Num momento em que Pequim anuncia uma revisão em alta do seu crescimento, de tal forma que se posiciona como quarta potência mundial, os dirigentes japoneses multiplicam declarações alarmistas sobre o contínuo aumento das despesas militares chinesas. Raramente terão sido tão más as relações entre os dois países, apesar das trocas económicas entre ambos registarem uma dimensão inigualável. Na China, os dados agora revistos mostram uma recuperação do consumo – sempre desigual – e uma subida do peso dos serviços.
Pequim. Entre o terceiro e o quarto periféricos, a nordeste. A unidade 798. Um belo conjunto de edifícios em tijolo vermelho, no estilo Bauhaus, onde se vêem galerias vanguardistas, restaurantes na moda e lojas chiques. Antes de ser um sítio em voga, esta antiga danwei (grande empresa estatal), concebida em 1957 por especialistas da Alemanha de Leste em nome da “solidariedade socialista” e cuja área abarca quase um quilómetro, empregava cerca de 20.000 operários na produção de armamento chinês. Era no tempo em que as grandes empresas tinham os seus próprios alojamentos, escolas, centro de saúde, um teatro... No tempo em que o complexo de Dashanzi, de que a unidade 798 faz parte, era visto como um modelo. Ou seja, há menos de quinze anos. Desde então, a “reforma económica” passou por aqui, varrendo a produção, os assalariados, as suas famílias.
As fábricas abandonadas iam-se tranquilamente enferrujando quando às tantas um punhado de artistas em ruptura com o sistema decidiu refugiar-se ali. Não sem dificuldades (complicações administrativas, controlos policiais, cortes de electricidade...). Os dirigentes comunistas acabaram por os tolerar e agora até apoiam esta comunidade de artistas, ameaçada... pelo mercado – porque o grupo Qi Xing, que entretanto adquiriu Dashanzi, pretende pôr toda a gente de lá para fora para construir um “parque tecnológico”, mais rentável. Vemos assim os censores do passado transformados em defensores da liberdade de criação artística; singular paradoxo das autoridades, que, por outro lado, tentam regularmente trancar a Internet e mandam prender qualquer sindicalista que se mostre um pouco reivindicativo. É certo que por uma questão de imagem mais vale terem artistas ligeiramente agitados do que trabalhadores francamente contestatários [1].
A trezentos quilómetros dali, muito perto de Chengde e do seu palácio imperial de Verão, a fábrica de aço de Cheng Gang (Chengde Iron and Steel Group Co.) não desapareceu na tormenta. Os assalariados que servem de cicerones, com prévia autorização do secretário do Partido Comunista da China (PCC), mostram-se muito orgulhosos dela; foi com o aço ali fabricado que se construiu a “Pérola Oriental”, torre de televisão símbolo da Xangai moderna, ou a gigantesca barragem do rio Yangzi. A unidade utiliza tecnologia italiana e está inteiramente automatizada. Afora alguns técnicos de controlo que se encontram nas plataformas, os assalariados ficam dentro de cabinas, agarrados a um computador. É uma fábrica ultramoderna. Basta porém andarmos umas centenas de metros para entrarmos de novo no século XIX, vendo-nos perante equipamentos enferrujados e às sacudidelas no meio duma poeira acinzentada. É impossível visitarmos este inferno – «não seria bom para a vossa saúde», garante o assalariado que nos guia –, mas vemos trabalhadores a manipular sem luvas materiais muito poluentes (ao que tudo indica, cales, manganésio ou enxofre...).
Nas suas duas versões, esta fábrica de aço resume a história industrial da China. Até 1986, os seus 20.500 assalariados viviam mais ou menos bem na pequena cidade de Cheng Gang, graças a esta empresa de que tudo dependia (alojamento, saúde, desporto, escola, aposentações). Com as reformas económicas e o aumento das necessidades nacionais de aço, as coisas começaram a piorar, passando o Estado a exigir mais resultados. Antes mesmo de modernizar a produção, a direcção despediu os assalariados com muitos anos de serviço – insuficientemente produtivos – e substituiu-os por jovens, mais rápidos e por vezes com mais qualificações. Depois foram importadas tecnologias ocidentais, a que os homens tiveram de adaptar-se. Deste modo, os efectivos reduziram-se a 17.000 pessoas e a média de idades passou a ser de 35 anos.
