronizou como objecto individual e público essencial, o tempo esfumou-se, desapareceu, derrubou-se. García Calvo fala da natureza essencialmente reaccionária do tempo. J. E. Cirlot afirmou que, nos últimos séculos de história, o homem foi trocando, a ritmo acelerado, espaço e tempo por objectos. Com isso, o homem vai-se transformando também em objecto. O relógio, o dinheiro, o trabalho, santíssima trindade à qual regressaremos. Como dizíamos, o poder tratará de incluir culturalmente os excluídos economicamente. Não os inclui, obviamente, digamos, numa cultura de elite, mas numa de segunda ordem, de terceira classe. A palavra popular" sofreu uma modificação semântica significativa e interessada. Há algumas décadas, "popular" significava feito pelo povo - ultrapassa os limites deste texto ajuizar sobre o que quereria isto dizer -; hoje, por "popular" ou "pop" entende-se o que é feito para consumo do povo. O povo não é, hoje, criador de cultura, é sujeito passivo, consumidor, espectador, utilizador, porque se impôs a cultura do consumo; tudo nos chega já feito, fabricado, pronto a consumir. O capitalismo conseguiu fazer-nos livres, livres para votar e para eleger de entre um amplo leque de mercadorias. E é neste sentido que o povo deixou praticamente de existir; o poder converteu-nos em indivíduo ou em massa. Desta usurpação que o poder perpetrou sobre o "popular", transformando-o em "massivo", e dos seus efeitos, fala Antonio Méndez Rubio no seu recente e muito recomendável livro "Encrucijadas. Elementos de la crítica de la cultura": "Do lado da recepção, a integração que proc ura o massivo, procura uma amálgama de diferenças económicas e de poder, da ameaça que implica a própria existência da underlying population, a partir da igualdade formal do consumo". Assim, valerá a pena lutar por uma integração cultural maior, de maior nível, ou valerá mais a pena sairmos, na medida do possível, de um sistema que nos oprime e nos consome? O empenho, creio, talvez utopicamente, deveria centrar-se em desapertar as ataduras desta inclusão cultural; mas aquilo pelo que não deveríamos trabalhar é por sustentar o sistema. Mais do que o humanismo e do que os princípios ilustrados, e dada a situação na qual nos encontramos, é necessária uma reflexão audaz sobre os benefícios da cultura e sobre a sua serventia - e não penso apenas nos mais imediatos e evidentes. Reflectir, por exemplo, sobre a natureza das campanhas de promoção do livro e da leitura.
É evidente que a pobreza e o baixo nível cultural vão de mão dada. Não vale a pena pensar muito sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. Podemos comprovar, nas nossas cidades, como é nos bairros mais degradados que se encontram as escolas com maiores índices de insucesso escolar e de crianças e jovens "problemáticos". Não podemos esquecer que esta é uma das engrenagens que permite ao Estado pôr em marcha e legitimar a sua necessária maquinaria repressiva, a sua violência fundamental. A marginalização e a delinquência; uma parcela cultural que parece não interessar ao grande público. No País Basco / Euskadi estamos a viver umas transformações culturais profundas, que correspondem, por outro lado, a um fenómeno mundial que Ramón Fernandez Durán analisou atentamente no seu livro "La explosión del desorden". Até há alguns anos predominava, aqui, a cultura operária. O indivíduo interessava ao sistema enquanto produtor; o seu meio vital e simbólico era a fábrica. Assistimos ao fim desse modelo. Hoje, o indivíduo, na sociedade do suposto bem-estar, interessa enquanto consumidor. O centro já não é a produção, isso deslocou-se geograficamente para outros países, onde se pode produzir de forma mais barata e, portanto, gerar mais lucro. Países geralmente pouco democráticos, cujos trabalhadores não gozam dos privilégios que desfrutam os trabalhadores na democracia; chegaram a ter tantos direitos, que o melhor foi fazê-los desaparecer, não os direitos, mas a própria figura do operário. É em algo assim que consiste a famosa globalização. Aqui, a fábrica já não é trabalho. As fábricas desapareceram, praticamente, da paisagem. Hoje, o meio vital e simbólico, o espaço do