sábado, janeiro 13, 2007

O movimento social na Bolívia, poderoso e fragmentado

Se as manobras de última hora dos sectores mais conservadores não conseguirem adiá-las, as eleições gerais de 4 de Dezembro na Bolívia poderão ser “históricas”. Neste momento, e apesar das divisões que os atingem, os movimentos sociais estão prestes a aceder ao poder político levando pela primeira vez um indígena, no caso Evo Morales, à presidência da República.

Aqui, em Huanuni, nos recessos caóticos do Altiplano [1], existe uma mina de estanho. Noutros lados, há ouro, cobre, antimónio, prata, zinco. Ou petróleo e gás natural, matérias-primas que incendeiam os ânimos, se assim podemos dizer... Mas aqui, em Huanuni, se se esburaca as entranhas da terra até 240 metros de profundidade, na escuridão opressiva de quilómetros e quilómetros de galerias, é para lhe arrancar o estanho. Vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, 850 mineiros esfalfam-se em troca de 1000 bolivianos por mês – cerca de 125 euros. «Trabalhamos mesmo ao domingo», admite um deles, «para ganhar três mitas». A mita corresponde a um dia de trabalho; se sacrificar o seu repouso semanal, o mineiro recebe o triplo do que receberia num dia vulgar.

Quer isto dizer que as pessoas, aqui, nada têm a perder. Se for preciso, quando for preciso, desembarcarão em La Paz, com dinamite nas mãos. «Tivemos mortos, mas o nosso papel foi fundamental na queda de “Goni” e de Mesa».

“Goni” é Gonzalo Sánchez de Lozada, presidente ultraliberal oriundo do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), derrubado por uma revolta popular e sangrenta – 67 mortos –, a 17 de Outubro de 2003. Mesa é Carlos Mesa, o seu vice-presidente e sucessor, que teve por sua vez que se demitir, a 6 de Junho de 2005, após três semanas de convulsões sociais.

Desde 1985, fossem de direita ou pretensamente de esquerda, todos os governos seguiram dogmaticamente as linhas da nova política económica, posta em prática pelo Decreto 21060: privatização das minas, das telecomunicações, dos transportes aéreos e ferroviários, da água, da electricidade, dos sectores petrolífero e do gás.

O despedimento de 25.000 mineiros, aquando da passagem para os privados das minas de estanho, atingiu em cheio a Central Operária Boliviana (COB) de que eles eram o coração, a carne e o sangue. Contrapoder desde a revolução de Abril de-1952, foi ela, a COB, que combateu os militares durante todo o período da ditadura, até 1982. O fecho de fábricas, a que se juntou o choque ideológico provocado, em 1989, pela queda do Muro de Berlim, acabaram por desmembrar este movimento impregnado de marxismo. O campo da luta esvaziou­‑se. Pelo menos aparentemente. Porque, como sublinha o sociólogo Alvaro García Linera, «a sociedade cria então outros mecanismos de representação e de acção política: os movimentos sociais, articulados através de redes territoriais».

Os primeiros, organizados em comunidades agrárias (sindicatos), os cocaleros, começaram a surgir na região de Chapare. Produtores de coca, eles resolveram, através desta cultura, o problema vital – sobreviver! – com que estavam confrontados. Washington não escondeu a sua cólera. Na cruzada contra o narcotráfico, a Casa Branca só tem uma obsessão: fazer desaparecer a coca e os cocaleros, metidos no mesmo saco que a cocaína, através de políticas coercivas, pela erradicação forçada e pela repressão. Resistindo a tudo isto, aparece um dirigente, um combatente, um índio aymara, chamado Evo Morales.