Num primeiro tempo, os despedidos ficam «fora do posto de trabalho» (xiagang zhigong), não são desempregados. Em dinheiro, a vantagem que obtêm é limitada; um dos nossos guias afirma dispor de 800 yuans por mês (80 euros) [2], quando antes auferia 2000, como assalariado. Mas a ligação contratual com a empresa mantém-se, o que significa protecção social... e reconhecimento. Privada de emprego aos 46 anos e agora uma jovem reformada de 50 anos, a senhora Jing Zheiying [3] continua a ter a impressão de fazer parte da danwei, ao mesmo tempo que “vai dando uma ajuda” em pequenas empresas que têm surgido na cidade. Graças a este sistema de “desenrasque”, a senhora Jing e o marido puderam comprar o apartamento onde vivem e acrescentar-lhe uma casa de banho novinha em folha. Nesse prédio, várias pessoas conseguiram realizar um sonho até aqui inimaginável: tornarem-se proprietárias da sua própria habitação.
Claro que nem todos os xiagang zhigong vivem com esse conforto. Mas graças à solidariedade familiar o sistema do “desenrasque” tem funcionado, em Cheng Gang e em todo o país. Actualmente, está em vias de extinção, porque nem os accionistas privados da fábrica de aço, ainda minoritários, nem os proprietários públicos querem assumir despesas sociais que oneram a rentabilidade. Além disso, a fábrica de aço não poderá furtar-se ao “plano de racionalização da siderurgia” anunciado por Pequim a 20 de Julho de 2005. A miséria pode pois tomar conta da cidade, da mesma forma que alastrou nalgumas regiões industriais no final da década de 1990.
Tie Xi Qu. Bairro de Shenyang, capital da província de Liaoning, na ex-Manchúria, a mais de uma hora de avião de Pequim. É o pulmão industrial desta cidade, com os seus altos-fornos, cimenteiras, indústrias que cospem enxofre e outros resíduos, o suor e a sujidade que se incrustam nos corpos, chuveiros surpreendentes num universo enegrecido, a alegria dos operários nos desafios de mah-jong, a sua resignação... Deste universo filmado por Wang Bing nos alvores do século XXI, de que resultou um magnífico documentário [4], nada ficou: fábricas, dédalos de casebres, operários. Este bairro outrora industrioso está agora impecavelmente traçado. De um lado, amplas avenidas bordejadas de fábricas de aspecto renovado que escaparam à limpeza ou inteiramente novas. Do outro lado, um alinhamento de stands onde se expõem veículos automóveis, quase todos estrangeiros. Em menos de cinco anos, um bairro inteiro foi varrido do mapa e nasceu um outro, povoado de ricos comerciantes e quadros superiores beneficiários da política chamada de “abertura”. Como explica Wang Bing, «queríamos criar um mundo, mas esse mundo acabou por explodir».
Di-lo à sua maneira um antigo técnico, de rosto marcado pela vida que passou numa fábrica de cabos eléctricos, encerrada desde há quatro ano: «Não ganhávamos muito, o trabalho era duro, mas tinham consideração por nós». Di-lo sem raiva, limitando-se a constatar. A industrialização desta região, que vinha da era dos Qing, no século XIX, e que criou o primeiro caminho-de-ferro chinês, não se reduzia unicamente à exploração dos trabalhadores, significava também um colectivo de trabalho, uma altivez operária. «Aquilo que nós fabricávamos era útil», faz questão de precisar este ex-técnico, «mas “eles” decidiram mandar vir os cabos de outro lado». “Eles” são simultaneamente os novos proprietários da empresa, que compraram e desmantelaram a fábrica e a respeito dos quais ninguém sabe nada, o governo «que nos abandonou», e as autoridades locais «que não fazem grande coisa»... Este desempregado exprime na perfeição aquilo que sentem os excluídos do milagre chinês, numerosos nesta região em plena reestruturação, uma «Lorena à décima potência», segundo a expressão do sociólogo francês Antoine Kernen [5].
