Outrora rivais, a Vivendi, a TF1 e a M6 vão associar-se no sector da televisão por satélite. Com o pretexto de contribuir para a criação de grandes grupos económicas, a Comissão Europeia recomenda a liberalização da directiva “Televisões sem Fronteiras”, o que autorizará os canais a transmitirem mais publicidade... Está de facto iminente o nascimento de uma “CNN à francesa”, estreitamente associada ao grupo TF1.
Ao autorizar, em 30 de Novembro de 2005, a montagem de um canal francês de informação internacional, o governo francês não podia fazer uma mais evidente demonstração do absurdo contido no artigo III-167 [1] do Projecto de Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa. Pois não irá esse futuro canal, desejado pelo presidente Jacques Chirac, anunciado para 2006 e cujo orçamento será integralmente garantido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (apesar de um capital detido em paridade pela TF1 e a France Télévisions), beneficiar de uma ajuda governamental que pode considerar-se “incompatível” com o mercado interno?
Mas neste caso a razão de Estado soube conservar as suas prerrogativas. E a 7 de Junho de 2005 a Comissão Europeia presidida por José Manuel Durão Barroso nada viu que se opusesse à aprovação do novo canal de televisão, apesar de a futura CFII ficar a milhas do espírito de Bruxelas, dos seus âmbitos de competências partilhadas, das suas veleidades de política externa comum e dos seus apelos a uma cooperação reforçada. «Devemos ter a ambição de um grande canal de informação contínua internacional em francês, semelhante ao que faz a BBC ou a CNN para os anglófonos. E essencial para a irradiação do nosso país», explicou Jacques Chirac no Senado em 7 de Março de 2002 [2].
Trata-se, de facto, de propagar a França através de uma informação que se inscreve num projecto político. Mas que França? Autor do relatório sobre a criação deste canal, Bernard Brochand, deputado da UMP (União para um Movimento Popular, de Nicolas Sarkozy), autarca de Cannes e antigo publicitário da agência DDB Worldwide, expôs os contornos dum produto pronto a ser consumido, que deverá não só ser «a voz de França» mas também uma espécie de letreiro luminoso: «Não se trata apenas de criar um instrumento mediático suplementar, trata-se também de fazer surgir uma marca mundial, como o podem ser o Airbus, a L’Oréal ou até a Danone», aliciou ele [3].
A ambição de Brochand consiste em favorecer a implantação das grandes empresas francesas no estrangeiro, valorizando a imagem de marca do país. É aliás preconizada no seu relatório a criação de um «clube dos fundadores» que congregue os «principais anunciantes franceses» e beneficie de «operações de patrocínio» [4]. Naturalmente, foi o seu amigo publicitário Alain de Pouzilhac, ex-director-geral da agência Havas – que abandonou com 7,8 milhões de euros de indemnização –, que Bernard Brochand tratou de promover junto da presidência da República para chefiar o directório do futuro canal.
No papel, o projecto tem a sua legitimidade na vontade de o Estado francês fornecer uma informação em imagens a povos expostos a canais internacionais como a CNN, a Fox News ou a BBC World, que dependem de países beligerantes na guerra do Iraque. A guerra no Afeganistão, em 2001, revelou também a importância de canais informativos árabes, como a Al Jazira ou a Al Arabya, que passaram a ter grande repercussão no Médio Oriente, nomeadamente ao transmitirem os vídeos da Al-Qaeda. Por isso se revelou determinante para o presidente francês fazer ouvir uma voz que deixasse de ser tributária dos canais audiovisuais desenvolvidos por países árabes ou anglo-saxónicos. «É também uma imperiosa necessidade», explicou Brochand. «Quando Michel Barnier, então ministro dos Negócios Estrangeiros, anunciou a libertação dos reféns franceses, foi paradoxal ele ter de optar pela Al Jazira para dar essa informação ao mundo árabe» [5]. Uma imperiosa necessidade que se faz cruelmente sentir, sabendo-se que certos Estados, como a Venezuela ou a Rússia, também declararam, em 2005, que pretendem criar canais informativos internacionais para melhor promoverem os seus interesses.