Em 2000, Cochabamba mobiliza-se por sua vez para expulsar a multinacional Bechtel, escandalosamente beneficiada pela privatização da água potável. O país agita-se, o país balança, o país sacode a era glacial do neoliberalismo. Presidente do sindicato dos cocaleros, Evo Morales abre para si mesmo um espaço nacional, através da criação, em 1999, do Movimento para o Socialismo (Movimiento al Socialismo, MAS), mais uma confederação de organizações sociais do que um partido. Deputado de Cochabamba desde 1997, batido claramente nas eleições presidenciais de Junho de 2002, coloca então 36 deputados (entre os quais ele próprio) e senadores no Congresso (a partir das eleições municipais de 2004, o MAS tornou-se a principal força política do país).

Paralelamente, múltiplas organizações entregam-se à luta: a poderosa Confederação Sindical Unitária dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), base social do muito radical Movimento Indigenista Pachakuti (MIP); o Movimento dos Sem Terra da Bolívia (MST-B); o que resta da COB – os seus filiados, os Sindicatos Operários Regionais (SOR) –; os cooperativistas e os coordenadores da água; e ainda os comités de bairro, sobretudo os de El Alto, impressionante cidade-dormitório de 800.000 ex-camponeses ou mineiros, maioritariamente indígenas, pousada, quinze minutos acima de La Paz, sobre a poeira ocre do Altiplano. Unidos no seio da Federação dos Comités de Vizinhança (Fejuves), foram eles que negociaram com a multinacional Aguas de Illimani (Suez-Lyonnaise des eaux). Da luta pela água à luta pelo gás, vai um passo...

Produtora de petróleo, a Bolívia possui as segundas maiores reservas de gás da América Latina, depois da Venezuela. A Constituição consagra a propriedade inalienável do Estado sobre os recursos naturais presentes «no subsolo». A 30 de Abril de 1996, num espantoso passe de magia, a Lei n.º 1689 concedeu às companhias privadas a propriedade dos hidrocarbonetos a partir do momento em que estes, emergindo embora do “inalienável” subsolo... afloram à superfície do poço. Exploração, produção, transporte, refinarias, distribuição e comercialização caem assim nas garras das multinacionais. Considerados como “novos”, os campos petrolíferos e de gás natural descobertos a partir da lei de 1996, assim como as jazidas não exploradas até essa data, passam a ser taxados a 18 por cento, quando os “antigos” (muitas vezes rebaptizados como “novos” depois de artifícios grosseiros) o eram a 50 %.

Fingindo não reparar na exasperação do povo, o presidente Sánchez de Lozada montou um gigantesco projecto de exportação de gás natural liquefeito para a Califórnia. Um chorudo negócio para o consórcio Pacific LNG, uma verdadeira pilhagem do país. Pior ainda, o gasoduto planeado atravessaria o Chile, “inimigo hereditário” desde a desastrosa guerra de 1879. A população subleva-se. “Goni” ordena às tropas que disparem sobre as multidões. Confrontado com a tenacidade destas, decide afastar-se para longe da Bolívia. Quem lhe sucede é o seu vice-presidente, Carlos Mesa.

Recuperação dos recursos naturais, “nacionalização” dos hidrocarbonetos e convocação de uma Assembleia constituinte figuram na ordem do dia de todas as facções das forças populares. Submetido a esta pressão, mas apoiado circunstancialmente por Evo Morales, o chefe de Estado organiza um referendo sobre os hidrocarbonetos, a 18 de Julho de 2004. A população participa e, por uma larga maioria (70 por cento), pronuncia-se a favor da «recuperação» da sua propriedade pelo Estado.

A 21 de Outubro, para grande prejuízo do presidente Mesa, que a considera «abusiva» e «confiscatória» para as multinacionais, o Congresso aprova uma nova lei que aumenta a intervenção do Estado nos negócios petrolíferos e cria um imposto directo sobre os hidrocarbonetos (IDH) de 32 por cento sobre a produção (o que, juntando aos 18 por cento em vigor, eleva a taxa cobrada pelo Estado a 50 por cento). Um avanço para alguns, entre os quais o MAS. Uma traição para os radicais da COR e da Fejuves de El Alto, da COB e do MIP, defensores de uma nacionalização pura e dura, que se traduziria por uma expulsão das multinacionais, sem indemnização...