homem, transferiu-se para o Grande Centro Comercial, o grande totem do consumismo. A monumentalidade épica das fábricas é, hoje, usurpada pelos macrocentros comerciais - ou pelo Guggenheim, outro grande centro comercial-cultural. Podemos ir mais longe e afirmar que o espaço simbólico do homem é, hoje, a realidade virtual do écrã, sempre ligado, do televisor, ou do computador. As pessoas já não se encontram numa praça, nos bares; as pessoas encontram-se no hiper, ao qual vão passar as suas tardes de sábado. Confluência de vida social e consumo com luz e ar artificiais. Espaços antes ocupados pelas fábricas nos quais, hoje, se levantam Grandes Centros Comerciais. A cultura, o ócio, é uma questão de consumo; a cultura é uma indústria, uma das mais rentáveis. Falando do seu filme "Charles, mort ou vive", o realizador suíço Alain Tanner afirma: «Adeline sonha que Genebra se converte numa cidade de fábricas, porque, diz, "horroriza-me esta cidade de parques, de instituições internacionais, em que não há fábricas, não há operários, esta cidade em que não se pode, de forma alguma pisar a relva". A eliminação dos signos do trabalho unida a um controlo social rígido. As esperanças políticas da juventude europeia foram substituídas pelo consumo massivo de hamburgers e pelas viagens organizadas (a substituição das duas livrarias francesas Maspero por duas agências de viagens simboliza este fenómeno)». Produziu-se, portanto, um deslocamento da cultura operária para a cultura do consumo. Os valores positivos dessa cultura operária estão a desaparecer: valores como a solidariedade; a confiança na própria força ao ver-se resguardado por muitos outros nas mesmas circunstâncias; a capacidade de tomar posição e lutar por reivindicações e direitos; uma certa cultura de rua, espaço onde as pessoas se encontravam… Que esses valores desapareçam é um perigo que se traduz em feitos como o retrocesso dos movimentos de moradores ou a pujança das Empresas de Trabalho Temporário (ETT) e a escassa contestação que geram - fez-se desaparecer a figura do operário solidário em prol da do indefeso jornaleiro urbano. Nas nossas cidades esvaziam-se as ruas e as praças e enchem-se os Centros Comerciais. O ócio une-se directamente ao consumo. E isto é frustrante para quem não tem capacidade económica, ainda que mesmo esse vazio esteja preenchido pelas "populares" lojas dos 300. Que fazer? Reivindicar o nosso direito a consumir ou defender outro modelo? Há um livro cujo título resume isto na perfeição: "Da guerra de classes à guerra de frases. Da política à publicidade". Actualmente, a política - a luta por um mundo melhor- desapareceu, já que, pelos vistos, o melhor mundo "razoavelmente" possível é este. Existe um autêntico consenso, praticamente todos os políticos estão de acordo, no essencial, com o modelo vigente; é tudo uma questão de ir dando um jeito às suas disfunções, um retoque, leves matizes… e de muita retórica. A política converteu-se no saber técnico, de profissionais. Os poucos que não estão de acordo são demonizados como inimigos da sociedade. Nisso deve consistir o famoso fim das ideologias. Hoje, a luta tem lugar entre produtos, para que consumamos; os slogans publicitários e televisivos enchem a nossa vida. A publicidade cria a realidade. A rentabilidade económica é tudo o que importa e tudo é encaminhado para que o indivíduo a gere. José Saramago escreveu que "a única coisa que move e desenha o destino do homem, actualmente, é o dinheiro". O dinheiro é o detentor de todas as prerrogativas que até Nietzche correspondiam a Deus: é omnipresente, omnipotente, não é tangível nem corpóreo, mas pode encarnar e viver entre nós quando a fé afrouxa, aparece aos que crêem nele e condena os descrentes. O que não se vende ou transmite mediaticamente é como se não existisse - a conhecida teoria do desaparecimento do real, de P. Virillo - e, pior, o que se vende deixa de existir. E, hoje, para vender, faz-se espectáculo até dos sentimentos. Vamos ver por alto, porque ultrapassaria o conteúdo deste texto, quiçá os dois pilares básicos deste estado de coisas. O primeiro, claro, é a educação. Um sistema educativo que encurrala, desde o