As primeiras vítimas são os assalariados mais velhos, porque «eles fizeram toda a vida o mesmo trabalho, muitas vezes sem grandes qualificações», sublinha Wang Zheng, investigador da Academia das Ciências Sociais de Chenyang. «É-lhes difícil adaptarem-se. E alguns recusam o trabalho que lhes propõem, por o considerarem desqualificado». Convém dizer que os salários dos empregos públicos são de 300 yuans por mês, quando muitos desses trabalhadores auferiam na empresa, no mínimo, 1000 yuans mensais. E que empregos lhes propõem? Varredores das ruas, ajudantes de jardineiros, auxiliares da circulação rodoviária...
Terá o ex-técnico da fábrica de cabos de Tie Xi Qu recusado esse género de trabalho? É impossível sabê-lo. Em todo o caso, nessa manhã, como todas as manhãs, vimo-lo à esquina de uma rua, com uma dezena de outros homens e mulheres, sentados sobre os calcanhares, na sua maior parte de telemóvel à cinta, todos com um letreiro pendurado onde descreviam as respectivas competências: pedreiro, pintor, electricista, mulher a dias... Um mercado do emprego a céu aberto onde particulares e empresários vêm alugar, por uns quantos yuans, um trabalhador ao dia, à semana, quase nunca ao mês. Um trabalho “ilegal” que nem sempre dá ao trabalhador um tecto onde dormir, e isto numa cidade invadida pelas máquinas da construção civil.
Com efeito, desde o XVI Congresso do PCC, realizado em Outubro de 2003, a província e a sua capital foram classificadas “zona de desenvolvimento prioritário”. Jorram os dinheiros públicos, mas nenhuma assembleia pública fiscaliza a sua utilização. Shenyang transformou-se numa cidade em obras, onde os prédios, na maior das confusões, crescem como cogumelos, com fachadas douradas, tectos em forma de pagodes e outras «dragãozices», segundo a expressão dum arquitecto chinês indignado com tanto mau gosto... e tanta corrupção – o endémico mal graças ao qual se pode construir seja o que for e onde muito bem se entender. Até Mao Zedong, no meio da praça Zhongshan, foi mobilizado para a longa marcha da comercialização, apontando o braço, já não para um futuro radioso, mas para os painéis publicitários das grandes marcas estrangeiras que o cercam.
É verdade que foram construídas zonas especiais de desenvolvimento económico e tecnológico. Para atrair capitais estrangeiros, a cidade procurou mobilizar a sua diáspora [6], descobrindo então que tinha relações históricas com Hong Kong, amizades especiais com Taiwan e – ainda mais espantoso – com o Japão, tão detestado nesta região, durante muito tempo ocupada pelo exército nipónico. Têm-se implantado ali grandes empresas japonesas, sul-coreanas, norte-americanas ou francesas (Canon, Toyota, Coca-Cola, LG Electronics, Alcatel, Michelin, etc.).
Ao lado de fábricas de montagem há unidades da mais alta tecnologia, na produção de medicamentos ou nos metais da nova geração, tais como a Shenyang Kejin New Materials Development Co, que teve origem no Instituto de Investigação sobre os Metais. O universo, aqui, está mais próximo do Robocop do que de Émile Zola. Convém não esquecermos que se a China, por um lado, produz e exporta têxteis e brinquedos de baixa gama, ela açambarca também 55 por cento do mercado mundial de computadores portáteis, 30 por cento de televisores de ecrã plano, 20 por cento do mercado dos microprocessadores... A China monta muitas das peças concebidas noutras paragens, copia bastante, inventa pouco mas cada vez mais. Os seus bons resultados na indústria espacial ou nas nanotecnologias não são apenas fogo de vista. Embora os investimentos na investigação e desenvolvimento continuem a ser modestos (1,4 por cento do produto interno bruto em 2003), a verdade é que desde 1997 eles duplicaram.