É que, capaz de unir-se em tempo de crise, esta vasta torrente contestatária caracteriza-se por uma enorme fragmentação. «Divisões territoriais, ideológicas, religiosas e de classe», precisa García Linera, considerado por muitos como o “ideólogo do movimento social”. Ele sorri – «É muito generoso... » –, mas o detalhe tem a sua importância, como se verá mais adiante. «Em certos momentos», retoma, «este movimento construiu unidades territoriais, locais, em torno de temas muito quotidianos – água, electricidade, energia. Em período de tensão, isto transforma­‑se em força e em acções colectivas, que, no momento mais forte da confrontação, se articulavam em movimentos de massas. Antes de voltar a mergulhar na divisão, uma vez atingido o objectivo comum.»

Aquando das eleições de 2002, Evo Morales tivera que sofrer os golpes da direita e de Washington: «narco­‑cocalero», «instrumento de Chávez e de Castro», «amigo das FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia]». Invertida a situação, são agora os “duros” do movimento popular que o atacam. «Evo é um traidor», fulmina Jaime Solares, dirigente da COB. «Comprometeu-se a lutar pelas nacionalizações e, cúmplice do governo, não o fez». Os libelos circulam, evocando «o papel de Evo Morales na estratégia e nos planos da CIA e do Departamento de Estado americano para quebrar os protestos sociais».

O líder do MAS não se deixa perturbar com isto: «Não houve pacto com Mesa, não houve nenhuma aliança. Se houver medidas más, nós rejeitamo-las. Mas quando são boas, como a convocação do referendo, nós apoiamo­‑las». Efectivamente, o MAS volta à ofensiva desde que se torna claro que Mesa, apostando no esvaziamento da contestação, leva à prática um imobilismo despropositado. Subitamente, a Bolívia volta a ser tomada por uma agitação que ninguém pode acalmar. Radicais, moderados, rurais, urbanos, todos relançam a luta com tanto mais ardor que a direita neoliberal começa a reorganizar-se em torno das elites brancas das províncias ricas a leste do país, Santa Cruz e Tarija. Os seus Comités cívicos reclamam autonomia e pretendem que cada departamento disponha livremente dos seus recursos financeiros e naturais. Ou seja, o gás e o petróleo, cujas principais jazidas se encontram sob os seus pés, e que eles tudo fazem para vender nas condições anteriores, de forma a não penalizar as multinacionais, suas fiéis aliadas.

El Alto desce sobre La Paz, o território dos brancos, a classe dominante, o poder de Estado. Fala-se de pôr em marcha uma Assembleia Popular Revolucionária, embrião de um “Estado operário e camponês”, sob a direcção da COB. Um “soviete” destinado a fazer cair o “conciliante” Evo Morales. Para os moderados., uma “provocação de extrema­‑esquerda”, que faz o jogo da extrema-direita. Isto porque se a COB recusa a mediação da Igreja, o seu chefe, Solares, esquecendo os anos da ditadura, apela à... intervenção do exército! Enquanto circulam rumores de golpe de Estado, Morales denuncia as pretensões da “nação camba” (os autonomistas de Santa Cruz), ao mesmo tempo que apoia uma saída constitucional.

Embora assente numa miríade de organizações instáveis, oportunistas, que fazem pactos e acordos umas com as outras, que se opõem entre elas, que lutam ferozmente, que se traem.... a oposição não deixou de conseguir, ainda assim, paralisar o país, em Maio e Junho de 2005, levando Mesa à demissão, a 6 de Junho.

