domingo, janeiro 14, 2007

A difícil luta pela democracia no México

Algumas notas para a compreensão do conflito de Oaxaca

Entre Junho e Novembro de 2006, pelo menos 11 pessoas morreram na cidade mexicana de Oaxaca em resultado da repressão levada a cabo pela polícia federal contra o movimento popular que exige a destituição do governador do Estado, Ulises Ruís Ortiz. Além disso, houve dezenas de feridos e detidos, graves danos materiais e elevados prejuízos económicos. Para compreender o que se passa em Oaxaca, teremos de recuar ao ano de 1980 e à formação da Coordenadora Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) por algumas secções de professores que integravam o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação (SNTE), e onde a Secção XXII dos Professores (do Estado de Oaxaca) do SNTE teve papel determinante.

Num país onde a sindicalização é obrigatória (não há livre sindicalização) [1], a Secção XXII (Estado de Oaxaca) e outras secções do SNTE (o maior sindicato, pelo número de filiados, da América Latina) formaram, em 1980, uma Coordenadora Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), com o objectivo de responder ao corporativismo e à corrupção existente no seio do SNTE. A CNTE propõe-se constituir uma verdadeira força de classe nacional de base, com vista a uma democratização do SNTE, da educação e do próprio país. Não sendo reconhecida oficialmente pelo governo (o SNTE é o único sindicato de professores com reconhecimento oficial), a CNTE mantém-se, no entanto, como um contra poder ao sindicato charro [2].

A secção XXII de Oaxaca , principal fundadora da CNTE, tem um historial de luta de 26 anos (que corresponde à criação da CNTE e à chegada de uma direcção de professores ligados a organizações e sectores democráticos e progressistas), e vários foram os movimentos de reivindicação e de luta em que participou. Afirmando­‑se como anti­ neoliberal, a Secção XXII participa há já duas décadas em movimentos sociais que denunciam a ameaça do capital estrangeiro à soberania nacional, o desemprego, a pobreza extrema, a perda do património, o ataque aos recursos naturais e ambientais do país, tudo isto em paralelo com a luta específica dos professores de Oaxaca por melhores condições salariais, contra a elitização do ensino, por um verdadeiro acesso universal à educação.

As reivindicações da Secção XXII têm em conta o facto de que os problemas do México não podem ser desligados do seu teor político-económico. Daí a luta por uma convergência de forças que entrave o avanço do neoliberalismo e do capital estrangeiro a ele associado, pela soberania nacional, pelo fim das desigualdades sociais.

O que hoje se passa em Oaxaca inscreve-se, desta forma, na história dos movimentos sociais do México e, mais particularmente, na história de luta de Oaxaca e da Secção XXII. Tudo começou com a tradicional jornada anual de luta dos professores, que todos os anos, no final do ano escolar, exigem melhores salários. Normalmente, esta reivindicação termina com a entrega, pelo governo estatal, de umas migalhas aos professores. A jornada de luta de 2006 foi, no entanto, precedida de uma reunião, no dia 25 de Abril, entre várias organizações (políticas e outras), com vista a um apoio popular aos professores e a uma possível concertação da luta. Mesmo que as reivindicações iniciais, até ao dia 14 de Junho, se cingissem aos problemas directamente ligados com os professores e com a educação, as bases para a futura APO – Assembleia Popular de Oaxaca (mais tarde, APPO – Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca) estavam montadas.

No início de Junho, depois de decretada uma greve de professores e da realização de uma marcha pelas ruas da cidade de Oaxaca, a Secção XXII montou um acampamento no zócalo (praça central) da cidade para reivindicar melhores salários, melhores condições de trabalho e de escolarização, por uma escola gratuita e igualitária. Refira-se que, no Estado de Oaxaca, 34% das crianças com menos de 5 anos não vão à escola, que o grau médio de escolarização não passa da escola primária e que 26,7% da população de Oaxaca é analfabeta (26,7% das mulheres são analfabetas contra 15,5% dos homens). Por outro lado, 20% da população com mais de 5 anos que fala uma língua autóctone não fala espanhol.

