segunda-feira, janeiro 15, 2007

O “gulag” caribenho dos Estados Unidos: Cinco anos de limbo legal

No dia 11 de Janeiro de 2002, o Pentágono transladou um primeiro grupo de prisioneiros desde o Afeganistão até à sua base em Cuba, negando-lhes até hoje todo o tipo de direitos.

Faz hoje exactamente cinco anos que chegaram ao centro de detenção da Estação Naval da Base de Guantánamo, após uma viagem interminável desde o Afeganistão, dezenas de fantasmais figuras anónimas metidas em fatos-macacos cor­‑de­‑laranja... não por casualidade a mesma cor utilizada para os presos do corredor da morte nos Estados Unidos. Nas imagens que nesse dia percorreram o mundo viam-se ajoelhadas perante as suas celas de rede do provisório Camp X-Ray sob o inclemente sol do Caribe, com as suas mãos manietadas e metidas em grossas luvas para lhes impedir­­­ o tacto, orelheiras para que não ouvissem, enormes óculos opacos para que não vissem e máscaras cirúrgicas para que nem saboreassem nem cheirassem; a conhecida técnica de privação sensorial.

Ao contrário de outras fotos tão terríveis e humilhantes como estas, que também irromperiam nos ecrãs e nas portadas de todo o mundo algum tempo depois, no dia 30 de abril de 2004 – as dos prisioneiros iraquianos da prisão de Abu Ghraib, tiradas, como disse em seu momento Donald Rumsfeld, por umas perversas maçãs podres da Polícia Militar –, as de Guantánamo eram fotos oficiais, realizadas e distribuídas pelo mesmíssimo Pentágono.

Como denunciou em seu momento Mary Robinson, então Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, com esse simples facto mostrava já a sua violação de normas elementares das Convenções de Genebra. Contudo, para George W. Bush, os mais de 700 prisioneiros que passaram por Guantánamo, tal como todos os capturados no Afeganistão ou os que foram sequestrados e transladados pela CIA na sua frota de aviões civis para algum centro de tortura no âmbito da guerra contra o terror, não podem acolher­‑se aos direitos reconhecidos pelas Convenções de Genebra para os prisioneiros de guerra desde 1950. Dois meses antes da chegada dos primeiros prisioneiros a Guantánamo, Bush decidiu unilateralmente, por meio da Ordem Militar “Detenção, Tratamento e Julgamento de certos não cidadãos na Guerra contra o Terrorismo”, negar­‑lhes esse direito, ao estabelecer para eles a nova categoria jurídica de «combatentes inimigos».

Entre outras cláusulas, na número 7 dessa Ordem estabelece-se que o detido não tem, em nenhum caso, direito a recorrer a nenhum tribunal «nem nos EUA nem em nenhum outro país nem perante um tribunal internacional». Só pode ser julgado por tribunais especiais constituídos por três oficiais, que podem condená­‑lo à morte, e é­‑lhe atribuído um advogado militar oficioso, que pode negar­­­‑lhe informação do próprio sumário que considere sensível para a segurança nacional. Apesar de no dia 30 de Junho passado todos os meios de comunicação terem anunciado com grandes títulos a decisão do Tribunal Supremo dos EUA que considerava «inconstitucionais» e «ilegais» esses tribunais, a Ordem Militar ainda continua em vigor.

Rob Freer, investigador da Amnistia Internacional especializado nos EUA e autor do documento “Estados Unidos da América, cinco anos no lado escuro”, hoje publicado, recorda que esse país ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos em 1992, na época de Bush pai, e a Convenção contra a Tortura, em 1994, sob a Presidência de Clinton.

«Durante pelo menos os quatro primeiros anos de detenções no contexto da guerra contra o terror, os advogados do Departamento de Justiça argumentaram que, devido a ditas reservas, os EUA não tinham obrigação alguma, em virtude de nenhum tratado, relativamente aos tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes de cidadãos estrangeiros enclausurados fora do território nacional (incluído Guantánamo) sob custódia estadunidense. Ainda que o Congresso tenha aprovado a Lei sobre o Tratamento dos Detidos em 2005, que proibia os ditos tratamentos, as reservas continuaram em vigor, permitindo eludir a dita lei», acrescenta Freer.

