Um capitalismo de rosto humano? "Pura ilusão". Altermundialismo moderado? "Uma ingenuidade". Europa? "Ainda não existe". Longe da retórica cautelosa do politicamente correcto, incansável dinamizador de alternativas políticas e económicas ao dogma neoliberal dominante, o economista egípcio Samir Amin fez da linguagem franca, do rigor analítico e da paixão militante, os instrumentos de sua inveterada batalha para se considerar antes o homem e as suas necessidades do que o lucro. Partidário fervoroso da necessidade de acompanhar as reivindicações de justiça social, e de exercer a critica das desigualdades intrínsecas à globalização capitalista, e de uma radicalização da luta política capaz de unificar as diferentes energias dos movimentos altermundialistas, Samir Amin é um autor extremamente frutífero. Os seus textos são lidos e discutidos por todos os que pretendem transformar a heterogeneidade de "movimentos" num actor político colectivo, e pelos que temem as derivas politizadas dos mesmos.
P. De acordo com uma certa "vulgata" liberal e conservadora, não só o mercado seria o único instrumento de regulação da sociedade, como a própria promoção e universalização dos direitos dependeria dos processos de globalização económica. Como se poderia articular a relação entre a globalização, na sua forma actual, e direitos fundamentais?
R. O discurso da ideologia dominante, que estabelece uma absoluta igualdade entre democracia e mercado, e baseando-se nesta premissa, sustenta que não há democracia sem mercado – e que o próprio mercado crias as condições para o aprofundamento da democracia –, é um discurso vulgar, puramente propagandístico, que não tem nada a ver com a realidade histórica nem com a sua análise científica. Pelo contrario, há uma contradição absolutamente fundamental nessa retórica dominante que, reduzindo a democracia à sua dimensão meramente política, e limitando-a à democracia representativa, a dissocia da questão social que se supõe ser regulável pelo funcionamento do mercado, ou melhor dizendo, de um mercado imaginário. A teoria do capitalismo imaginário dos economistas convencionais, para quem o mercado generalizado tenderia para o equilíbrio, supõe que a sociedade é simplesmente composta pelo conjunto dos indivíduos que a compõem, sem ter em conta as formas da organização social, a pertença à família, à classe social, à nacionalidade: esquecendo, pois, que para Marx era uma verdade natural – a saber: que os valores económicos estão "incrustados" na realidade social.
P. Se existe uma contradição fundamental entre mercado global e direitos fundamentais, com que instrumentos poderia ser construída uma via que permitisse superar esta contradição?
R. Não tenho receitas, mas sugiro a abordagem do tema com a perspectiva de lançar estratégias de luta comum em torno de alguns pontos fundamentais, o primeiro dos quais assenta na ideia de que não pode haver democracia autêntica sem progresso social. É um objectivo que vai exactamente na direcção oposta ao discurso dominante, o qual, como se viu, dissocia ambos os termos, e anda afastado do pensamento dos bem-pensantes social-liberais e social-demócratas, que supõem que os efeitos negativos do capitalismo podem ser contidos por meio de uma regulação social parcial. Talvez fosse preferível esquecer o termo "democracia" e falar bastante mais de "democratização", entendida como um processo sem fim; e recordar que a necessidade de associar a democracia ao progresso social é um objectivo que diz respeito a todos os países do mundo. Também nos países chamados democráticos a democracia está em crise: precisamente porque, dissociada da questão social, fica reduzida à democracia representativa, e a solução dos problemas económicos e sociais é transferida para o mercado. É uma via muito perigosa: na Itália, como noutros lugares, você votou livremente (ou quase, dado que o voto está muito condicionado pelos media), e no entanto, muita gente se questiona: porquê votar, se o parlamento afirma que algumas decisões são impostas pelo mercado e pela globalização? Deste modo, a democracia vê-se deslegitimada, e corre-se o risco de se derivar para formas de neofascismo suave.
P. De acordo com a sua análise, sempre existiram o capitalismo e a globalização, mas depois da II Guerra Mundial teríamos iniciado uma nova fase na qual entra a estratégia dos EUA de estender a doutrina Monroe ao planeta inteiro. Quais são, em sua opinião, as características desta nova fase da globalização, e quais os objectivos prioritários da estratégia americana?
R. Esta nova fase assenta numa transformação da natureza do imperialismo (falo de imperialismo, e não de "império" como Toni Negri): se até final de II Guerra Mundial o imperialismo conjugava-se no plural, e as potências imperialistas estavam em permanente conflito entre si, então assistimos a uma transformação estrutural que deu à luz o imperialismo colectivo, a que chamo da "tríade": simplificando um pouco, EUA, Europa e Japão, quer dizer, o grupo dos segmentos dominantes do capital que têm interesses comuns na gestão do sistema mundial. Este sistema, que representa a forma do novo imperialismo frente a 85% da população mundial, "requer" a guerra. Este é precisamente o ponto em que se manifesta o projecto do establishment americano, e que reflecte a orientação da maioria da classe dominante norte-americana, disposta a controlar militarmente o planeta. Os EUA optaram por desencadear o primeiro ataque ao Médio Oriente por uma série de razões, mas por duas em particular: pelo petróleo e pelo controle militar das principais regiões petrolíferas do planeta, para exercer uma liderança incontestada, a fim de se constituir numa ameaça permanente para todos os potenciais concorrentes económicos e políticos. Mas também porque têm na região, aquilo a que eu defino de o seu porta aviões fixo: o Estado de Israel através do qual garantem um instrumento de pressão permanente, que é utilizado na ocupação da Palestina e, como se viu, é utilizado também na agressão ao Líbano.