A 14 de Junho, o exército federal invadiu o zócalo da cidade de Oaxaca, daí expulsando os professores e seus apoiantes. Com a já habitual repressão policial, o exército provoca a morte de dois manifestantes e dezenas de outros são feridos. A partir deste dia, e depois de um apelo da secção XXII para que a população de Oaxaca a apoie na sua luta e se manifeste contra a repressão federal e estatal, vários sectores da população e organizações democráticas se juntaram à luta dos professores. Nasce a APO (Assembleia Popular de Oaxaca). As reivindicações alargam-se, sendo a principal a destituição do governador do Estado, Ulises Ruís Ortiz (URO).

POBREZA E LUTA NO ESTADO DE OAXACA

Os problemas de Oaxaca estendem-se à Saúde. Apenas 10% dos habitantes de Oaxaca não apresentam problemas de má nutrição e, até 2004, era o Estado com a maior taxa de mortalidade do México (5,2 mortes por cada mil habitantes). Dos 100 municípios mexicanos que apresentam os mais graves problemas de má nutrição, 45 são municípios do Estado de Oaxaca.

Nas regiões autóctones de Oaxaca há apenas 13 médicos para cada 100.000 habitantes (a maioria indígenas), o que contrasta fortemente com a média estatal (94 médicos para uma população de 100.000 pessoas) e nacional (138 médicos por cada 100.000 habitantes).

A pobreza do Estado de Oaxaca é outra das preocupações da APPO, que a considera como consequência de uma política nacional (e estatal) de submissão ao grande capital, que atira para a miséria a maioria da população, especialmente a população indígena.

Não é a primeira vez que Oaxaca exige a demissão de um governador. Outros três governadores foram obrigados a demitir-se graças à pressão de movimentos populares oaxaquenhos: Edmundo Sánchez Cano (1946), Manuel Mayoral Heredia (1952) e Manuel Zárate Aquino (1977). Este último deixou na memória de Oaxaca uma triste história de severas repressões e vários são os desaparecidos até aos dias de hoje.

Nas eleições para o governo estatal de 2004, a máquina estatal do Partido da Revolução Institucional (PRI) manipulou os resultados em favor do seu candidato, Ulises Ruis Ortis, que mesmo contra a vontade popular toma o poder em Dezembro do mesmo ano e, desde então, assassinatos e desaparecidos políticos fazem parte do cadastro de acção deste governador.

Depois da repressão do dia 14 de Junho, professores, outros sectores da população e organizações democráticas várias juntaram-se na APO, Assembleia Popular de Oaxaca, mais tarde designada APPO, Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca. Os edifícios de governação são ocupados, bem como duas rádios e, uma vez reinstaladas as tendas dos apoiantes da APPO no zócalo, novas exigências são feitas ao governo estatal e federal.

A principal reivindicação, a destituição do governador Ulisses Ruíz, não é no entanto um fim em si mesmo. A APPO não reivindica a simples substituição deste governador por um outro, também ele, certamente, priísta. A par desta destituição, exige-se a assinatura de um pacto com a APPO, onde constariam, entre outras, as seguintes exigências: reforma da constituição estatal de forma a obrigar o governo a justificar a utilização dos dinheiros públicos, a criar a possibilidade de realizar plebiscitos para decidir da destituição de um governante sem necessidade de um levantamento popular, e a garantir o acesso à educação, saúde, habitação e a um emprego com um salário justo; imposição ao Estado de Oaxaca de um plano de governo em que se dê prioridade à obra educativa, e onde as exigências anteriormente referidas seriam garantidas; reconstrução da polícia de Estado, livre de corrupção e de redes de máfias organizadas.

Refira-se que os estados do México são autónomos para reformarem as suas próprias Constituições.

MUITA RIQUEZA EM POUCAS MÃOS

No Estado de Oaxaca situam-se várias reservas de minerais, como o ferro (o México conta com a terceira maior reserva de ferro da América Latina, seguindo-se ao Brasil e à Venezuela) e o urânio, sendo, para além disso, um importante produtor de petróleo.

Mesmo com todas as suas riquezas naturais, Oaxaca é no entanto o Estado com a população mais pobre do país, tal com os estado de Chiapas e de Guerrero. Os estados de Oaxaca e de Chiapas são, ainda, aqueles onde se concentra a maioria da população indígena do México.

