segunda-feira, janeiro 08, 2007

Vinte cêntimos

Na decisão do Irão de adoptar o euro como moeda oficial de cambio está implícito o fim do dólar e da hegemonia dos EUA
A árvore do Iraque não deixa ver o bosque do Oriente Médio (Líbano) e Longínquo (Irão). E menos ainda agora, quando temos a execução de Sadam Hussein como entretenimento de massas e literário. Quando o Grupo de Estudo sobre o Iraque (GEI) tornou público o seu relatório todo o mundo parecia muito feliz com a retirada das tropas de ocupação do Iraque. Mas não. Nem antes [1] nem então, nem agora quando Bush se reúne com a sua corte no seu rancho e decide conceder-se mais tempo para “retomar o rumo" da guerra. Um tempo que coincide, como se fosse por acaso, com o que a nova Resolução do Conselho de Segurança da ONU concede ao Irão para que ponha fim ao seu programa nuclear [2] E em ambas as situações existe o mesmo fio condutor: o petróleo. O GEI faz 79 sugestões ao governo Bush, mas vale a pena observar três delas, que evidenciam a razão principal da invasão do Iraque. São a 28, a 62 e a 63 e têm o mesmo denominador comum: a privatização do petróleo. No Iraque vem-se assistindo a um paulatino incremento da produção de petróleo, modesto mas sustentado mês após mês. A estratégia energética de Washington supõe que em meados de 2007 a produção do Iraque tenha alcançado os 2,8 milhões de barris diários (agora está em quase 2,1) e, assim, garantir-se uma importante baixa de pressão dentro da OPEP para reduzir o preço do barril a um número em torno, acima ou abaixo, dos 30 dólares. Há que ter em conta que o Iraque não participa dos compromissos da OPEP para reajustar os preços segundo a evolução do mercado. Angola Neste momento o preço está estabilizado em 61 dólares — chegou aos 74 durante a guerra de Israel contra o Líbano no Verão de 2006 — após a decisão da OPEP, por iniciativa da Venezuela, de cortar a produção para impedir que os preços continuassem a baixar. A isto há que acrescentar a recente entrada de Angola na OPEP, verificada na reunião celebrada a 14 de Dezembro na Nigéria. Aparentemente este facto nada significa. Excepto para os EUA, que vê aumentar a sua dependência imediata no cartel petrolífero. The Financial Times reflectiu isto com perfeição: "com a entrada de Angola na OPEP os EUA aumentaram seu nível de dependência até o nível que tinham há 15 anos" [3] Segundo este jornal, a entrada de Angola implica que a OPEP passa a controlar 54% do total das importações de petróleo dos países industrializados, ainda que no momento essa entrada não se vá reflectir num incremento do preço. Como se sabe, o dólar é a moeda de transacção do petróleo. Até agora. Em 18 de Dezembro último o Irão anunciou sua decisão formal de adoptar o euro como moeda oficial de câmbio, o que implica que suas transacções financeiras internacionais serão realizadas a partir de agora em euros. O Irão vinha anunciado ao longo de todo o anos de 2006 a sua intenção de por em andamento uma bolsa petroleira em euros [4] , mas o passo dado vai mais além. O efeito desta medida não é imediato. De facto, Gholanhossein Nozari, director da Companhia Nacional de Petróleo Iraniana, considera que o Irão receberá em euros 57% das suas exportações de petróleo. Como diria Chávez, "por enquanto". Como interpretar a decisão iraniana? O país persa justifica-se dizendo que a mudança de divisa significa que os países produtores perdem menos dinheiro. O barril está nos 61 dólares, como se indicava mais acima, e já esteve nos 74. Mas se o preço tivesse sido reflectido em euros a flutuação teria sido menor, de 48 a 58. "O dólar é fraco e o euro forte", dizem os iranianos, pelo que há que começar a comerciar numa moeda forte como antes se fez com o dólar após o abandono do padrão ouro, já há 40 anos atrás. E justificam-se dizendo que a Rússia já tem a metade das seus reservas económicas em euros e yens e que os Emirados Árabes Unidos haviam anunciado que iam converter em euros 8% do total das suas reservas monetárias, algo que se efectivou em 27 de Dezembro último [5] . Além disso, acrescentam