sábado, fevereiro 17, 2007

O artista enquanto trabalhador

O mundo das artes, que historicamente construiu a sua autonomia através da oposição ao mercado e às suas lógicas, aparece agora como o percursor das formas mais avançadas de flexibilidade e de um mercado de trabalho ultra-individualizado, sem protecção e sem organizações de classe. Por isso mesmo, a Petição que corre pelos direitos sociais dos intermitentes, e que em breve será entregue no Parlamento, é um bom pretexto para lançar o debate sobre a protecção social numa época de flexibilidade.

A dificuldade de entendermos os artistas como trabalhadores deriva, desde logo, da ideologia romântica da criação como algo “fora do mundo” e, sobretudo, fora do mercado. Mas resulta também da permanência da oposição, desenvolvida por Marx, entre trabalho alienado e trabalho livre: o trabalho artístico seria neste caso o modelo do trabalho não alienado, através do qual o sujeito se realiza na plenitude da sua liberdade, exprimindo a sua essência humana. Por ser um trabalho expressivo e que implica o indivíduo em toda a sua autonomia, o trabalho artístico parece ser a antítese da exploração do trabalho assalariado. E no entanto, cada vez mais, ele é simultaneamente um trabalho expressivo e assalariado, com a agravante de não usufruir das protecções sociais construídas para o comum dos trabalhadores.

As actividades de criação artística são hoje a expressão mais avançada dos novos modos de produção e das novas relações de emprego do capitalismo flexível [1]. Analisando a condição do artista enquanto trabalhador, podemos ler muitas das tendências mais importantes do “novo espírito do capitalismo”: ancorado nos valores da inovação, do conhecimento, da motivação, o artista age num mercado hiperflexível de trabalho intermitente, de freelancing, de relações de emprego efémeras, de práticas de subcontratação. O trabalho em free-lance e o emprego intermitente permitem contratar e despedir consoante as necessidades e colocam os artistas num estatuto incompatível com as disposições do subsídio de desemprego próprios dos assalariados.

Os paradoxos do trabalho artístico permitem-nos adivinhar o que se espera do trabalho precário qualificado: os artistas reconhecem e reivindicam a autonomia e a flexibilidade funcional (e não numérica ou contratual), a forte implicação no trabalho, a combinação de remunerações materiais/salariais e simbólicas/não monetárias. Mas a flexibilidade impõe-lhes uma situação de permanente alternância entre períodos de trabalho, de desemprego não indemnizado, de procura de emprego, de multi-actividade dentro ou fora da esfera artística – e tudo isto, em Portugal, com a obrigação de contribuição mensal obrigatória para a Segurança Social (mesmo em períodos em que não têm rendimento) e sem a garantia de subsídios de desemprego e de doença.

A diferença para a maioria dos trabalhos precários é, todavia, importante. Como diz a petição dos profissionais do espectáculo e do audiovisual, «a instabilidade profissional não é apenas uma característica da nossa profissão mas uma exigência do próprio trabalho artístico». É que num trabalho qualificado e em que a instabilidade lhe é constitutiva, a flexibilidade é vivida de maneira substancialmente diferente da maioria dos trabalhos precários desqualificados, alienantes e em que a incerteza não é uma característica do trabalho em si, mas um instrumento do patrão para manter o trabalhador submetido e mal remunerado através de contratos a prazo para funções permanentes.

Neste sentido, é imprescindível perceber que a especificidade do trabalho artístico exige uma protecção social que responda à sua natureza intermitente e descontínua e que essa luta é um combate fundamental pelos direitos sociais. Precisamos, por outro lado, de estar atentos para não permitir que a exaltação destas características do trabalho artístico se transforme num discurso ideológico que, transposto para outros trabalhos, encubra ou legitime novas formas de exploração, adaptadas às exigências de precarizar, aumentar a produtividade e retirar o Estado da responsabilidade de criar uma protecção social que responda aos riscos do desemprego, do subemprego e do trabalho temporário. De facto, em profissões cuja natureza é de continuidade e estabilidade, a precariedade é uma forma de reduzir direitos e, por isso mesmo, as propostas sobre a “flexisegurança” devem merecer grande desconfiança, ainda mais vindas de quem tem apostado na destruição do Estado Social e na desregulamentação (como Cavaco ou Sócrates). O alerta de Florival Lança (CGTP) no Esquerda [2] é da maior importância: a flexisegurança está a ser usada para defender que há uma «inevitabilidade em relação à flexibilidade, mas que não há dinheiro para pagar a segurança».

Assim, a análise do trabalho artístico permite-nos perceber os perigos e as seduções do trabalho com grande autonomia, responsabilidade, criatividade, mas em que os riscos de um mercado flexível são assumidos pelos próprios trabalhadores. Se a flexibilidade tem sido usada como uma forma de gerir as incertezas do mercado, pondo os trabalhadores a pagar directamente os custos dessas incertezas, reivindicar formas de protecção social para o trabalho intermitente é uma luta da maior importância.

Por isso mesmo, a Petição que será apresentada pelos profissionais do espectáculo e do audiovisual na Assembleia da República merece um apoio combativo e a discussão que ela gerar merece toda a atenção da esquerda.

[1] O livro de Pierre-Michel Menger, Retrato do Artista enquanto trabalhador. Metamorfoses do Capitalismo (Roma Editora, 2005), constitui uma análise útil para pensarmos este problema e a natureza do trabalho artístico nas sociedades de hoje.
[2] Nuno Ramos de Almeida, «É preciso somar forças com outros movimentos sociais». Entrevista a Florival Lança. Esquerda, 31/01/2007.
José Soeiro
Esquerda
http://www.infoalternativa.org/cultura/cultura040.htm

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