princípio, a criatividade, a curiosidade, o desejo, e fomenta a competitividade, a obediência, a aceitação acrítica. Tudo com o objectivo de formar indivíduos no controlo e na produtividade; longo caminho até ao mercado de escravos, perdão, queria dizer, de trabalho, regido, apesar dos disfarces, por um sistema de prémios e castigos. Os pais que queiram que os filhos saiam dessa norma têm bastante dificuldade, já que o nosso sistema educativo é obrigatório - outro dos logros do pensamento ilustrado -; as experiências positivas de umas quantas escolas livres dispersas por aqui e por ali afogam-se perante os obstáculos do poder. A realidade e a função da universidade são tão evidentes que não vale a pena entrar nelas; só apontaremos a cada vez maior e interessada hiperespecialização como um dos factores que mais influi no estado das coisas. Quanto mais pontual for o nosso conhecimento, mais indefesos estaremos. Conhecemos os comos e as suas aplicações, mas desconhecemos o quê, o para quê, o porquê. O nosso conhecimento acaba por ser instrumental, somos simples engrenagens de uma grande maquinaria que aprendemos a não ver. Juntamente com o sistema educativo, outro pilar básico da estrutura cultural vigente é a indústria da comunicação. Macrogrupos que controlam e produzem a informação, a cultura e a ideologia - ou a falta dela. A indústria do audiovisual está à cabeça deste sector. Televisão, vídeo, telefonia, computadores, publicidade, jornais, revistas, livros, cinema… A participação, neste sector, dos grandes capitais financeiros e dos grandes interesses que estão em jogo, dada a sua importância estratégica, faz com que se confundam os conceitos de indústria cultural, grupo de comunicação e poder. De quarto poder, os meios de comunicação converteram-se no poder essencial, já que, como afirmávamos antes, o écrã - e a realidade virtual que mostra- ergueu-se como o espaço simbólico do homem. As pessoas encontram-se cada vez menos em praças e bares e cada vez mais, de forma autista, em torno do televisor, ou na internet. A pluralidade da oferta é um grande engano, uma máscara; quando não obedece aos interesses do poder, deixa de existir. Comprovámo-lo lendo o programa dos cinemas: umas quantas superproduções americanas preenchem os cinemas - para maior orçamento menor criatividade é uma lei que parece cumprir-se sempre- e as películas que merecem ser vistas nunca chegam aos écrãs de uma cidade como a nossa. Fazendo zapping com o telecomando - a autêntica essência da democracia!- comprovamos também a uniformidade e a incultura de 95% dos produtos que nos oferecem os mil canais a que temos acesso. Os programas informativos - seria mais adequado chamar-lhes uniformizadores - são, pela sua transcendência, um caso à parte. Uma televisão como a espanhola tem correspondentes numas 10 cidades, quase todas do primeiro mundo, claro; o resto da informação provém das agências, o maior sistema de desinformação e propaganda do Sistema Único: uma única mensagem difundida por milhares de altifalantes que deixa bem claro quem são os bons e quem são os maus. O mundo editorial também não dá provas de uma maior heterogeneidade. Sete editoras cobrem 80% do mercado de livros no Estado espanhol e a própria dinâmica do mercado do livro leva ao entrincheiramento das pequenas editoras que não contem com um forte apoio de outros sectores; o mesmo se pode dizer das pequenas livrarias em prol das grandes superfícies impessoais onde unicamente importam critérios mercantilistas. O pensamento é cada vez mais de sentido único, o que eles marcam. A cultura parece-se, cada vez mais, com um mercado global, onde uns, poucos, vendem e outros, muitos, nos consumimos perante os infinitos invólucros da mesma mensagem. Voltemos à televisão, meio chave, pela sua enorme influência no modo de vida e na mudança das mentalidades. Há quem tenha afirmado que, sem a televisão, um sistema como a moderna democracia seria impensável. Existe, na mitologia grega, um ser monstruoso - monstruoso não quer dizer feio, os monstros são, frequentemente, seres "bonitos", fascinantes, atraentes -, a Medusa. A Medusa exercia uma atracção vertiginosa sobre os homens. Se