sexta-feira, janeiro 05, 2007

Do documentário ao “cinema das pessoas”

Estará o cinema a reinventar a sua relação com a realidade? Os cineastas, depois de terem julgado apreendê­‑la no documentário ou reconstituí-la recorrendo às técnicas virtuais, apercebem-se de que ela implica um equilíbrio mais subtil. Mas esta nova sensibilidade estética, que o Festival de Cannes parece estar pronto a promover, tem ainda de encontrar o seu caminho, entre a paixão documental e o prazer do ilusionismo.

Desde há alguns anos, passaram a ser difundidos nas salas de cinema filmes documentários. São filmes que observam e examinam as instituições: a escola, em Ser e Ter (Nicolas Philibert, 2002), a justiça, em Dixième chambre (Raymond Depardon, 2004), a intimidade em No Quarto da Vanda (Pedro Costa, 2000), os meios sociais em A Oeste dos Carris [Tie Xi Qu] (Wang Bing, 2003), as sociedades em Bowling for Columbine (Michael Moore, 2002). Interrogam a imigração clandestina em Border (Laura Waddington, 2004), o genocídio em S21, la machine de mort khmère rouge (Rithy Panh, 2002). Analisam a história em Salvador Allende (Patricio Guzman, 2003), ou Memoria del Saqueo (Fernando E. Solanas, 2003), e militam contra o poder, como em Farenheit 9/11 (Michael Moore, 2004), The World According To Bush (William Karel, 2004). Criticam os meios de comunicação social, em Outfoxed: Rupert Murdoch’s War On Journalism (Robert Greenwald, 2004), denunciam o capitalismo em The Corporation (Mark Achbar e Jennifer Abott, 2004), as negociatas das “marcas” destruidoras dos vinhos autóctones, em Mondovino (Jonathan Nossiter, 2004), ou o horror do neocolonialismo económico, em O pesadelo de Darwin (Hubert Sauper, 2005).

Será possível explicar este «incontestável aumento da oferta documental» com base numa «desconfiança perante a ficção» [1], num apetite pela realidade? Em parte, sem dúvida. Com efeito, mesmo que o cineasta autor de documentários já não queira apresentar um reflexo neutro daquilo que filma, ele procura restituir­‑nos a realidade. Graças a imensos bancos de dados, às câmaras de filmar ligeiras, às refinadas captações de som, à montagem rápida, este cineasta teria assim um acesso privilegiado aos factos. Michael Moore, por exemplo, Robim dos Bosques da informação, revela-nos os bastidores da política em Farenheit 9/11: relatórios falsificados pela administração Bush, grandes planos do rosto presidencial cujas expressões descodifica, happenings provocadores em que o adversário filmado ao vivo é aparentemente levado a confessar a sua verdadeira natureza. De resto, durante a promoção deste filme propagandista, Moore insistiu no leitmotiv de que se tratava de «verdades» opostas às «mentiras» do governo.

Do mesmo modo, em Supersize Me (2004), Morgan Spurlock mostra como os produtos da McDonald’s tornam as pessoas obesas, expondo o espectáculo do seu próprio corpo, que realmente incha à medida que vai ingerindo hambúrgueres. A verdade das imagens é neste caso caucionada por toda uma equipa de médicos, que entre duas estatísticas sanitárias vai verificando a taxa de colesterol e de triglicéridos do paciente. Este procedimento é também utilizado por Michael Moore, quando expõe em grandes caracteres dados criminológicos (Bowling for Columbine). Hubert Sauper, em O pesadelo de Darwin, na sua obstinação de conhecer a origem da perca do Nilo, exibe a desoladora realidade que está por trás desse refinado alimento: morte ecológica do lago Vitória, infestado por este pululante predador, superexploração dos trabalhadores tanzanianos, que morrem de esgotamento e de SIDA, ao mesmo tempo que a economia de guerra floresce. A imagem de choque e a fé quantitativa combinam-se aqui num requisitório a que o espectador assiste, forçosamente convencido.

A IMAGEM DESSACRALIZADA

Quando se trata de penetrar em lugares que estão fora de acesso (tribunal, sala de aula, fábrica, arquivos policiais), aquilo que desta feita dá a impressão de lá estarmos é a discrição da câmara de filmar e do comentário. O sucesso do filme Ser e Ter, em que Nicolas Philibert filmou uma turma da escola primária, não foi estranho ao desejo que todos os pais têm de observar os filhos, sem ser vistos, nos espaços onde eles não estão ao seu alcance. A objectiva de Raymond Depardon, análoga a uma câmara de vídeo-vigilância assestada sobre o juiz e os réus no decorrer de processos verdadeiros, coloca-nos diante do acontecimento em estado puro, como se ele não resultasse do trabalho dum realizador, tal como a de Wang Bing se faz esquecida entre os operários chineses que discutem numa locomotiva, numa pausa do trabalho ou debaixo do chuveiro. Tratar­‑se-á de captar sem filtros situações em que as pessoas se deixam surpreender, da mesma maneira que os animais selvagens se deixam observar nos filmes de cineastas especializados no registo da vida animal?