Apesar da sua débil situação política, o Governo Bush não está disposto a ceder perante as pressões para que feche o centro de detidos da base de Guantánamo e no dia 8 de Dezembro passado foi anunciada a construção do Camp 6, composto por outras 168 celas. Pouco antes, no dia 18 de Outubro, Bush conseguiu também levar por diante no Congresso uma lei que confere nada menos que a ele, pessoalmente, a capacidade para «interpretar o significado e a aplicação das normas internacionais para o tratamento dos prisioneiros».

ENCLAVE EM TERRITÓRIO INIMIGO

Depois da guerra contra Espanha em 1898, o Congresso dos EUA votou em 1901 uma emenda à Lei de Orçamentos do Exército, proposta pelo senador Orville S. Platt – que passou a ser conhecida como Emenda Platt – e que foi imposta na própria Constituição cubana dessa época, pela qual se proibia ao Governo de Havana que concertasse tratados internacionais sem consentimento estadunidense. Também concedia aos EUA – cujo presidente, William McKinley, tinha enviado tropas para a ilha para supostamente ajudar os independentistas – o direito de intervenção para preservar «a independência de Cuba e a sobrevivência de um Governo estável», autorizando os Estados Unidos a estabelecer na ilha carvoeiras e estações navais.

Apesar da forte rejeição popular que tal imposição externa provocou em Cuba, as ameaças de manter a ocupação militar que já existia desde 1900 através do governador militar Leonard Word fizeram com que a Convenção Constituinte aceitasse incorporar a Emenda Platt na Constituição por 16 votos contra 11, com quatro abstenções. Como consequência de uma das cláusulas da Emenda Platt, dois anos após entrar em vigor, em 1903, foi instalada a base naval de Guantánamo. O novo presidente norte-americano, Theodore Roosevelt, já tinha retirado as tropas um ano antes, mas com os direitos que a Emenda Platt dava aos EUA, os marines intervieram numerosas vezes nos assuntos internos da ilha durante as três primeiras décadas do século para “restaurar a ordem”.

Foi durante a Presidência de outro Roosevelt, Franklin Roosevelt, que Washington descobriu o que seria depois por muito tempo o seu homem de confiança, Fulgencio Batista, e, para lhe dar margem política de acção, aceitou derrogar-lhe em 1934 a Emenda Platt, ainda que com uma excepção expressa sobre a estação naval de Guantánamo, que ficou sob controle norte-americano.

Apesar das denúncias realizadas pelo Governo de Fidel Castro desde a sua chegada ao poder em 1959, a ONU não fez mais que referências genéricas ao assunto em resoluções nas quais se proíbe a utilização de bases militares em territórios coloniais.

Durante os anos 60, produziram-se uma série de incidentes entre as autoridades cubanas e os comandos da base de Guantánamo. Em 1961, um operário cubano morreu por golpes de pessoal da base, tal como um pescador um ano mais tarde, enquanto dois soldados cubanos resultaram mortos em 1964 e em 1966 por disparos dos guardas norte-americanos.

As autoridades cubanas denunciaram repetidamente que as provocadoras manobras militares realizadas por forças estadunidenses nessa base, que abarca uma área de 117 quilómetros quadrados, quase 50 deles de terra firme e o resto de água e pântanos, já provocaram danos ecológicos irreparáveis no entorno. Inúmeras vezes estiveram estacionados na base submarinos nucleares dos Estados Unidos.

Não é a primeira vez que um presidente Bush utiliza a Estação Naval da Baía de Guantánamo para algum tipo de reclusos. No princípio dos anos 90, foi George Bush pai quem a utilizou para concentrar numerosos balseiros haitianos que tentavam ganhar a costa dos Estados Unidos, perante o temor de que estivessem infectados de SIDA.

Organizações humanitárias denunciaram que viviam numa espécie de campo de concentração e um juiz declarou em 1993 inconstitucional a sua existência e ordenou a sua dissolução.
Roberto Montoya
El Mundo; traduzido de Rebelión
http://www.infoalternativa.org/usa/usa143.htm

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