São assim criados empregos que apelam a uma mão-de-obra por vezes muito qualificada e raramente reivindicativa. Tanto mais que o sindicato oficial (All China Federation of Trade Unions, ACFTU) parece pouco virado para os protestos. Quanto aos jovens sem qualificações, recrutados nas zonas rurais e amontoados em assombrosos dormitórios, estes dificilmente podem revoltar-se. Esta região continua marcada pelas grandes mobilizações de Março de 2002, nomeadamente em Liaoyang, cidade de uma já antiga indústria química e mecânica. Após vários dias de manifestações maciças, os líderes do movimento foram pura e simplesmente presos [7]. Mas o poder acabou por dar satisfação a uma parte das reivindicações, tais como o pagamento do subsídio de desemprego e das aposentações. O corrupto director da empresa foi condenado e o dirigente local do partido transferido. Entretanto, os dirigentes operários continuam presos, em isolamento [8], e agora, em Liaoyang, quase ninguém fala deles.
Além disso, embora os salários sejam escandalosamente baixos, para as famílias que ficaram nas suas aldeias eles representam um autêntico maná. Os operários, homens ou mulheres, que trabalham dez horas por dia nas empresas da região, recebem entre 800 e 1200 yuans por mês; os técnicos, em média, auferem um salário de 2500 yuans... Segundo as estatísticas oficiais, estes rendimentos, desde 1990 e em média, terão sido multiplicados por seis [9].
Em Shenyang, e mais ainda na China litoral, foi-se progressivamente constituindo uma classe média, pouco preocupada com a diligente mão-de-obra das fábricas automatizadas. Tem melhores rendimentos, aprecia os primeiros dias feriados que goza (onze, em média, em toda a China urbana), e à contestação prefere o consumo. O governo sabe-o muito bem, receando qualquer contratempo que possa surgir no crescimento económico, muito dependente do exterior; o mercado interno – potencialmente imenso – não absorve as suas produções, por falta de poder de compra. Um outro dos paradoxos chineses reside no facto de o modelo assentar em baixos salários, mas esta exploração da mão-de-obra fragilizar o sistema.
Em 1,3 mil milhões de habitantes, cerca de 900 milhões não têm acesso ao templo do consumo, objectivo supremo. Um responsável da missão económica francesa resume a situação com uma imagem: «Estamos num sistema em que num prédio de dez andares apenas três estão ocupados». Resta saber se os outros andares vão ser ocupados, se alguns moradores vão ser despejados e s euma súbita erupção vulcânica não vai ameaçar os alicerces do prédio.
A China, que já teve a experiência de vários desastres (invasões ocidentais, ocupação japonesa, loucura ditatorial do maoísmo), passou por cima da revolução industrial do século XIX e do século XX. Doravante, tem de responder ao desafio da revolução informacional do século XXI e ao desafio da revolução social. E tudo isso em tempo recorde.
Classicamente, se assim podemos dizer – e na falta de um modelo alternativo –, a China fez suas as leis do mercado. Em 1987, no XIII Congresso do PCC, Deng Xiaoping teorizou do seguinte modo essa conversão: «A planificação e o mercado não constituem as diferenças essenciais entre o socialismo e o capitalismo. Visto haver planificação no capitalismo, o que define o socialismo não é uma economia planificada; a economia de mercado existe no socialismo. Por conseguinte, planificação e mercado são duas formas de controlar a actividade económica» [10]. A planificação (que trazia uma certa igualdade, mas no interior da carência) está em vias de desaparecer. O mercado triunfou, tornando possível uma acumulação do capital que fez o país descolar. Mas a China ainda não se juntou aos países desenvolvidos e o seu Produto Interno Bruto (PIB) representa menos de metade, por exemplo, do PIB japonês.