A depredação do meio ambiente é outra das preocupações da APPO. Aquelas reservas situam-se em regiões extremamente ricas em biodiversidade, cuja preservação se revela premente face à lógica capitalista de destruição ambiental com vista ao saque dos recursos naturais. Várias são as transnacionais interessadas em investir em Oaxaca, particularmente no que diz respeito ao sector energético e à exploração dos recursos naturais (caso da Harken Energy, da Applied Energy Services (AES), da Duke Energy e da Harza, empresas norte­‑americanas que investem no território latino-americano – do México ao Panamá – e cuja acção diz respeito à construção de barragens hidroeléctricas e à privatização do sector eléctrico).

Um projecto ditado pelo imperialismo norte-americano, o projecto Puebla-Panamá, é outra das acções do capital transnacional que terá impacto na vida de Oaxaca. Este projecto será imposto nas regiões menos desenvolvidas do México (Puebla, Veracruz, Oaxaca, Tabasco, Campeche, Yucatán, Quintana Roo e Chiapas) e incluirá, ainda, outros países da América Central: Guatemala, Belize, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. O projecto tem como objectivo ser uma alternativa ao transporte marítimo de mercadorias que se faz através do Canal do Panamá, o qual se tem revelado insuficiente no que diz respeito ao actual tráfico marítimo, uma vez que são necessários entre cinco a oito dias para atravessá-lo e que as suas pequenas dimensões dificultam a passagem dos grandes barcos comerciais. Surge, então, a ideia da criação de uma canal “seco” (ou seja, através de ferrovias e de estradas) que parta do Istmo de Tehuantepec (Estado de Oaxaca) e que comunique, numa primeira fase, com vários outros portos mexicanos, em Veracruz e em Oaxaca, e, numa segunda fase, com outros países da América Central. Tal permitirá às empresas norte-americanas manter um fluxo comercial elevado, cuja saída natural é em direcção ao Oceano Atlântico, e permitirá, ainda, a implementação de grandes empresas (multinacionais e transnacionais) numa zona onde, para além da mão-de­‑obra barata (porque empobrecida), poderão enviar as suas mercadorias facilmente, por via marítima, a qualquer lugar do mundo.

EXIGÊNCIA DE REFORMAS

A APPO tem consciência das suas limitações e das dificuldades que tem de enfrentar: «Não dizemos que a Revolução tem de ser feita agora. Oaxaca depende não só das suas próprias forças como também do que se passa em outras partes do país. A nossa luta, neste momento, é uma luta de carácter reformista. Continuaremos no entanto a trabalhar para que a Assembleia Popular [dos Povos de Oaxaca] vá criando formas de governo que possam mudar a forma de fazer governo em Oaxaca», referiu Adolfo Lopez, da Comissão de Imprensa da APPO e membro da Frente Popular Revolucionária (FPR), antes dos acontecimentos de 29 de Outubro, de que adiante se falará.

Relativamente aos apoios políticos, a APPO conta desde o início com várias organizações democráticas e progressistas, não só do Estado de Oaxaca como de outros estados mexicanos.

O Partido da Revolução Democrática (PRD) – cujo candidato presidencial, em conjunto com o PT (Partido dos Trabalhadores) e a Convergência (C), foi Manuel López Obrador – nunca ofereceu o seu apoio directo à APPO, mesmo se vários elementos do PRD dela fazem parte e outros a apoiam. Outros partidos, no entanto, apoiaram esta luta, como os que integram a “Outra Campanha” – plataforma política de convergência nascida de um apelo do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) – pela formação de uma união política independente dos partidos oficiais. Acrescente-se que a “Outra Campanha” conta com o apoio de várias associações políticas e de partidos que não estão registados oficialmente e que, portanto, funcionam clandestinamente –, e afirma a inexistência de diferenças entre o PRI, o PAN (Partido de Acção Nacional) ou o PRD. Apelou, nas últimas eleições, à abstenção; juntou-se no entanto ao plantão de apoio a Obrador por considerar que efectivamente houve uma fraude eleitoral e que este havia ganho as eleições. Posição idêntica assumiram organizações indígenas e outras.

