quarta-feira, janeiro 03, 2007

Tu, Argentina, 5 anos depois...

A Argentina, falou-se muito de ti desde essa noite de 19 para 20 de Dezembro de 2001 onde, após três anos de recessão económica, o teu povo se levantou contra a política neoliberal conduzida pelo governo de Fernando De la Rua e o seu desastroso ministro da Economia, Domingo Cavallo. Mostraste que a acção das cidadãs e dos cidadãos pode inflectir o curso da História.

Argentina, o encadeamento que conduziu à revolta do final de 2001 começou pela decisão do Fundo Monetário Internacional (FMI) de não te enviar um empréstimo previsto ao passo que os teus líderes sempre tinham aplicado as medidas impopulares que o FMI exigia. De la Rua reagiu bloqueando as contas bancárias dos poupantes, e espontaneamente, a tua classe média desceu à rua, acompanhada pelos “sem” (os desempregados, os habitantes dos bairros de lata, uma maioria dos teus pobres). No dia 27 de Dezembro de 2006, o teu Tribunal Supremo de resto ordenou aos bancos que atribuíssem uma indemnização total a estes poupantes roubados.

Argentina, há justamente 5 anos, três presidentes da República sucederam-se em alguns dias: De la Rua fugiu a 21 de Dezembro de 2001, e o seu sucessor, Adolfo Rodriguez Saa, foi por sua vez substituído por Eduardo Duhalde a 2 de Janeiro de 2002. Decretaste a mais importante suspensão de pagamento da dívida externa da História, para cerca de 100 mil milhões de dólares, tanto para com os credores privados como para com os países ricos agrupados no Clube de Paris [1]; centena de fábricas, abandonadas pelo seu proprietário, foram ocupadas e a actividade foi relançada sob a condução dos trabalhadores; os teus desempregados reforçaram a sua capacidade de acção no âmbito dos movimentos piqueteros; a tua moeda foi muito fortemente desvalorizada; os teus cidadãos criaram moedas locais e gritaram aos teus políticos uma reivindicação unânime: “Que se vayan todos!” (“Que se vão todos!”).

Argentina, após um quarto de século de acordo contínuo entre o FMI e as tuas autoridades (da ditadura militar, entre 1976 e 1983, ao governo de la Rua, passando pelo regime corrupto de Carlos Menem), demonstraste que um país podia parar de reembolsar a dívida de modo prolongado sem que os credores fossem capazes de organizar represálias eficazes. O FMI, o Banco Mundial, os governos dos países mais industrializados, os grandes meios de comunicação social tinham anunciado que o caos se instalaria. Ora, o que aconteceu? Longe de naufragar, começaste a reerguer-te.

Argentina, o teu presidente eleito em Maio de 2003, Nestor Kirchner, desafiou os credores privados propondo­‑lhes trocar os seus títulos contra novos de menor valor. Após longas negociações terminadas em Fevereiro de 2005, 76% dentre eles aceitaram renunciar a mais de 60% do valor dos créditos que detinham. O mundo tinha os olhos voltados para ti e tu fizeste a demonstração de que um povo podia dizer não.

Argentina, a sequência da história é bem mais decepcionante. Pois este acordo marcou finalmente a retoma dos reembolsos para com os credores privados. Além disso, há exactamente um ano, o teu governo reembolsou de forma antecipada a totalidade da tua dívida para com o FMI: 9,8 mil milhões de dólares ao todo. De acordo, economizaste 900 milhões de dólares de juros, mas aqueles que assim decidiram deram prova de uma amnésia muito grave. A ditadura do general Videla, apoiada pelo FMI e pelas grandes potências, tinha utilizado a dívida a fim de reforçar o seu poder, de enriquecer os seus dirigentes e de amarrar o país ao modelo dominante. Para reembolsar, os regimes que se seguiram delapidaram uma grande parte do património nacional e contraíram novas dívidas que são também elas odiosas [2]. Além disso, a obtenção destes novos empréstimos foi condicionada à aplicação de medidas de liberalização maciça, privatização sistemática e redução dos orçamentos sociais.

Argentina, os teus dirigentes poderiam, no entanto, ter feito melhor e este exemplo teria podido fazer escola em todos os continentes! Teriam podido quebrar os acordos com o FMI e o Banco Mundial. Teriam podido apoiar­‑se na sentença Olmos, pronunciada pelo teu Tribunal Federal de Justiça, e avançar com argumentos jurídicos sólidos para decretar que a dívida é odiosa e não tem que ser reembolsada.

A Argentina, estamos desconcertados por saber que as tuas autoridades negoceiam actualmente com o Clube de Paris, reunindo este escândalo institucional cada mês à porta fechada os representantes de 19 países ricos no ministério francês da Economia. Tu sabes, sem dúvida, que este Clube muito secreto tem por objectivo forçar os países em desenvolvimento sobreendividados a reembolsar a sua dívida ao máximo, sem ter em conta as consequências sociais. Deves-lhe 6,3 mil milhões de dólares, mas uma vez mais, esta dívida não aproveitou ao teu povo. Pelo contrário, os países do Clube de Paris, o FMI, o Banco Mundial, as grandes multinacionais utilizaram-na durante décadas para o oprimir, de modo que os teus responsáveis lhes entregassem os teus serviços públicos privatizados, desregulamentassem a tua economia e fizessem prova da maior docilidade enquanto, ao mesmo tempo, os teus orçamentos sociais eram severamente amputados. O filme La dignidad de los nadies [3], do teu compatriota Fernando Solanas, mostra bem as situações de pobreza extrema às quais tudo isso conduziu.

Argentina, o teu presidente deve escolher entre servir o teu povo e servir os teus credores. Infelizmente, voltou a entrar na ordem, foi mesmo simbolicamente à Bolsa de Nova Iorque em Setembro passado para fazer soar o sino inaugural. De golpe, os montantes que vais reembolsar nos próximos anos tornarão impossível pôr em prática uma política alternativa ao modelo neoliberal. As tuas exigências sociais, contudo justas, não poderão ser satisfeitas enquanto não repudiares esta dívida.

Argentina, eis cinco anos, os teus manifestantes indicavam outra direcção que pode alterar duradoiramente a situação em benefício dos povos. Hoje ainda, é essa que queremos.

[1] Ver www.clubdeparis.fr
[2] Sobre a questão da dívida odiosa, ler: Éric Toussaint, Uma “dívida odiosa”, Le monde diplomatique - edição brasileira, Fevereiro de 2002; Hugo Ruiz Diaz, Dívida odiosa ou dívida nula, CADTM, Dezembro 2002 (n. IA).
[3] http://www.cadtm.org/fr.mot.php3?id_mot=315
Éric Toussaint, Damien Millet
CADTM
http://www.infoal ternativa.org/autores/toussaint/toussaint021.htm

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