P. Você sustenta que o militarismo agressivo do EUA não é tanto um sinónimo de força, mas bem mais, um meio de equilibrar a sua vulnerabilidade económica. Poderia explicar melhor o que quer dizer com isto?
R. De acordo com a teoria dominante, de que infelizmente é também vítima grande parte da opinião pública europeia, a supremacia militar dos EUA representaria a ponta do iceberg de uma superioridade em fase terminal baseada na eficácia económica e na hegemonia cultural. Mas a realidade é que os EUA estão numa posição de vulnerabilidade extrema, que se manifesta no enorme défice comercial com o estrangeiro, e dessa fragilidade deriva a opção estratégica da classe dirigente dos EUA que desemboca no uso da violência militar. Existem documentos do Pentágono que demonstram que os EUA consideraram possível uma guerra nuclear em que as vítimas pudessem chegar aos 600 milhões: como escreveu Daniel Ellsberg, cerca de 100 holocaustos.
P. Frente ao protagonismo dos EUA, a Europa parece ainda incapaz de articular um projecto político realmente alternativo. Que deveria a Europa fazer?
R. Por enquanto, e apesar de tantos europeus terem esperança nisso, não acredito que a Europa esteja em condições de chegar a ser um elemento alternativo à hegemonia do EUA. Teria que sair da NATO, romper a aliança militar com os EUA e emancipar-se do liberalismo. No entanto, actualmente, as forças políticas e sociais europeias parecem interessadas em tudo menos num projecto desse tipo, até ao ponto em que – como fez um dia o velho PS italiano – reforçaram melhor o atlantismo e o alinhamento com a NATO e o liberal-socialismo. Hoje não se vislumbra outra Europa. E neste sentido, a Europa não existe: o projecto europeu é simplesmente a face europeia do projecto norte-americano.
P. Porém, existe margem para construir "outra Europa", e foi você mesmo que falou do conflito de culturas políticas que opõe a Europa aos EUA.
R. As culturas políticas da Europa foram formadas no curso dos últimos séculos em torno da polarização entre a direito e a esquerda: quem estava a favor do Iluminismo, da revolução francesa, do movimento operário, da revolução russa, situava-se à esquerda; quem estava contra isso, situava-se à direita. A história da Europa é a história de culturas políticas do "não-consenso", que estendem o conflito para além da versão redutora da luta de classes. A cultura dos EUA tem uma outra história, e que se formou como uma cultura do consenso: consenso sobre o genocídio dos índios, sobre a escravatura, sobre o racismo. E sobre o capitalismo, que nos EUA não foi posto em questão, e se houver luta de classes, não haverá politização dessa luta. Na realidade, as sucessivas migrações, graças às quais se edificou o povo americano, substituíram a formação de uma consciência política por uma consciência comunitária. Assistimos hoje a uma intenção de "americanizar" a Europa, e de substituir a cultura do conflito por uma cultura do consenso: pretende-se que não haja já direita nem esquerda, que não hajam já cidadãos, mas apenas consumidores mais ou menos ricos.
P. O Fórum Social Mundial, de acordo com uma reconstrução superficial que alcançou algum eco, teria nascido no rastro das manifestações altermundialistas de Seattle. Porém, a história do Fórum tem uma orientação muito menos "ocidental" do que normalmente se pensa. Pode comentar?
R. O FórumSocial Mundial é tanto uma criação ocidental que o primeiro encontro deu-se no Brasil; depois – e não por casualidade – os encontros seguintes deram-se em Bombaim, Bamako, Caracas e Carachi, e o Foro, que começa amanhã, escolheu como sede Nairobi. Convém não esquecer, para além disso, que em Seattle a Organização Mundial do Comércio foi paralisada, não pelos manifestantes norte-americanos, mas pelo voto da maioria dos países em desenvolvimento. Um dos primeiros encontros que deram vida ao FSM, foi o chamado "anti-Davos em Davos", uma manifestação – pequena, mas de grande valor simbólico – organizada em 1999 pelo Fó:rum Mundial das Alternativas, graças ao qual, os representantes das vítimas das políticas do capitalismo liberal puderam discutir a agenda oficial de Davos. Éramos poucos, mas representávamos grandes forças sociais: sindicatos hindus, coreanos, brasileiros, organizações de mulheres e camponeses, associações da África Ocidental, defensores dos direitos sociais, movimentos brasileiros. Dali nasceu a ideia de programar um novo encontro a uma escala maior.
Samir Amin
entrevistado por Giuliano Battiston
http://resistir.info/
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