Gravidez & Aborto
Histórias da Santa Madre
Os eleitores vão ser chamados às urnas para referendar a lei que se propõe despenalizar a IVG até dez semanas. Não se trata de dizer Sim ao aborto, mas dizer Sim à mudança parcial de uma lei, sujeita a referendo. A lei vigente considera um crime a prática de IVG, contemplando algumas excepções que não cobrem os motivos que levam dezenas de mulheres a recorrerem anualmente à decisão da IVG. A lei em vigor redunda numa disposição de terrorismo penal, como se já não bastasse o desconforto das mulheres, atiradas pela lei actual para expedientes de acrescido risco. Os adeptos do não à alteração da lei fazem gala em preservar um stock de adamastores para intimidar a incultura nativa.
A questão da penalização do aborto só foi introduzida no nosso Direito em 1852, embora seja matéria assente o seu recurso desde épocas imemoriais. A tolerância e a punição nunca foram contínuas nem universais, como, de resto, na história de todos os costumes. O que ontem foi válido ou inválido passa ao diametralmente contrário segundo as bandeiras que o sistema de interesses convida a desfraldar. Na corte de Filipa de Lencastre (1387-1415), da Ínclita Geração, uma das aias mais aconchegadas era filha de Martim Afonso da Charneca, arcebispo de Braga. Hoje, Cavaco Silva, no Palácio de Belém, acolheria, entre a nobreza serviçal, hipotéticas filhas bastardas de membros do actual episcopado?
Mudam-se os tempos e mudam-se os templos. Mudam-se as vontades e mudam-se as verdades. A vida está repleta de ilustrações de contraditório. Seriam inesgotáveis as reposições de assuntos que foram sagrados e se transformaram em profanos e que foram profanos e se transformaram em sagrados. Um dos tabus: no século XVII, ainda a Igreja proibia a dissecação de cadáveres. Perdeu mais esse conflito com a Ciência. Outro tabu: na ditadura fascista, o cardeal Cerejeira excomungou o progressista Felicidade Alves. Há anos, o cardeal Policarpo casou o ex-padre no Mosteiro dos Jerónimos. Mais outro tabu: a seguir ao 25 de Abril, o Estado legalizou o divórcio e a Igreja assinou a revisão da Concordata.
Hoje, a Igreja Católica volta a orquestrar os coros genitais. O que não surpreende: por regra, as Igrejas estão desvinculadas das grandes causas da Humanidade, agarrando-se a certos refrões susceptíveis de Espírito de Cruzada. E as problemáticas do sexo (caso do amor, da reprodução, do preservativo ou da homossexualidade) fazem saltar bispos, clérigos, irmãzinhas e brigadas de beatos na reserva. Nada causa mais alarme, febre e prazer religioso do que um debate sobre o Coito ou um referendo sobre a sua Interrupção. Se a Igreja se preocupasse assim com o Desemprego e a Fome, o Analfabetismo e a Guerra, outra seria a Política, outra seria a Economia, outro seria o respeito pelo Direito e pela Paz. Mas a Igreja quase só reage a estímulos destas partes sagradas.
Haja esperança. A Igreja Católica perderá, mais tarde ou mais cedo, a sua guerra dos embriões. A Sociedade acabará por regular este problema de saúde física e de saúde cultural. E os arcebispos, um dia, não muito longe, quem sabe, até voltarão a ter rebentos com direito a ficha no Registo Civil e a valorizar a massa crítica da Universidade Católica.
César Príncipe
http://resistir.info/
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