estes não a olhavam, não havia perigo, mas se, não conseguindo resistir ao seu fascínio, a contemplavam… Quem a olhava ficava petrificado; a Medusa apanhava e congelava no seu olhar todos os olhares. Bonita metáfora desse feitiço e dessa insensibilização que a televisão vai causando em nós. A televisão mostra-nos quase tudo - isso sim, devidamente montado e ordenado pelo poder -, e bombardeia-nos com a sua informação e o telespectador - o antes denominado "povo"- substitui a acção pela informação; o critério próprio é uma meta heróica, o que vai gerando uma sociedade mais obediente e passiva. A televisão vende-nos a representação da realidade como se fosse a própria realidade; vai crescendo, assim, a experiência mediatizada em detrimento da directa, da participação. A televisão converte a realidade em espectáculo; espectacularização da vida através da sua representação. Essa grande teatralização mediática a que assistimos no Verão passado, à volta do assunto Miguel Ángel Blanco, demonstra bem o poder da televisão como geradora da realidade, assim como a sua capacidade para se converter no democrático altar do sacrifício. Utilizando a SIDA como metáfora, alguém escreveu que a televisão é para a imaginação e para a criatividade, e, portanto, para a crítica, o que o vírus é para o ADN. O que fica claro é que a vida afectiva do homem se dirige cada vez mais de um modo virtual através do écrã. Gonzalo Abril, professor de Ciências da Informação, escreveu, recentemente,: "a era da informação é a era da produção industrial de estados mentais que abarca, também, o controlo das sensibilidades e dos afectos. Isto começou com a publicidade, que, no mundo actual, invadiu completamente o campo da informação". Recentemente, José Manuel Romero, analisando, na revista "Iralka", a fabricação da submissão e da exploração, abordava quatro mecanismos do poder encaminhados para esse fim: a desregulação do mercado laboral, os efeitos "confusão" e"medo" da informação nos mass-media e, o que lhe chamou mais a atenção, o modelo de "vida boa" que os media - essencialmente a televisão- fomentam e difundem. Escrevia J. M. Romero: «Qual a atitude que, perante a vida, assumem e nos oferecem como válida, como óptima? Evidentemente, um hedonismo fácil que desconhece qualquer tipo de ruptura vital… "Passa bem" é o seu imperativo categórico… Tal modelo de vida mantém os indivíduos em estado de uma flagrante menoridade, instala-os numa adolescência permanente, numa imaturidade comodamente irresponsável, despreocupada das questões dolorosas, dos problemas que nos acossam. Isso incomoda e o importante é não incomodar-se… o seu efeito é a manutenção dos indivíduos num estado de convencionalidade radical, de fusão compulsiva com os valores de coesão social. Mantêm-se os indivíduos num nível convencional, no contexto de uma sociedade desigualitária impregnada de uma ideologia do rendimento, de que o hedonismo não é mais do que o reverso e complemento. Minam-se, assim, os processos de constituição de subjectividades distanciadas do convencional; o qual, num contexto em que coincide com o disciplinamento e um hedonismo obsessivo, é extremamente interessante para um poder que procura manter os indivíduos numa posição política e social passiva. Um poder que quer indivíduos-objectos previsíveis, cujas necessidades não ultrapassem a oferta quotidiana das grandes superfícies». Acreditamos que o interesse desculpa o tamanho da citação. Rendimento, "coisificação" do ser humano e grandes superfícies comerciais, elementos recorrentes no nosso texto. Perante a cultura entendida como instrumento de consenso acrítico, de inclusão social, encontra-se outra concepção da cultura, que a encara, precisamente, como objecto para lutar contra o estado de coisas, contra o modelo de sociedade vigente; denominou-se contracultura, anticultura, cultura alternativa, underground… Historicamente, existiram sempre movimentos que enfrentaram o modelo social vigente, não através da política, mas da cultura. Muitas vezes foram percursores de movimentos políticos. A história é escrita pelos vencedores, pelo que destes movimentos só ficou constância; noutras épocas, imaginamos, eram