O MOVIMENTO OAXAQUENHO E A ACTUALIDADE POLÍTICA MEXICANA

A 29 de Outubro, as forças da polícia federal (PFP) entraram em Oaxaca e, uma vez mais, expulsaram os elementos da APPO e seus apoiantes que permaneciam há cinco meses no zócalo. A intervenção armada da polícia teve como consequência a morte de três pessoas, e o ferimento e o encarceramento de várias outras.

Em Maio de 2006, na cidade de Salvador de Atenco, uma manifestação tinha sido, também ela, fortemente reprimida. Vários manifestantes foram encarcerados e/ou vítimas de agressões, tendo mais de 80% das mulheres detidas sofrido abusos sexuais.

A 14 de Junho (e de novo a 29 de Outubro), o movimento de Oaxaca contra a política corrupta e de repressão do Governador URO foi violentamente reprimido.

Nas eleições presidenciais de 2000, o PRI, no poder durante 70 anos, foi derrotado pelo PAN (partido fundado em 1939 por elementos da direita e da extrema-direita católica mexicana). Matando a esperança dos mexicanos de que uma profunda mudança nas instituições políticas fosse operada, o presidente panista, Vicente Fox, continuou uma política de submissão aos ditames imperialistas, acentuando as desigualdades sociais e colocando o México de joelhos perante o capital nacional e estrangeiro. Nas eleições de 2006 à Presidência da República, o candidato do PRD – Andrés Manuel López Obrador – canalizou as esperanças de uma população que, no ano 2000, havia depositado a sua confiança no candidato do PAN.

A 2 de Julho, os mexicanos foram então a votos para eleger o futuro Presidente da República. Através de uma fraude eleitoral, Filipe Calderón, também ele panista, é declarado vencedor. Apoiantes e não apoiantes de López Obrador juntaram-se numa acção contra a farsa eleitoral no zócalo da Cidade do México e as principais ruas da cidade foram ocupadas para exigir a recontagem dos votos e a eleição de AMLO como Presidente da República. Durante dois meses, o movimento contra a fraude esteve nas ruas da Cidade do México.

Entretanto, os estados de Guerrero e de Chiapas continuam armados: organizações armadas indígenas exigem uma Reforma Agrária e uma política que defenda os seus interesses.

O México tem esperança. E a esperança, nas suas várias formas, tende para um confronto com o grande capital nacional e estrangeiro.

Fox (que foi presidente da Coca-Cola, México) vendera a ideia de um México diferente, e mais não fez do que agravar a situação económica mexicana, continuando a venda dos recursos naturais, patrimoniais (água, gás, terras, praias..) e energéticos ao grande capital estrangeiro que possui, além disso, os fundos de pensões e as principais seguradoras. A soberania mexicana encontra-se ainda ameaçada pelo Tratado de Livre Comércio das Américas (que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 1994, data do levantamento militar do EZLN), pela dívida externa e pelo aprofundamento de uma política neoliberal.

O acampamento de apoio a Obrador, nas ruas da Cidade do México, Oaxaca e vários outros movimentos sociais mostram, no entanto, que o México não é indiferente ao que se passa no seu interior. E do Norte ao Sul do país, o México continuará em luta.

[1] Existem, por isso, no México, Centrais Operárias extremamente fortes, como a CTM (Central de Trabalhadores do México), com cerca de 40 milhões de filiados, e a Confederação Nacional de Operários e de Campesinos. O SNTE faz parte da CTM, com cerca de um milhão e 300 mil filiados. A direcção dos Sindicatos é “eleita” em Congresso por um grupo de delegados que, na maioria dos casos, foram “comprados”. A corrupção é tal que, antes de ser eleita, já se sabe quem a constituirá. A secção XXII da SNTE recusa-se a participar nos congressos de eleição da Direcção do Sindicato ao qual pertence. A Direcção da Secção XXII (64 mil professores distribuídos pelas 15 mil comunidades do Estado de Oaxaca) é eleita por delegados (que foram eleitos directamente pelos trabalhadores) e que elegem a Direcção de “braço no ar”.
[2] Charro – Corrupto.
Ana Saldanha
http://www.infoalternativa.org/amlatina/mexico015.htm

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