O cinema de ficção adopta facilmente esse verismo. É o caso de Open Water (2004), em que Chris Kentis, com verdadeiros tubarões, reproduz o terror “documentarizado” que esteve na base de Blair Witch Project (O Projecto Blair Witch) [2]. A aspiração a uma veracidade garantida pela imagem leva à pilhagem dos tesouros da intimidade. A narração inclui gestos crus: Naomi Kawase, em Shara (2002) põe em cena o seu próprio parto, Vincent Gallo mostra-se, no seu próprio filme, a ser objecto de um fellatio “verdadeiro” (Brown Bunny, 2003).

Curiosamente, nunca se relaciona esta voga realista com os programas de tele-realidade, como “Strip-tease”, “Loft Story”, “Survivor”, nos Estados Unidos [3], “Big Brother” ou “Gran Hermano”, nos Países Baixos, Espanha [e Portugal], embora os seus mecanismos sejam análogos: câmaras fixas para captar comportamentos espontâneos, actores não profissionais que se tornam objectos consentidores. Naturalmente, seria abusivo dizer que o documentário apela ao mesmo desejo de influência que os shows tidos como o lixo da programação televisiva [4]. Mas convém aqui sermos vigilantes: todos os dispositivos realistas podem estar ao serviço duma manipulação – a dos não­‑actores, à mercê dos realizadores espiando o que lhes escapa; a dos espectadores crendo que alguém está a filmar, para seu proveito, a própria vida. Quanto mais os profissionais da câmara de filmar afirmam que deixam a realidade penetrar directamente no ecrã, maior é o risco de nos vermos perante actores desqualificados, espectadores cativos do sensacionalismo, autores ausentes ou transformados em olhos de mirones, assuntos reduzidos a imagens apresentadas como provas em bruto de teses que na realidade são pré-construídas.

Sem precauções éticas, sem opções estéticas, o documentário, paradoxalmente, poderá ter muito em comum com... os dispositivos industriais que permitem modelar mundos cada vez mais irreais (Gladiador; Terminator; Relatório Minoritário; Matrix; Eu, Robot; Harry Potter; Shrek). Os argumentos, mesmo quando extraídos de bons romances, como Eu, Robot, filme americano (Alex Proyas, 2004), inspirado nos romances de Issac Asimov, tornam-se pretextos para proezas de um realismo tecnológico a que o imaginário de cada autor dificilmente resiste. Mesmo os singulares universos de um Enki Bilal (Imortal, 2004) ou de um Jean­‑Pierre Jeunet (Alien IV: O Regresso; O Fabuloso Destino de Amélie Poulain; Um longo Domingo de Noivado), parecem contaminados por este excesso de factício. Por seu lado, os actores servem de armaduras vivas ou dão a réplica a bonecos como em The Polar Express (Robert Zemeckis, 2004). Quanto ao espectador, posto perante a sugestiva competência da máquina de ilusões, vê-se reduzido a uma credulidade trémula.

Deste modo, através de um mesmo culto do verdadeiro, a cine-virtualidade e a cine­‑realidade podem convergir. Tanto no documentário como na ficção, o autor deixaria de poder criar um mundo que lhe é próprio, o actor deixaria de encarnar essa visão, o espectador deixaria de poder reconhecer-se nisso. O real reinaria doravante na sétima arte, nivelando todos os seus protagonistas, transformados em seus servos.

Perante esta ameaça, deveremos nós desejar o regresso ao cinema de antigamente? Deveremos nós contentar­‑nos com o ponto de vista clássico que joga à distância com a realidade social, como o belíssimo Le Couperet, do mestre Costa-Gravas, inspirado no excelente e divertido romance de Donald Westlake? Dever­‑se­‑á fustigar a necessidade cada vez mais viva duma verdade cinematográfica? Isso seria ignorar que o público, por muito curioso que se mostre de efeitos, já não se espanta nada com o mistério da criação desses efeitos. Manipulando ele próprio os instrumentos (programas de montagem, etc.), encontra-se também mais bem informado a respeito dos mecanismos de fabricação (makings of de filmes) e dos meandros da produção. Ora, tanto o cinema hollywoodiano como o filme de autor se alicerçavam no acesso privilegiado dos profissionais aos segredos da sua arte. Não deveremos nós regozijar-nos pelo facto de a escrita cinematográfica estar agora muito próxima, entre nós?