condenados por heréticos. Só há memória cumprida deles desde tempos já próximos: romantismo, dadá, surrealismo, situacionismo, geração beat, movimento hippy, rock, punk… De qualquer forma, o sistema capitalista encontrou maneira de sair por cima destas atitudes de contestação: absorvê-las, integrá-las, convertê-las em produtos vendáveis. O capitalismo, escreveu Hakin Bey, é um vampiro que nos chupa o sangue, a nossa energia, a nossa criatividade, que, ainda por cima, é o que lhe dá vida, porque o capitalismo vive da mercantilização da nossa imaginação, que converte em entretenimento, em espectáculo, deixando o cadáver convertido num zombi - linda metáfora, a do morto vivo, para entender a natureza da cultura e da arte actuais. A assombrosa cantora dos Velvet Underground, a alemã Chista Paffgen - Nico - pôs o dedo na ferida quando, em plena explosão hippy, definiu o movimento hippy como uma espécie de mercado negro que lhe recordava o da sua adolescência na vencida Berlim do pós guerra. Hoje, a chamada cultura alternativa é, em grande medida, uma marca de fábrica. O poder absorve, assume o conceito, anulando os conteúdos e esvaziando-a de significado. Os suplementos dominicais e as revistas publicitárias de multinacionais usurpam a estética e a marca do fanzine. Depois da segunda guerra mundial, o sistema apercebeu-se da importância de um sector até então praticamente excluído: a juventude. Criou, então, isso da cultura juvenil e, com ela, a importância e a necessidade de ser sempre jovem. Bob Dylan começou por tentar ser forever young e acabou a cantar para o papa mais reaccionário das últimas décadas. O estrondo da cultura juvenil coincidiu, casualmente, claro, com o aumento do poder de compra da juventude e com a consequente necessidade, por parte desta, de emancipar-se e ser rebelde. O que está bom de ver é que este sector se converteu, pouco a pouco, no principal cliente comprador. Os símbolos da sua rebeldia começaram a alimentar o mercado. Ao esterilizar todas estas formas de protesto, o sistema embalsama-as, disseca-as, anula os seus conteúdos mantendo intacta a sua forma, a fachada, a aparência, o invólucro; a rebeldia como pose pronta para empacotar e vender no Corte Inglês. Há uns meses, Marta Sanz escrevia na revista "Ni hablar", a propósito da cultura pop: «Despojam-nos dos nossos símbolos, por repetição e descontextualização, neutralizam-nos esvaziando de sentido as nossas referências, as nossas simbologias, os nossos instrumentos para dizer, para comunicar, para actuar». O mesmo acontece, hoje, com a arte. Tanto no teatro como na literatura, na pintura ou no cinema. Os conteúdos questionadores do actual modus vivendi estão envoltos em papel de embrulhar prendas e rematados com os lacinhos do sistema. As obras que põem em questão o actual regime de mercado são postas em circulação por este mesmo, o qual, como dizíamos acima, acabam por alimentar e legitimar; este, por seu lado, engole os conteúdos e, no fim da cadeia de produção cultural cospe a sua forma, cera alva convertida em grandes exposições retrospectivas, nos grandes museus do Estado, dos movimentos dos quais se fez desaparecer, como que por artes mágicas, a sua autêntica natureza emancipadora, como o surrealismo, ou tantos outros; ou a conversão, em montagens milionárias, a cargo das grandes companhias estatais, de obras de Brecht ou de Weis ou de… só para dar uns exemplos. A catalogação histórica, a "crítica", a Cultura matam a arte. Parece que, hoje, as obras "revolucionárias" querem ser subvencionadas pelo capitalismo. Os artistas, recentemente, na Arco 97, pediram ao governo que potenciasse o mercado da arte. Isto é, hoje, a norma. O fora do comum, o excepcional, são poetas como Carlos Oroza, cujos livros não encontrareis em nenhuma livraria, que pergunta: «Deve o Estado alimentar o poeta ou deve o poeta destruir o Estado?» É neste contexto que a vanguarda artística real entrou em greve de arte para os dois primeiros anos do século XXI, como chamada de atenção e de reflexão sobre a função que a arte - raptada pelo poder- está a cumprir no fortalecimento do sistema e na ruína do ser humano. É significativo que aquelas