que já desde meados de Novembro os EUA tem pressionado os bancos para que congelassem as contas iranianas devido aos seu suposto "apoio ao terrorismo" (com mençaõ expressa ao Hesbollah e ao Hamas) e que, em consequência desta pressão, os europeus estão cada vez mais renitentes em tramitar as vendas iranianas em dólares ou estender linhas de crédito nesta moeda. Há pelo menos três bancos que desde então retêm os activos iranianos: o Credit Suisse, o Credit Lyonnais e o HSCB. A meta de câmbio 1 por 1,50 Mas está claro que também é uma medida política. Esta iniciativa de um dos principais países produtores da OPEP significa um desafio sem precedentes à economia estadunidense uma vez que o comércio de petróleo é o que sustenta o dólar. Não é a primeira vez que ocorre, pois uma medida semelhante já fora posta em prática por Saddam Hussein enquanto governante do Iraque, antes da invasão. Mas nessa altura a exportação de petróleo estava submetida a um regime de sanções que, apesar de burlado em certas ocasiões, era bastante eficaz e o preço estava nos 30 dólares por barril. Uma das primeiras medidas impostas pelos ocupantes aos colaboracionistas foi o retorno ao padrão dólar no comércio petrolífero, que actualmente se mantém. A adopção do euro como moeda oficial de um país produtor de petróleo com a relevância do Irão, com preços acima dos 60 dólares, constitui uma enorme ameaça estratégica para a economia dos EUA porque significa o princípio do fim. Os economistas especializados consideram que o colapso do dólar chegará quando a taxa de câmbio em relação ao euro chegar aos 1,50, ainda que haja quem estabeleça os 1,70. Neste momento um euro equivale a 1,32 dólar. Vinte cêntimos. Isso é o que separa os EUA do declínio económico e o fim da sua hegemonia como superpotência. Por isso é importante a pressa para impor sanções ao Irão, ameaçar com um prazo de 60 dias para aumentar essas sanções se este país não renunciar ao seu programa nuclear e enquadrar tudo isso dentro do Capítulo VII da Carta da ONU, o qual autoriza o uso da força. O défice comercial dos EUA e o buraco sem fundo do Iraque obrigam a administração Bush a reagir com força frente a qualquer sugestão, não ainda constatação, de que os mercados internacionais possam deixar de utilizar o dólar. A única solução seria cortar as despesas sociais, aumentar impostos ou ambos. Num ano eleitoral como 2007 nenhuma destas medidas é popular. Em política internacional nada acontece por acaso. O Irão esteve a atrasar esta decisão o quanto pôde. Quando teve conhecimento da resolução da ONU é que deu o passo. Uma resolução que foi precedida por manobras militares dos EUA, Grã Bretanha e alguns países árabes do Golfo, por reuniões dos membros da administração Bush com oito países da zona – Egipto, Jordânia, Bahrein, Kuwait, Qatar, Oman, Arábia Sadita e Emirados Árabes Unidos – para sondar as possibilidade de criar um "baluarte sunita" frente ao Irão [6] , pelo envio à zona de uma parte da frota de guerra dos EUA, e pela declaração de Blair de que o Irão é a principal ameaça à paz e à estabilidade no Médio Oriente. Parece que o cerco se estreita e que a guerra é inevitável. Mas será assim? São muitos os interesses económicos em jogo e uma guerra contra o Irão não ficaria circunscrita unicamente ao território deste país. Vejamos alguns cenários possíveis. No âmbito económico, a China, a Rússia e a Índia tem interesses muito suculentos no Irão. Os chineses assinaram um acordo a 25 anos para importar gás natural, os russos apoiam o programa nuclear e conseguiram que a instalação de Busher não fosse mencionada na resolução da ONU, os indianos também firmaram contratos de fornecimento de gás e para a construção de um oleoduto conjunto Irão-Paquistão-Índia. A isto há que acrescentar em Agosto de 2006 a Organização de Cooperação de Shangai admitiu o Irão como membro na qualidade de observador. A referência iraquiana está muito presente para estes países. O governo de Saddam Hussein fimou acordos comerciais com eles e outros europeus, como a França, que não foram respeitados pela potências ocupantes após a invasão de 2003 e temem que ocorra algo semelhante no caso do Irão. No âmbito militar, as instalações de petróleo e gás dos países do Golfo e da Arábia Saudita são extremamente vulneráveis a um ataque de represália iraniano se este país for atacado, o que provocaria o pânico nos mercados financeiros elevando o barril para valores próximos dos 100 dólares. Não se pode perder de vista, além disso, que nestes países a porcentagem de população xiita não é nada desprezível: no Bahrein é de 80% (apesar de os sunitas controlarem o poder); no Kuwait é de 30%; o Dubai – que está englobado nos Emirados Árabes Unidos – é um centro de influência iraniana, onde se fazem negócios e vivem 200 mil iranianos. A Arábia Saudita tem uma minoria xiita precisamente na província onde estão as principais reservas de petróleo. O que resta então? Ou uma acção unilateral de Israel — e aqui há que recolher o que tem sido publicado pela imprensa israelense acerca da "falta de energia política de Bush para atacar o Irão, e um ataque americano ao Irão é essencial para a nossa existência" [7] e a necessidade de impulsionar o lobby sionista nos EUA, especialmente dentro do Partido Democrata para que apoio em público uma acção militar contra o Irão, ainda que termine por dizer que "se não actuam os americanos devemos faze-lo nós" — ou em alternativa a desestabilização interna, para o que já se está a actuar em duas frentes: a ocidental, com os EUA e a Grã-Bretanha à cabeça, e a árabe, com os sauditas no papel principal. Aqui os israelenses são muito claro: "devemos cooperar clandestinamente com a Arábia Saudita de modo a que persuada os EUA a atacar o Irão" [8] . Os EUA já estão a actuar nesta segunda opção. Instalaram no Dubai sua principal estação de espionagem [9] e pretendem influir nos residentes iranianos ali para que promovam uma mudança de regime. Ao facto já conhecido de que o regime Bush incentiva a revolta no Baluquistão, Azerbaijão e Cuzestão [10] acrescenta-se o contacto estabelecido com os curdos iranianos, tal como revelou Seymour Hersh [11] . Mas o factor mais importante é o enfrentamento sectário, sunitas contra xiitas. Em 12 de Dezembro último The New York Times informou que a Arábia Saudita havia feito chegar à administração Bush um documento com três condições: que não se retirassem as tropas do Iraque antes de 2008, que não se iniciasse nenhuma negociação com o Irão e que se reassumissem "de imediato" as negociações de paz entre Israel e a Autoridade Palestina para se contrapor à crescente influência do Irão no Hamás, cujo primeiro-ministro ia viajar nesses dias a Teerão em busca de apoio político e económico. As três condições estão a cumprir-se ao pé da letra. O factor chinês A economia dos EUA é cada vez mais vulnerável. Se a iniciativa do Irão se consolidar será um golpe brutal, mas a China é que tem a palavra final. Ainda que não seja o momento de analisar isto, a China vende uma grande quantidade de produtos aos EUA, processo no qual acumulam dólares que a seguir emprestam aos próprios EUA em troca de Títulos do Tesouro e fazem com que os EUA se convertam, cada vez mais, no principal devedor da China. No momento em que a China fechar a torneira, a crise financeira será total. Uma acção militar dos EUA contra o Irão seria o sinal de que esse momento teria chegado.
Notas (1) Alberto Cruz, "Muqtada al Sader, el verdadero problema de EEUU en Iraq" http://www.rebelion.org/noticia.php?id=41022 (2) Resolución 1737 del 27 de diciembre de 2006. (3) The Financial Times, 2 de Janeiro de 2007. (4) Alberto Cruz, "Irán, la crisis nuclear y la bolsa petrolera" http://www.igadi.org/index.html (5) Bloomberg, 27 de Dezembro de 2006. (6) The Financial Times, 29 de Novembro de 2006. (7) Yediot Aharonot, 30 de Dezembro de 2006. (8) Ibid. (9) Times, 16 de Novembro de 2006. (10) Alberto Cruz, "Irán, la crisis nuclear y la bolsa petrolera" http://www.igadi.org/index.html (11) New Yorker, 21 de Novembro de 2006.
Alberto Cruz
http://resistir.info/

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