A nostalgia do autor­‑demiurgo – que obceca a profissão – torna aliás fantasmáticas muitas das realizações contemporâneas. Como escreve Emmanuel Burdeau [5] a propósito de Shara (de Naomi Kawase), de Brown Bunny (Vincent Gallo) ou de Histoire de Marie et Julien (Jacques Rivette, 2002), estes filmes mostram «uma estranha impossibilidade do vivo» que contamina o actor, cuja interpretação «rompe com o pacto da encarnação». Como Serge Daney pressentira, o cinema parece destinado, com as suas personagens solitárias e os seus cenários desertificados, a renunciar por fim... ao público. Mas será isso uma fatalidade?

A Nouvelle Vague esboçou uma primeira resposta. Com Jean-Luc Godard (O Acossado) ou François Truffaut (Os 400 Golpes), a câmara ia para a rua. Eliminava-se a personagem heróica ou diabólica, a narrativa linear e os seus diálogos literários, preferindo-se a tudo isso um ponto de vista pessoal e multiplicando, ao mesmo tempo, as referências ao cinema dos grandes mestres. Ao dessacralizar a imagem, a Nouvelle Vague formulou a possibilidade da apropriação da imagem por toda a gente. Ratificando a morte do cinema de autor, e transformando­‑se em seu historiador, Godard passa a apelar a uma arte que já não seria tanto a da obra mas mais a das pessoas, a «do coração» [6].

Do lado do espectador, realizadores e intérpretes já não seriam assim seres fora do comum, cujos mínimos gestos aparecem relatados nas revistas sensacionalistas. Romper-se-ia com o fantasma segundo o qual cada qual sonha ser artista, como ainda mostra a multiplicação das escolas de cinema ou de teatro, sabendo­‑se ao mesmo tempo que poucos candidatos hão-de obter emprego [7]. As manifestações em França dos trabalhadores intermitentes do espectáculo sublinham a sua precariedade e põem em causa um prestígio exagerado, parecendo assim perfilar-se o luto do artista excepcional que escapa às categorias do trabalho assalariado.

Entretanto, e apesar das resistências, o «cinema do coração» desejado por Godard sempre acabou por surgir. Alguns realizadores, em vez de lamentarem a morte do autor, insuflam-lhe uma nova vida, modificando as suas relações com os outros – actores, técnicos, espectadores. É o caso de Abbas Kiarostami [8] que constrói ficções com actores não profissionais, elaborando com eles as personagens a partir da sua própria realidade, mas deslocada e assumida, evitando o voyeurismo. A familiaridade de Kiarostami com os seus actores chega a tal ponto que a naturalidade obtida é mais verdadeira do que a do documentário. A cena de 10 em que uma mãe divorciada discute no carro com o filho jovem, a propósito das suas opções de vida, tem uma justeza assombrosa. Em O Sabor da Cereja, a reticência de um jovem soldado em participar num suicídio é tão perturbadora que se torna difícil acreditar que ele está a desempenhar um papel.

Kiarostami reconcilia democratização e criação, sem desdenhar das novas técnicas, tais como a câmara digital, que o leva a estar ainda mais próximo dos seus actores e da paisagem. Kiarostami partilha com os cineastas signatários do famoso manifesto Dogma 95 [9] a recusa de recorrer a artifícios para controlar as nossas emoções: música redundante, esteticismo refinado, travellings espectaculares, actos “superficiais” tais como assassinatos, etc. No lendário A Festa (1998), realizado por Thomas Vinterberg segundo esses princípios de castidade, o realismo ultrapassa o do documentário, conseguindo evitar o sensacionalismo na delicada questão do incesto. A família filmada por Vinterberg existe tanto mais quanto não era “representativa” nem mitológica. A inquietante revelação da festa familiar comove-nos por não ser sublinhada por nenhum discurso exterior. Os actores mergulhados no escândalo viveram a situação, quando um documentário verista sobre o incesto teria proposto às vítimas que desempenhassem o seu próprio papel exagerando-o.

NÃO SE PERDER NOS BONS SENTIMENTOS

No cinema de Luc e Jean-Pierre Dardenne [10] o espectador vê-se perante a carne dos protagonistas, mais do que perante a sua psicologia; a emoção provém desse confronto físico, mais do que das palavras que designariam aquilo que deve comover-nos. Isso nota-se no trabalho dos actores; Olivier Gourmet fez questão de manter durante as filmagens de O Filho uma rigorosa distância com o jovem actor que desempenhava o papel do assassino do “seu” filho, para que uma tensão efectiva impregnasse o ecrã.