atitudes antisociais e contraculturais, que surgiram há 30 anos como lema de liberdade e subversão: sexo, drogas e rock and roll, sejam, hoje, indústrias boiantes que reportam os seus esplêndidos lucros a quem as manipula. Talvez o rock and roll seja, hoje, a imagem mais significativa do zombi, do morto vivo. Mensagens pretensamente subversivas empacotadas e prontas a consumir com base numa milionária cadeia de marketing. Grandes estrelas idolatradas - ou estrelas de magnitude mediana e até estrelas caseiras- e as suas companhias: o negócio do século, o mais hipócrita. Um panorama em que as bandas mais antisistema gravam para multinacionais que se dedicam, também, à energia nuclear ou a fabricar e exportar armas; e em que a independência - o indie - é mais uma moda promocional. Já Jim Morrison escreveu: «Hoje, a arte adorna os muros da nossa prisão, para nos manter conformados, divertidos, indiferentes». Sobre o poder do rock e sobre o rock do poder - a utilização tão efectiva e maquiavélica que este pode fazer daquele- são muito significativas as palavras com que Elena López acaba o seu livro "Del Txistu al telecaster. Crónica del rock vasco": «Diz-se que, quando os Beatles actuaram pela primeira vez na televisão norte-americana, o número de delitos baixou praticamente até zero em todo o país, durante o tempo que durou a emissão. Se o rock serve para isso, saudemos que ainda hoje continue a existir». Evidentemente que não estamos nada de acordo com a conclusão da autora; mas as mentes pensantes do controlo estatal tomaram bem nota desta equação: rock, televisão, passividade (dos "delinquentes"). Chegados a este ponto, faço, ultimamente, uma reflexão. Hoje, nesta ilusão de liberdade, pode-se dizer qualquer coisa. As mensagens, os conteúdos não são, hoje, nada de subversivo, porque podem ser esvaziados e vendidos pelo mercado - a ecologia é outro bom exemplo desta prática. Talvez, hoje, a contestação, a luta estejam noutros sítios. Não no conteúdo, mas na forma e no canal. O realizador suíço Alain Tanner escreveu: «Tudo provém do mesmo discurso publicitário. Vivemos, sem o saber, num verdadeiro sistema de censura, mas uma censura que nos sorri abertamente: é o liberalismo. Na realidade, pode-se dizer tudo o que se quiser no conteúdo, o que nos dá a ilusão de liberdade. A censura, evidentemente económica, exerce-se sobre as formas. O logro está aí. Os conteúdos não importam muito, nada se joga a esse nível, na medida em que há um consenso generalizado na nossa sociedade, segundo o qual toda a gente está mais ou menos de acordo sobre tudo. No entanto, o que pode fazer as coisas mexerem-se (um bocadinho… quiçá…) em matéria artística é o trabalho das formas. O interesse já só pode estar na forma do discurso, mais do que no discurso em si. E é aqui, precisamente, onde a passagem está cortada, ou se exerce uma pressão até às margens. Eu sempre estive um pouco nas margens, mas, agora, o problema é que as margens se encolhem cada vez mais». Criar canais de cultura não mediatizados pelo poder, veículos que dirijamos nós mesmos. Colocar-se à parte do seu sistema de produção e venda, fora da máquina que converte a criatividade e a crítica em mercadoria. Hoje, é necessária a crítica, não tanto a dos conteúdos, mas a dos canais. É necessário sairmos das suas estradas e dos seus mercados. O importante não é a mercadoria -cultural- em si, mas o sistema de produção em que surge e se insere. Abrir pequenos buracos negros no universo do mercado. Não se submeter a esse consenso da oferta e da procura; interferir, boicotar esses mecanismos de consenso, de integração. Francesc Calvo Ortega, na sua crítica ao livro de Santiago López Petit "Horror vacui", afirmava: «um corpo que se nega a dobrar-se e que, ao não se submeter, interfere no mecanismo consensual. Mas desocupar a ordem é, antes de mais, desocupar a estrutura da espera, dessa espera interminável que nos oprime e nos impede de viver. Abrir a fenda a partir da qual poder viver, pôr-se aparte. Multiplicar espaços onde seja possível habitar sem estarmos demasiado oprimidos. Seguramente, não fora do sistema, mas de onde o possamos atacar. Em vez de viver o desemprego