Esta mercantilização do trabalho, sem precedentes, abalou por completo as relações sociais [11]. Entre 1998 e 2003, entre 40 a 60 milhões de pessoas ficaram sem trabalho, quando até então o emprego era vitaliciamente garantido. De um dia para o outro, foi preciso imaginar um sistema que os países ocidentais levaram mais de um século a pôr de pé, amiúde na sequência de violentas lutas sociais e políticas. Foi preciso transformar tudo, da unidade de trabalho ao Estado, num país onde por tradição milenar a burocracia local sempre se distanciou das directivas centrais.
No seu gabinete do Ministério do Trabalho e da Segurança Social, em Pequim, Pi Dehai, o director geral, confirma a dificuldade dessa tarefa: «Temos de inventar tudo para pôr em aplicação um sistema público de protecção social». Actualmente, segundo ele, a maioria dos assalariados urbanos está coberta por um serviço de saúde, sendo garantidos subsídios mínimos às pessoas que já trabalharam; quanto às aposentações, estas são progressivamente assumidas pelo Estado (no tocante a um terço) e por um sistema privado de fundos de pensões; e foi instaurado um rendimento mínimo (dibao), num montante que se situa entre os 100 e os 800 yuans, segundo as regiões.
Este sistema, todavia, continua a ser embrionário e por vezes não é aplicado, ao mesmo tempo que as reestruturações avançam a grande velocidade. A conclusão é simples: as desigualdades aumentam explosivamente. Até o muito douto Study Times, jornal que segue a doutrina do Partido Comunista, se mostrou impressionado: «A luz alaranjada já está acesa e nos próximos cinco anos o alerta vermelho poderá ser ultrapassado» [12]. Segundo o Ministério do Trabalho e da Segurança Social, os 20 por cento de chineses mais ricos açambarcam 55 por cento das riquezas do país, enquanto os 20 por cento mais pobres têm de dividir entre si 4,7 por cento dessa riqueza. O coeficiente de Gini, estabelecido pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) com o objectivo de avaliar as desigualdades (com uma graduação que vai de zero, em caso de igualdade perfeita, a cem), situa a China, em 2004, no nível 44,7. Menor que o do Brasil (59,1), do Chile (57,1) ou da Nigéria (50,6), mas num escalão muito elevado, e sobretudo em aumento constante; em 1981, o nível da China era 28.
No topo da pirâmide social situam-se os chineses da diáspora que retornaram ao país, mas também antigos quadros do partido reciclados nos negócios, os mesmos que, segundo a expressão do sociólogo Lu Xueyi [13], já antes constituíam a «camada social suprema» de uma China que então se afirmava sem classes.
Na realidade, operou-se uma nova estratificação do país, em torno de quatro linhas de fractura. A primeira opõe a população urbana à população rural; a segunda separa as regiões do litoral, desenvolvidas, das do interior, durante muito tempo abandonadas. E, nos escalões mais baixos, os camponeses do Oeste, onde vive, numa grande pobreza, a maioria dos 150 milhões de pessoas recenseadas pelas estatísticas oficiais, muito subavaliadas. É certo que em 2003 o governo baixou 30 por cento os impostos pagos pelos camponeses e que em Outubro de 2005 anunciou um aumento do rendimento mínimo, bem como a supressão do imposto sobre a produção agrícola e, sobretudo, um programa a favor do sistema escolar e da saúde [14]. Mas estas medidas continuam a ser insuficientes ou pura e simplesmente ignoradas pelos potentados locais.
As outras linhas divisórias separam as cidades entre os assalariados cuja qualificação é reconhecida e os outros; entre os que têm trabalho e os que o não têm – incluindo jovens com qualificações que se vêem pela primeira vez no desemprego. Os mais desfavorecidos continuam a ser os mingong, os operários-camponeses exilados no seu próprio país e sem direitos nenhuns. Para poderem beneficiar dos sistemas públicos (escola, saúde, subsídio de desemprego), precisam dum certificado de residência, o famoso huku concebido na década de 1950 para evitar o êxodo rural, documento que ainda hoje não têm. A hipocrisia é aqui total, porque os mingong «estão no âmago da competitividade e da máquina produtiva chinesas», como refere Geneviève Domenach-Chich, que dirige em Pequim o programa da UNESCO destinado aos migrantes [15]. Os mingong, com efeito, representam 79,8 por cento dos empregados da construção urbana, 68,2 por cento dos empregados da produção electrónica, 58 por cento da restauração...