As progressões nos aspectos formais deste cinema verificam-se no seu conteúdo, menos simplista ou previsível, onde ocorrem bifurcações como na vida verdadeira. Em O Sabor da Cereja, de Kiarostami, a vontade de suicídio conduz a um novo despertar. Em Contratei um assassino (1991), do finlandês Kaurismäki, Jean-Pierre Léaud, no papel dum solitário expatriado, renuncia, pelo amor tardiamente descoberto, ao “contrato” que ele próprio encomendou para acabar com a existência. Em A Vida é um Milagre (2004), Emir Kusturica [11], humildes animais que interrompem o acto fatal reconciliam-nos com o presente, onde a busca de um sentido (nacionalismo, vocação artística, etc.) conduz ao desespero. Embora esteja presente, a morte não triunfa, sem por isso cair na beatice dos happy ends das xaropadas hollywoodianas. De Kiarostami afirmando que «a vida é mais importante que o cinema» [12] aos irmãos Dardenne sublinhando que a presença vital do assassino é mais forte para o pai do que a lembrança do filho morto, insiste-se assim na «vida que continua», por oposição à nostalgia do autor-fantasma.

Desta prevalência da vida decorre a rejeição de vitimar; o casal de apaixonados de A Vida é um Milagre resiste aos estereótipos da guerra civil servo-bósnia. Em vez de serem vencidos pelo sismo, os aldeões filmados por Kiarostami em Através das Oliveiras (1994) enterram os seus mortos, jogam futebol e reconstroem as suas casas.

Dado como morto e despojado da sua memória, o herói de O Homem sem Passado (2002), de Kaurismäki, inventa para si mesmo uma vida mais exaltante do que a sua existência confortável anterior à agressão. O estado oficial da vítima apaga-se por trás da personagem que dela se liberta. Do mesmo modo, ao renunciar a vingar o filho, o pai filmado pelos irmãos Dardenne já não se define pelo luto, mas sim pela transmissão do seu saber ao aprendiz que com ele trabalha; e este deixa de ser apenas determinado pelo homicídio que cometeu, passando a sê-lo também por uma partilhada necessidade de filiação.

Eleonore Faucher, no seu primeiro filme, Bordadeiras (2003), tece também laços entre uma adolescente que ficou grávida muito cedo e uma mãe suicida, em luto pelo filho único; tal como a madeira e o trabalho de marcenaria reuniram as personagens dos irmãos Dardenne, os tecidos, as pérolas e os fios coloridos da arte de bordar sustentam o encontro da mulher e da jovem, levando-as a optar pela vida.

Apesar das suas proximidades, todos estes filmes evitam os discursos sobre o perdão e não se perdem nos bons sentimentos. Ao invés disso, mostram que as pessoas encontram soluções inéditas, exteriores a qualquer teoria. E que se mantêm irredutíveis a uma realidade única, ainda que ela seja militante.

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* Denis Duclos é sociólogo, director de investigação no CNRS e autor, nomeadamente, de Complexe du loup­‑garou. La Fascination de la violence dans la culture américaine, reedição de 2005 com novo posfácio, La Découverte, Paris. Valérie Jacq é filósofa, membro duma administração da cooperação cultural.

[1] Ler a entrevista com Marie-Pierre Duhamel-Müller, directora artística do Festival do Real, Les Cahiers du Cinema, n.º 594, Outubro de 2004.
[2] Filme norte-americano de terror, de David Myrick e Eduardo Sanchez, 1999.
[3] 50 milhões de espectadores nas audiências de Verão.
[4] Cf. “Vive la télévision”, Le Monde, 10 de Agosto de 2004.
[5] Cahiers du Cinéma, Abril de 2004.
[6] Histoire(s) du Cinéma, n.º 3, última sequência, filme de Jean-Luc Godard (1988-1998).
[7] Charles Gayssot, rádio France­‑Inter, 29 de Julho de 2004.
[8] Realizador iraniano, Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1997 pelo seu filme O Sabor da Cereja. Presidente do júri da Câmara de Ouro no Festival de Cannes, de 11 a 22 de Maio de 2005.
[9] Movimento de realizadores dinamarqueses, nomeadamente por iniciativa de Lars von Trier, para lutar contra as superproduções e os artifícios.
[10] Realizadores belgas, autores de A Promessa (1996), Rosetta (Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1999) e de O Filho (2002).
[11] Presidente do 58º Festival de Cannes (2005).
[12] Em Abbas Kiarostami, textes, entretiens, filmographie complète, Éditions de l’étoile, Paris, 1997.
Denis Duclos e Valérie Jacq
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/cultura/cinema012.htm

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