como uma condenação geral, atrever-se a tentar aproveitá-lo para impulsionar a própria criatividade. Experimentá-lo como uma nova forma de viver, porque experimentar é querer viver». Falamos, antes, do trabalho e do relógio; F. Calvo fala-nos, aqui, da estrutura da espera interminável e do desemprego. As sugestões atropelam-se e eu quero incidir neste ponto essencial. Falei, antes, dos valores positivos da moribunda cultura operária, cuja perda pressupõe um perigo; mas a cultura operária também criou valores negativos. O mais nefasto de todos, se bem que não tenha sido intenção sua: a sacralização do trabalho e a articulação da pessoa e da sociedade em torno do valor trabalho. Valor este ainda muito presente na esquerda. Considero que é preciso arranjar outro cimentos, que não o trabalho nem, evidentemente, o consumo. Numa época em que o desemprego não vai desaparecer - e não tem que ser necessariamente mau que assim aconteça -, e que se revelou como algo estrutural num sistema de economia de mercado, continuarmos a valorizar-nos social e individualmente em função do trabalho tem consequências psicológicas e sociais frustrantes. Aproveitemos a conjuntura, como defende F. Calvo, a nosso favor. Desesperarmo-nos e oferecer um rim por um emprego é jogar o jogo e fazer o que o sistema espera de nós. Numa grande entrevista, recentemente publicada na revista "El Europeo", o economista José Manuel Naredo fazia uma resenha histórica do conceito de trabalho. Sem ir mais longe, o termo trabalho provém de "tripalium", um instrumento de tortura da antiga Roma. Trabalho e escravatura foram, historicamente, conceitos paralelos. E poderia afirmar-se que o progresso não foi no caminho da libertação do ser humano, mas um processo de escravatura -salarial- paulatino. O trabalho mata a criatividade no ser humano, os seus impulsos criativos, e fá-lo a cultura do consumo; a criatividade, na melhor das hipóteses, fica para os tempos de ócio - conceito também proveniente da cultura operária, que não é mais nem menos a outra face da mesma moeda, a do trabalho e da produtividade, a do tempo cronometrado e usurpado, a do tempo corrente que nos amarra curtos. É preciso aproveitar esta terra de ninguém como ponto de fuga do sistema e não como fonte de frustração e ferramenta de fortalecimento do próprio sistema através do nosso desespero. Reinventar como viver e, na medida do possível, fazê-lo fora, à intempérie.
Enquanto escrevo estas linhas, leio, no fanzine madrileno "Amano", uma entrevista com Eugenio Castro e José Manuel Rojo, do grupo surrealista de Madrid; nela afirmam: «Uma das tarefas revolucionárias primordiais consiste em fazer tomar consciência moral e política da importância que tem o tempo livre daqueles que estão desempregados... Se se tomasse consciência do gozo do tempo livre do desempregado, e se isso se transmitisse aos que trabalham, poder-se-ia pensar na possibilidade de, dando um salto qualitativo, se convidar muitos trabalhadores a abandonarem os seus trabalhos. O simples abandono massivo das fábricas suporia uma quebra fundamental para o sistema capitalista. Um feito perturbador para a economia mundial. Supressão da escravatura assalariada. O tempo é, hoje, uma camisa de forças de tal ordem que substituiu a ideia de pátria, ordem, família. Destruir esse conceito de tempo seria importantíssimo para alcançar uma consideração erótica do tempo». Abandono do emprego, não para exigir um salário maior, nem sequer uma redução do tempo de trabalho, mas para acabar com ele, com o tempo. Lembro-me de um filme argentino, "La fiaca", em que alguém, sem mais nem menos, se nega, numa bela manhã, a ir trabalhar. E lembro-me do "Direito à preguiça, do genro de Marx, Paul Lafargue. E leio, também, neste dias, "Zona temporariamente autónoma", do norte americano Hakin Bey, e, nele: «Espero que sejamos suficientemente adultos para percebermos a diferença entre vida e acumulação de um monte de merdas. Ainda assim, devemos lembrar-nos constantemente (já que a nossa cultura não o fará por nós) que esse monstro chamado trabalho continua a ser o objectivo preciso e exacto da nossa ira rebelde, a "realidade" mais opressiva que