A preocupação que visa evitar um amontoamento de favelas nas cidades tentaculares nada tem de ilegítimo, mas além da brutalidade da exploração assim admitida, o sistema explode por todo o lado, como reconhece, no seu gabinete da prestigiosa Universidade de Fudan, em Xangai, o jovem economista Lu Ming. Em 2004 foram tomadas medidas pelo governo central «para suprimir as discriminações, mas localmente as autoridades travam ao máximo essas medidas». Atitude que corresponde a um erro político e económico: «Quer encaremos esta questão pelo lado político – “construir uma sociedade harmoniosa” [palavra de ordem do poder] – ou pelo lado económico, é preciso desenvolver o mercado interno e proteger os trabalhadores, para garantir a estabilidade e o desenvolvimento».
Com efeito, as injustiças são de tal ordem que os trabalhadores se insurgem cada vez mais contra elas. Reconheceu o o próprio ministro da Segurança Pública, Zhu Yongkang, ao tornar público o número de manifestações ocorridas no país, que habitualmente fica no segredo dos deuses: 74.000 protestos em 2004, que congregaram 3,76 milhões de pessoas, contra 10.000 em 1994. Dever-se-á ver nisso o início duma ebulição social e política? É impossível predizê-lo. Diferentemente da década de 1980, em que essa ebulição levou às revoltas da praça Tiananmen, e apesar da actual explosão das desigualdades, a situação duma grande parte da população melhorou. Paul Wolfowitz, o novo presidente do Banco Mundial, pouco suspeito de simpatia pelo regime chinês, lembrou recentemente que 280 milhões de habitantes se elevaram acima do limiar de pobreza entre 1978 e 2003 [16].
Nas zonas rurais, os pais vivem com a ideia de que os filhos hão-de viver melhor do que eles se puderem frequentar a escola. Nas cidades, sublinha Lu Ming, «pela primeira vez, os jovens diplomados que tenham alguma experiência ganham mais do que a geração dos pais». Esta esperança leva os chineses a suportarem o insuportável. Mas toda a gente sente que a China está agora a abordar uma nova fase, muito mais delicada. Não foi por acaso que no fim da última sessão plenária do Comité Central do PCC (11 de Outubro de 2005), Hu Jintao anunciou um plano quinquenal de luta contra as desigualdades.
Irá a China mergulhar no capitalismo selvagem? Ou conseguirá ela preservar a sua originalidade? A questão está a ser debatida pela esquerda intelectual chinesa, sem ter ressonâncias no grande público. Durante muito tempo confiante na vivacidade da cultura do seu país, o escritor Xu Xing [17], conhecido pela sua linguagem livre e que continua a viver num minúsculo apartamento, na popularíssima zona sudeste de Pequim, sente se hoje muito mais inquieto. O seu protesto é permanente contra um «capitalismo sem limites» que «sacrifica muitas pessoas» e provoca «violentas destruições das culturas regionais ou locais». Xu Xing também não se mostra nada meigo para com os intelectuais, acusando-os de se terem tornado «cães de guarda do grande mercado globalizado» e de aceitarem o jugo do autoritarismo. Outros intelectuais, desamparados perante o avanço da ocidentalização, voltam-se para as ideologias do passado, em particular para Confúcio, cujos escritos estão de novo em voga.