Constitucionalmente, Hormando Vaca Diez, senador do MIR (Movimento da Esquerda... Revolucionária [2]!) de Santa Cruz, e presidente do Senado, deveria assumir a sucessão. A fim de conservar o poder, os outros partidos tradicionais – Nova Força Republicana (NFR), Aliança Democrática Nacional (ADN) e Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR, partido de Sánchez de Lozada) – apoiam-no. A agitação atinge o paroxismo. Ninguém aceita esse proprietário de terras, perfeito supletivo do lóbi petrolífero. A revolta prossegue quando o nome de Mario Cossío (MNR), presidente da Câmara dos Deputados, ele próprio um ex-aliado de “Goni”, é evocado. Acaba por ser Eduardo Rodríguez, presidente do Supremo Tribunal (o único habilitado a convocar novas eleições) que o Congresso, aterrorizado com a ameaça de uma guerra civil, instala na presidência, a 10 de Junho. É também ele que, depois de um acordo político nacional destinado a tirar o país do caos, e depois de o Congresso ter aprovado uma reforma da Constituição (artigo 93), convoca efectivamente eleições gerais para 4 de Dezembro de 2005.

Trata-se de um grande passo em frente para o MAS, pois Morales encontra-se em excelente posição para as presidenciais. «São eleições históricas», afirma, expressando um sentimento muito difundido, Alex Contreras, dirigente da Escola do Povo 1.º de Maio, em Cochabamba. «Após vinte anos de recuperação do sistema democrático, é a primeira vez que o movimento social, popular e indígena se encontra tão perto de conquistar o poder». É também a primeira vez que um índio tem hipóteses de aceder à magistratura suprema na Bolívia – e no continente.

Acontece que os dois grandes blocos deste movimento social, depois de terem triunfado juntos, continuam a dilacerar­‑se. Ambos possuem uma base maioritariamente indígena, ambos têm uma composição urbana e rural. Os radicais, agrupados em torno da COB, do MIP e da Fejuves de El Alto, mobilizam-se na zona aymara (o Altiplano), a mais combativa do país, com um discurso étnico muito forte. A mobilização do MAS apoias­‑e igualmente numa base agrária (camponeses de Chapare, de Yungas, de Sucre, de Potosi, de Oruro, de Santa Cruz; camponeses sem­‑terra e confederações indígenas do leste do país) e nos sectores assalariados urbanos, tendo ainda estabelecido ligações com as corporações, e, sem insistir na integração e na revalorização da identidade étnica, conta com um número significativo de mestiços, numa abordagem que poderíamos classificar de “nacional”.

Na sede da COB, Solares entusiasma-se ao evocar «a revolução operária-camponesa, ou seja, a tomada do poder pela insurreição popular». Este homem não aceita nenhum compromisso e, sem dúvida para fazer esquecer as sombras que sujam o seu passado [3], recuperou um vocabulário de forte carga simbólica: «Nós, os trabalhadores, pensamos que vem aí uma guerra civil ou uma revolução». E embora eles [a COB] não sejam numerosos, nota um atento observador da sociedade boliviana, «disfarçam a sua fraca capacidade de mobilização» – quem a consegue são os índios e os camponeses – «atrás de uma retórica ultra­‑radical, funcionando como uma espécie de má consciência da esquerda. Solares sabe que o seu discurso não é realista, mas está­‑se nas tintas, porque vai encurralando o MAS, mais moderado, capitalizando esta liberdade de dizer o que muito bem entende».

O mesmo se passa com Roberto de la Cruz, dirigente da COR de El Alto, que propõe muitas ideias, cada uma mais radical do que a outra: formar uma Assembleia Popular, criar grupos de choque para combater os cambas e um Exército de Libertação Nacional. É um indivíduo ideologicamente confuso, mas muito decidido nos momentos de crise e, nesses períodos, capaz de inflamar os seus partidários. Tal como Abel Mamani, dirigente da Fejuves de El Alto: «Ele tem a virtude de compreender que é preciso resistir. Ao resistir, sai a ganhar. Mas, politicamente, dispersa-se muito.»