se nos depara (e devemos também aprender a reconhecer o Trabalho quando está disfarçado de "ócio"). Espumamo-nos de indignação contra a "opressão" e as "leis injustas", quando, de facto, estas abstracções têm um impacto escasso na nossa vida diária, enquanto que o que realmente nos faz desgraçados passa inadvertido, relegado para a "ocupação" ou "distracção", ou, inclusivamente, para a própria natureza da realidade: (bem, não posso viver sem um trabalho!)». Tenho, há não sei quanto tempo e recolhido não sei onde - se alguém o souber agradeço a informação -, uns aforismos engraçados sobre o maldito trabalho que creio que vêm a propósito: Não só te pedem que trabalhes, como ainda a amar e respeitar isso a que chamam trabalho. Fora do que fazes, que, geralmente, não é o teu fazer, tem que haver algum que fazer que seja o teu fazer. Se o teu trabalho não é o teu trabalho, todas as relações de trabalho, tão faladas, também não são tuas. Chamam-te útil, porque te utilizam. O trabalho, que era um castigo bíblico, e nisto a Bíblia tinha razão, foi transformado em bem divino. Jesus não trabalhou na sua vida, mas o seu pai José transformou-se em patrono dos operários. Só é trabalho aquilo que me ajuda a conquistar a preguiça, ou o dolce far niente a que todo o homem, normalmente constituído, aspira. Pôr em dúvida o conceito de trabalho social de Marx, não porque o conceito seja falso, mas por ser muito facilmente utilizável, manipulável. Têm que nos demonstrar em que é que um trabalho é social, e depois aceitá-lo-emos ou não. A sociedade do despojo generalizado. A quem roubam? Roubam-nos a todos, a uns o tempo, a outros o esforço a outros a vida, a outros o espaço… Só roubam e roubam. A nossa sociedade está baseada no despojo geral e é por isso que defendem com tanto afinco a propriedade privada. Não se devem chamar grevistas: estar em greve já é suficiente. O castelhano possui outro termo mais justo e mais humano: holgón (folgão). O holgón faz greve com toda a naturalidade, mas fá-la gozadamente, regaladamente, é um grevista prazenteiro e sorridente. Grevistas não, holgones, e os holgones não só fazem greve, como também malandreiam, são preguiçosos, são mais bonitos que os grevistas e muito mais gozões.
Nós estamos muito mais incluídos nos modelos culturais institucionais do que o que pensamos. Basicamente, a nossa cultura é subsidiária da institucional, de tal forma que, em demasiadas ocasiões, se fica pelo mero protesto, pelo oposição, mas sem criar, quase nunca, na prática, esboços de uma possível alternativa que deve começar, antes de mais, num âmbito que muitas vezes esquecemos, o pessoal. O criador do Living Theatre, Julian Beck, escreveu: «Viver criando vida, cada qual como artista, pondo arte na vida e não o contrário, que é o velho estilo, mas viver criativamente. Isso é o que teremos que fazer, isso é a revolução». E Hakin Bey, via situacionismo: «Como se o artista não fosse um tipo especial de pessoa, mas cada pessoa um tipo especial de artista». E remata: «Há que dar uma bofetada à norma social do aborrecimento alienado e mediatizado. Encontrar-se cara a cara é a revolução». E Joachim Hirch no "El Viejo Topo": «A estrutura capitalista de domínio não só se tornou tendencialmente totalitária, mas também se tornou extremamente vulnerável técnica e politicamente. Hoje seria a negação massiva, o cessar de uma colaboração quotidiana, uma consciência prática de deixar de tolerar tudo o que faria descarrilar rapidamente as suas rodas. E, num processo deste tipo, poderiam aparecer também novas formas políticas e estruturas institucionais democráticas. Neste sentido, é provável que uma revolução anticapitalista nunca tenha sido tão fácil como hoje e, simultaneamente, é provável que os homens nunca tenham sido tão incapazes de olhar mais além das suas contrições quotidianas e de desenvolver uma sensibilidade que lhes permita perceber de que possibilidades o estão a privar continuamente e reconhecer a real indignidade em que é forçado a viver. Uma revolução real há-de ser, portanto, não só social e política, mas, sobretudo, uma revolução cultural».

Robert Kurz
http://obeco.planetaclix.pt/

Sem comentários: