Cerca de 60 frades reuniram-se quinta-feira (25) para ver o filme Baptismo de Sangue, ainda inédito, que mostra a actuação dos dominicanos contra a ditadura pós-1964. Entre os presentes, religiosos que foram perseguidos e torturados pelo regime.
«Vocês vão ver que é um filme muito forte», já alertava frei Betto à plateia antes de a projecção começar. «E mais forte foi a realidade», completa.
Anualmente, os dominicanos do Brasil – representantes da Ordem dos Pregadores, fundada há oito séculos por São Domingos de Gusmão – reúnem-se para uma semana de reflexões sobre os rumos da actuação religiosa posta em prática pelos seus membros. Este ano, contudo, os debates sacros foram momentaneamente interrompidos para a revisão de um passado tão mundano quanto doloroso. No último dia 25, cerca de 60 membros da Ordem foram até ao cinema para assistir a uma exibição fechada de Baptismo de Sangue, filme ainda inédito no país. A longa-metragem – uma ficção baseada no livro homónimo de frei Betto – retrata a actuação dos dominicanos no combate ao regime militar instaurado após o golpe de 1964.
Durante os primeiros anos da ditadura, jovens frades seguidores de São Domingos desempenharam papel importante na resistência às forças armadas. Deram cobertura à Acção Libertadora Nacional (ALN), grupo guerrilheiro comandado por Carlos Marighella – ex-deputado federal e um dos principais opositores do governo. Os frades defendiam que viver o evangelho era integrar-se na comunidade através de práticas sociais concretas, que defendessem os injustiçados. Pagaram alto preço: perseguição, cadeia, tortura e exílio.
Em 1969, os freis Ivo e Fernando foram os primeiros dominicanos a cair. Capturados pela polícia e submetidos a fortes torturas, acabaram forçados a servir de isca e marcar um encontro com Marighella. A emboscada revelou se um sucesso: após troca de tiros, morreu o líder da ALN.
Frei Tito, então com 24 anos, foi o próximo dominicano colocado atrás das grades, capturado no próprio convento dos dominicanos. Cinco dias depois, frei Betto – hoje conselheiro pessoal do presidente Lula – também foi preso. Estava escondido no Rio Grande do Sul, ajudando opositores do governo a fugirem do país pela fronteira.
Dentre todos esses religiosos, é a história de frei Tito que o filme aborda com mais profundidade. Durante 42 dias, ele foi submetido ao pau-de-arara, a choques eléctricos nos ouvidos e genitais, a socos, pauladas, palmatórias e queimaduras de cigarro, entre outras perversidades. Em certa ocasião, foi lhe ordenado que abrisse a boca para receber a “hóstia sagrada” (dois eléctrodos com corrente eléctrica). Teve a boca queimada a ponto de não conseguir falar. Tentou suicídio nessa época, cortando-se com uma gilete. Os militares, no entanto, mantiveram no vivo e sob tortura psicológica.
Em Dezembro de 1970, Tito foi incluído na lista de presos políticos trocados por um embaixador suíço sequestrado. Partiu para o exílio, passando pelo Chile e pela Itália antes de se estabelecer definitivamente na França. Do Brasil, contudo, Tito não saiu sozinho. Levou consigo a lembrança obsessiva do delegado Sérgio Paranhos Fleury, seu principal algoz nos porões da ditadura. Alucinava o espectro do seu torturador e sentia a sua presença entre as árvores do convento de La Tourette – onde passou a viver. O delegado dava lhe ordens: não entrar, não deitar, não comer... Tito oscilava entre resistir e obedecer. Em 1974, atormentado por essa realidade, o frade enforcou-se numa árvore nos arredores do convento.
HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA
Entre os dominicanos presentes na exibição do filme, muitos participaram activamente dessa história. Um deles é Xavier Passat, hoje coordenador da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Xavier nasceu em França e viveu em La Tourette nos anos 1970. Acompanhou de perto o calvário de frei Tito – tendo saído ele próprio, em algumas ocasiões, à sua procura após as constantes fugas do convento.
Para Xavier, ao contrário do que muitos pensam, o suicídio de Tito não pode ser considerado um acto de entrega. Na verdade, foi uma tentativa de libertar-se do jugo de Fleury, que continuava a torturá-lo de dentro da sua mente. Um último acto de resistência contra a opressão da ditadura, encarnada na figura daquele sinistro delegado. «Melhor morrer do que perder a vida», havia escrito Tito um pouco antes de falecer.
Frei Oswaldo, hoje director da Escola Dominicana de Teologia em São Paulo, foi outro a rever o próprio passado em Baptismo de Sangue. Era ele o dominicano que originalmente fazia a ponte entre Marighella e os frades. Mas como estava muito exposto, os seus superiores decidiram enviá-lo para a Europa pouco antes das prisões começarem. Acolheu Tito quando este veio para França, acompanhou o seu calvário de perto. Só retornou ao Brasil há oito anos.
«Em maior ou menor grau, esse período foi traumático para os dominicanos envolvidos e para a Ordem no seu conjunto», explica Oswaldo. «Todos os grandes projectos que nós tínhamos foram talhados, impedidos de continuar». Entre eles, o frade destaca o Instituto de Teologia Católica na Universidade de Brasília (UnB) – iniciativa comandada por frei Mateus que foi abortada – e o extinto jornal de esquerda Brasil Urgente, também capitaneado por dominicanos.
Oswaldo afirma que a repressão levou a Ordem dos Dominicanos a não acolher nenhum novo membro no país durante quase quinze anos. «Como iríamos aceitar jovens que, pelo simples facto de ingressarem, já eram considerados suspeitos?», indaga.
Mas já diziam os militares: “apesar de poucos, fazem muito barulho”. Estão hoje espalhados pelos quatro campos do território, envolvidos com diversas organizações religiosas e humanitárias. Combate ao trabalho escravo, defesa dos direitos indígenas, das mulheres e dos presidiários são apenas algumas das linhas de actuação adoptadas pelos seus membros.
Segundo Oswaldo, há hoje um clima de retomada de projectos dominicanos em desenvolvimento no Brasil. A lembrança daquele passado, no entanto, jamais se apagará da sua memória. «É curioso. Há tempos na vida, às vezes três, quatro ou cinco anos, em que a intensidade é tal que parece termos vivido um século», reflecte o frade.
A estreia de Baptismo de Sangue nos cinemas nacionais [do Brasil] está prevista para Abril deste ano.
FICHA TÉCNICA
Título Original: Baptismo de Sangue
Género: Drama
Tempo de Duração: 110 minutos
Ano de Lançamento (Brasil/França): 2007
Estúdio: Quimera Filmes/V&M do Brasil
Distribuição: Downtown Filmes
Direcção: Helvécio Ratton
Roteiro: Dani Patarra e Helvécio Ratton, baseado no livro Baptismo de Sangue, de Frei Betto
Produção: Helvécio Ratton
Música: Marco Antônio Guimarães
Fotografia: Lauro Escorel
Direção de Arte: Adrian Cooper
Figurino: Marjorie Gueller e Joana Porto
Edição: Mair Tavares
ELENCO
Caio Blat (Frei Tito)
Daniel de Oliveira (Frei Betto)
Cássio Gabus Mendes (Delegado Fleury)
Ângelo Antônio (Frei Oswaldo)
Léo Quintão (Frei Fernando)
Odilon Esteves (Frei Ivo)
Marcélia Cartaxo (Nildes)
Marku Ribas (Carlos Marighella)
Murilo Grossi (Policial Raul Careca)
Renato Parara (Policial Pudim)
Jorge Emil (Prior dos dominicanos)
André Campos
Carta Maior
http://www.infoalternativa.org/cultura/cinema013.htm
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