Líder do MIP e dos índios camponeses da CSUTCB, Felipe Quispe dirigiu, nos anos 90, o exército guerrilheiro Tupac Katari (EGTK), antes de ser detido e preso durante cinco anos. Aquele a quem chamam o malku (condor, em aymara) defende o regresso ao Collasuyo [4]: «Nós queremos construir o nosso próprio Estado confederado, o nosso próprio governo, dirigido por um presidente indígena, o nosso próprio exército, a nossa própria economia, enquanto descendentes de Wayna Qhapak, o governo soberano dos incas». Analisando a situação como uma “guerra das raças”, ele estigmatiza tanto os q’aras (não índios) de direita como de esquerda, e comenta desta forma os últimos acontecimentos: «O povo triunfou. Deitámos abaixo Mesa e o MAS, que tinha pactuado com ele.»

Estamos perante diferenças políticas e ideológicas. Mas também, e talvez sobretudo, trata-se de um confronto entre direcções e caudilhos. Mais velho, Quispe tem dificuldade em ver Evo Morales, cobrizo [5] como ele, a suplantá­‑lo junto dos indígenas (a CSUTCB, que ele dirige, na prática dividiu-se em dois) e no conjunto da oposição. Resistências similares encontram-se nos dirigentes secundários: Mamani (Fejuves de El Alto), por exemplo, não disputa a liderança de Morales, mas não quer ser um simples subordinado.

Testemunhas da progressão do MAS, único movimento político-social surgido da acção colectiva popular que conseguiu passar do quadro local para o nacional, os dirigentes da COB, do MIP, da Fejuves sonham, cada um deles, com a formação de um novo instrumento político, sem no entanto terem para isso os meios necessários. Daí haver neles um forte sentimento de frustração.

Alguns episódios extravagantes dizem por vezes muito sobre as ambições pessoais e a confusão ideológica. É o caso de Solares (COB) quando ataca Morales – «Evo nunca falou pelos trabalhadores ou pelo proletariado; ele só se interessa pela coca, pelos territórios, pela identidade [indígena]» – antes de anunciar: «Nós vamos fazer uma grande aliança revolucionária com Felipe Quispe». O mais intransigente dos indigenistas do continente americano! Se a ideia fosse avante, a candidatura a vice-presidente de Solares, para acompanhar o MIP e o malku, estaria rapidamente condenada ao fracasso... Por seu lado, ameaçando lançar mobilizações em 2006 se as suas pretensões não forem satisfeitas, Mamani informa que decidiu apoiar o MAS ou o Grupo dos Seis (G6), uma coligação dos presidentes de câmara de La Paz, Cochabamba, Potosi, Sucre, Oruro e Cobija, que pretendem representar a “esquerda moderna”, quando tudo os separa, da prática à ideologia, muitíssimo neoliberal para alguns deles [6].

Mesmo as organizações de segunda linha fazem subir as apostas. «As iniciativas não estão ligadas aos problemas de fundo», assinala Contreras, «mas às quotas de poder que cada um poderia obter, com ou contra o MAS, no Congresso». Isto condena qualquer aliança ao insucesso ou, em todo o caso, atrasa-a, o que leva por vezes Morales a suspirar: «Na América Latina, somos bons a derrubar presidentes. Deveríamos mostrar­‑nos igualmente bons a substituí-los». E em seguida precisa: «A participação de todos seria desejável. Mas é preciso analisar a situação em profundidade. Eu não tenho uma posição maximalista que envolva o recurso à luta armada, à insurreição, ao golpe de Estado. Eu aposto numa mudança de modelo económico e social, baseada na consciência do povo e na democracia».