Ao mesmo tempo, uma nova escola de sociologia tenta conjugar desenvolvimento económico e progresso social. Segundo Dai Jian-Zhong, director adjunto do Instituto de Sociologia da Academia das Ciências Sociais de Pequim, que participou em todas as lutas contra a aniquilação do pensamento, não é a abertura ao mercado ocidental que põe problemas, é a maneira como está a ser levada a cabo e a aceitação da lei do mais forte. «Os operários que se encerram num frente a frente com o patrão não podem negociar. Ora, não lhes é permitido organizarem se e o sindicato está sempre do lado da direcção». Na realidade, «no que diz respeito à protecção social, às condições de trabalho, à jornada de 8 horas ou à limitação das horas extraordinárias, as leis existem, o que se passa é que elas não são aplicadas». Para muitos, os obstáculos são sobretudo políticos e institucionais, porque o poder proíbe todo e qualquer debate destas questões.
Os bloqueios são também sociológicos; embora as elites do PCC pareçam pouco fascinadas pelo Ocidente e afirmem um patriotismo que por vezes roça o nacionalismo (e apesar de uma parte da nova geração ser formada no estrangeiro), a sua referência continua a ser a das universidades ocidentais, cuja reputação não é propriamente a de serem criativas no domínio social.
Ora, como lembra Dai Jian-Zhong, ao longo dos séculos a China conseguiu sempre transformar as contribuições exteriores para moldar uma cultura original. Estará ela hoje em condições de operar uma tal alquimia? Como outros chineses, Dai Jian-Zhong sonha conciliar justiça social, desenvolvimento pessoal – noção que mal começou a despontar – e bem-estar da sociedade, explorando assim uma via chinesa do desenvolvimento. Via essa, no entanto, que se mantém no estádio da utopia.
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[1] Mesmo assim, em 25 de Novembro de 2005 as autoridades mandaram destruir o estúdio de um fotógrafo numa outra comunidade de artistas, Suojiacun, na zona leste de Pequim.
[2] 1 yuan corresponde a 10 cêntimos do euro.
[3] Nome alterado.
[4] Wang Bing, Tiexi Qu (A oeste dos carris), 2002, em DVD (9 horas), produzido pela MK2. Ler Lu Xinju, “Ruins of the future”, New Left Revue, n.º 31, Londres, Janeiro-Fevereiro de 2005.
[5] La Chine vers l’économie de marché. Les privatisations à Shenyang, Karthala, Paris, 2004.
[6] Os 30 milhões de chineses que vivem no estrangeiro, sobretudo na Ásia Meridional, tiveram um papel crucial no aumento dos investimentos estrangeiros.
[7] Em 2005, Xiao Yunliang e Pang Qingxian continuam encarcerados.
[8] Ler Philippe Cohen e Luc Richard, La Chine sera-t-elle notre cauchemar?, Mille et une nuits, Paris, 2005, e Cai Chongguo, Chine: l’envers de la puissance, Mango, col. “En clair”, Paris, 2005.
[9] National Bureau of Statistics of China (NBS).
[10] Citado por John Gittings, The Changing Face of China, Oxford University Press, 2005.
[11] Jean-Louis Rocca, La Condition chinoise, Karthala, Paris, 1º trimestre de 2006.
[12] Citado no China Daily, 10 de Outubro de 2005. Ler “Income Gap in China Reaches Alert Level”, Xinhua, Pequim, 20 de Setembro de 2005.
[13] Lu Xueyi (dir.), Dangdai Zhongguo shehui liudong (A mobilidade social na China contemporânea), Edições Shehui Kexue Wenxian Chubanshe, Pequim, 2004.
[14] Sobre as desigualdades escolares, ler Teng Margaret Fu, Perspectives chinoises, n.º 89, Hong Kong, Setembro de 2005.
[15] “Les migrations internes en Chine”, Connexions, n.º 27, Pequim, Junho de 2005.
[16] Visita de Paul Wolfowitz, 12 de Outubro de 2005. Discurso na página Internet do Banco Mundial, www.worldbank.org.
[17] Em 2005, Tudo o que resta é para ti, uma sua obra escrita dezasseis anos antes, foi publicada com... algumas modificações. Ler “Les tribulations d’un paysan chinois” [ed. brasileira: As atribulações de um camponês chinês], Le Monde diplomatique, Agosto de 2002.
Martine Bulard
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/asia/china002.htm
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