Uma crise de características pré­‑revolucionárias, mas ao mesmo tempo desprovida de instrumentos políticos? Não exactamente. Porque a base não segue forçosamente os que dizem representá-la. Em El Alto, conta Nestor Guillén, dirigente da Villa el Ingenio (que faz parte da Fejuves), as manifestações eram originariamente organizadas pelos dirigentes. «Compañeros, é preciso ganhar a rua!» Pouco a pouco, a situação mudou. Nos bairros, são os habitantes que decidem: «É preciso sair! É preciso marchar!» Uma exigência vinda de baixo para cima. «A capacidade de mobilizar El Alto depende não da Fejuves, mas do facto de que os distritos e os prédios, nas suas assembleias, decidem que é preciso agir. Sem isso, Mamani pode convocar tudo o que quiser que ninguém o seguirá». É assim que, apesar do apelo ao boicote do seu chefe, os habitantes de El Alto participaram massivamente no referendo sobre os hidrocarbonetos, dando implicitamente razão ao MAS, que eles voltarão a apoiar, tudo o indica, nas próximas eleições.

Quanto a Quispe, digamos que serrou o ramo no qual estava sentado quando, eleito deputado do MIP (seis lugares), em 2002, rapidamente abandonou o cargo, declarando: «Prefiro trabalhar nas campanhas e fazer o trabalho político que sempre foi o meu». Ao perguntarem-lhe se desejava regressar ao Parlamento, respondeu com a sua característica franqueza: «Eu não nasci para ser deputado, nasci para ser presidente!» O episódio deixou marcas. «Esta atitude demonstra que ele não tem capacidade para fazer política», resume Guillén. «Don Evo [Morales], esse, assumiu o seu mandato parlamentar, sempre mostrou que está contra o modelo e permaneceu na área da governação, a levar adiante o seu combate».

Seja como for, o MAS marca um ponto decisivo quando, a 16 de Agosto de 2005, designa como candidato à vice­‑presidência o sociólogo Alvaro García Linera, que pegou em armas com o EGTK de Quispe e, como este último, esteve preso até 1995. Capaz de declarar: «fiz parte de um grupo de guerrilheiros e não me arrependo, continuo a ser o mesmo de há 15 anos, simplesmente hoje mudei de método», ele é visto como uma referência no seio do movimento social. De facto, a sua nomeação aproximou rapidamente do MAS seis federações de camponeses, sectores das cooperativas mineiras, centrais sindicais regionais importantes (Oruro, Potosi, Cochabamba), transportadores de El Alto e até a Fejuves [7]... Como se não bastasse, García Linera, considerado um dos intelectuais mais influentes da Bolívia, abre uma brecha no seio da classe média, tal como junto dos universitários e dos estudantes. Isto significou um crescimento do MAS, largamente à frente nas sondagens, em detrimento de Jorge Quiroga, trânsfuga do ADN (o partido do falecido ditador, depois presidente democraticamente eleito, Hugo Banzer) e candidato preferido pela Embaixada dos Estados Unidos.

Isto é suficiente para provocar o pânico no campo neoliberal que, em desespero de causa, para ganhar tempo e um balão de oxigénio, tentou adiar as eleições. Esquecendo que a convocação antecipada foi fruto de um acordo político que decidiu agir para lá da letra da Constituição, devido à profundidade da crise, os parlamentares de Santa Cruz, a 4 de Agosto, recorreram para o Tribunal Constitucional. Denunciaram a violação do artigo 60 da dita Constituição, que define os lugares na Câmara dos Deputados a partir do último recenseamento, no caso o de 2001. Dada a urgência da situação, este item não foi tido em conta. Acontece que ele permite constatar um aumento de população no eixo La Paz-Santa Cruz-Cochabamba, que deveria aumentar a sua representação parlamentar e diminuir a do Altiplano. A 22 de Setembro, o Tribunal Constitucional aceitou o pedido, abrindo a porta a uma nova fase de intensa agitação.

Qualquer que seja a data do próximo escrutínio, a Assembleia Constituinte e a nacionalização dos hidrocarbonetos resumem a crise e a esperança do país. Nesta matéria, o MAS, que não dúvida da sua vitória, não tem a intenção de se atirar de cabeça para acções irreflectidas. «Uma nacionalização sem indemnizações, como a proposta pelos radicais, faria com que regressássemos aos anos 60, mas num país tão pequeno, que vive da ajuda dos organismos internacionais, colocar-nos-ia numa situação pior do que a sofrida por Cuba devido ao bloqueio», analisa Contreras [8]. García Linera vai no mesmo sentido, quando avança: «É uma questão de relação de forças. Eu sou favorável a uma solução pragmática. Que fazer com a Petrobras, ou seja, com o governo brasileiro? Um país de 80 milhões de habitantes! Devemos ser prudentes». Morales resume: «Muitas multinacionais operam em virtude de acordos ilegais e anticonstitucionais, fazem contrabando e não pagam impostos. Vamos fazer respeitar a lei, mas apostamos numa nacionalização feita através do diálogo e da concertação». Colocado em perspectiva, isto é exactamente o que fez a revolução bolivariana, na Venezuela. Um tipo de desenvolvimento no qual o Estado desempenha um papel central, mas que se pode fazer com investimento estrangeiro.

Quanto à Constituinte, face a uma direita que não a deseja – «se estivermos a falar de uma Assembleia com a capacidade de virar o país do avesso, afectando os direitos à propriedade, particularmente os relativos aos recursos naturais e à terra, e na qual 60 por cento dos representantes seriam indígenas» [9] –, o MAS pretende eleger uma Constituinte maioritariamente índia (à imagem do país), plenamente soberana, sem qualquer tipo de limitações ou restrições prévias. Mais uma vez, como na Venezuela!

Em qualquer caso, os Estados Unidos não se enganam ao fazerem do dirigente do MAS o seu inimigo número um. «Não é segredo para ninguém que Evo Morales é apoiado por Caracas e Havana, onde se encontram os seus maiores aliados», acusa Roger Noriega, subsecretário de Estado americano para a América Latina. Ao que o interessado respondeu, a 31 de Julho, aquando da sua proclamação como candidato à presidência da República: «Chávez e Fidel não pertencem de forma nenhuma a um qualquer Eixo do Mal. Eles são os comandantes das forças libertadoras do continente». E assim se revelam, afinal, os limites da sua “moderação”.
[1] Alto planalto andino, na parte oeste da Bolívia e no Sudeste do Peru.
[2] Criado nos anos 70 para lutar contra o militarismo, o MIR transformou-se num partido neoliberal, totalmente corrompido, mas não mudou de sigla: num país tão pobre como a Bolívia, afirmar-se de esquerda constitui um capital político.
[3] Segundo testemunhos coincidentes, Solares teria sido, nos centros mineiros, um informador dos grupos de segurança do Estado. Ex-dirigentes mineiros, presos durante a ditadura de Luiz García Meza, declararam publicamente terem sido denunciados por ele.
[4] Pátria ancestral do Império Inca (a metade ocidental da Bolívia, uma parte do sul do Peru, o norte da Argentina e do Chile).
[5] Cor da pele reivindicada pelos índios radicais.
[6] No fim de contas, a coligação do G6 chegou ao fim, minada pelas suas próprias contradições.
[7] Resolvendo à sua maneira o problema do “líder” de El Alto, o MAS fez de Mamani o seu candidato à prefeitura de La Paz, onde não tem a mínima hipótese de ser eleito.
[8] Desde já, a Petrobras (Brasil), a Repsol-YFP (Espanha-Argentina), a British Gas (Grã-Bretanha) e a Total (França) anunciaram a suspensão dos seus investimentos na Bolívia. Paralelamente, as multinacionais recorrem aos acordos internacionais de protecção recíproca dos investimentos para contestar a nova lei dos hidrocarbonetos, protegendo desta forma os seus interesses.
[9] Declaração do candidato à vice-presidência do partido União Nacional (UN), Carlos Dabdoub.
Maurice Lemoine
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/amlatina/bolivia021.htm

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