O projecto de Bernard Brochand junta os inconvenientes do financiamento estatal e do sistema accionista privado. A experiência da Rádio France Internationale (RFI), inteiramente subvencionada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, revela como é difícil haver uma independência redactorial efectiva quando é tão óbvia a tutela orçamental e administrativa do governo francês. Em 17 de Setembro de 2002, o presidente do Togo, entretanto falecido, Gnassingbé Eyadema, tentou impedir a transmissão na RFI de uma entrevista com o seu principal opositor, Messan Agbéyomé Kodjo, telefonando directamente para a Presidência da República francesa. Foi necessário que a intersindical dos jornalistas interviesse para que a entrevista em causa não fosse censurada por Jean-Paul Cluzel, então director-geral da RFI e hoje presidente da Rádio France. Só os togoleses acabaram por não poder ouvir a entrevista, porque o governo do Togo conseguiu interferir, no seu território, nos emissores FM da RFI no dia em que o programa foi para o ar.
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No passado dia 17 de Maio, uma reportagem da RFI que se interrogava sobre a responsabilidade dos “serviços secretos franceses” na morte do juiz Bernard Borrel, ocorrida dez anos antes em Djibuti, foi transmitida e posteriormente retirada do sítio Internet desta rádio, tendo então a sociedade dos jornalistas da RFI denunciado a censura: «Virá ela do director-geral da RFI? Da direcção da informação? Do Ministério dos Negócios Estrangeiros? Ou do presidente do Djibuti, que foi reeleito com 96 por cento dos votos?», questionavam aqueles jornalistas [6]. No tocante à futura CFII, Bernard Brochand pede sem dúvida que «a sua linha editorial seja independente dos poderes públicos franceses e encarada como tal», mas ao mesmo tempo lembra que «o Estado declarou várias vezes, nomeadamente através do presidente da República, que a existência de um canal informativo internacional podia corresponder a alguns dos objectivos da política externa nacional» [7]. Já se sabe a que ponto uma tal linha editorial pode ser independente...
O projecto francês padece igualmente da estreita dependência do grupo TF1, ao qual está previsto serem atribuídos 50 por cento do capital da CFII sem que ele se veja obrigado a qualquer contribuição financeira. Neste aspecto, o Relatório Brochand ignorou com sobranceria as conclusões da comissão parlamentar presidida pelo deputado da UDF (União pela Democracia Francesa) da Loire, François Rochebloine, que preconizava a constituição dum operador de televisão a partir dum agrupamento de interesse público, federando vários organismos: France Télévisions, AFP (Agência France Press), TV5, RFI, CFI, RFO e Arte France. Atribuindo aos grupos privados apenas um papel de parceiros, na base do voluntariado, François Rochebloine depressa foi desaprovado pela presidência da República, que impôs uma associação entre os sectores público e privado única no seu género, no respeitante à acção audiovisual externa. A 14 de Outubro de 2003, a missão parlamentar de Rochebloine viu-se obrigada a pôr fim à sua existência, ao verificar que o projecto estava a ser inteiramente dirigido pela presidência da República e pelo governo. Patrick de Carolis, director-geral da France Télévisions, bem reclamou um papel «motor» e um capital «100 por cento público», o que teria assegurado ao novo canal uma transmissão através da televisão digital terrestre (TDT), mas a verdade é que o seu grupo deverá contentar-se com o papel de co-piloto ao lado da TF1, ainda que lhe seja atribuído, à laia de prémio de consolação, a presidência do conselho de supervisão da CFII.
Por que motivo terá então o governo francês imposto uma sociedade de direito privado que põe o primeiro canal de televisão do país ao lado da France Télévisions? Michel Barnier, então ministro dos Negócios Estrangeiros, justificou essa ligação com a «promessa de êxito» que constituiria «a mutualização das competências de profissionais deste nível». Mas não deveremos nós ver nisso, tal como o deputado socialista Didier Mathus, «a dívida de Jacques Chirac para com a TF1» na sequência da campanha maciça que este canal levou a cabo sobre o tema da insegurança e que em grande medida contribuiu para pôr a direita no poder? Com efeito, o que caracteriza a TF1, propriedade do grupo Bouygues, com apenas cinco correspondentes no mundo (a France Télévision tem dez), é o seu fraquíssimo desenvolvimento internacional e uma modesta porção dos seus telejornais dedicada à actualidade estrangeira, sendo pois bastante limitado o seu contributo para um canal informativo internacional. Em contrapartida, a CFII será um precioso aliado do grupo Bouygues (líder na construção civil e obras públicas), que não hesita em abrir o telejornal das 20 horas da TF1 a chefes de Estado estrangeiros como o rei de Marrocos, de quem espera obter contratos públicos.
Teria sido possível montar um canal a partir da France Télévisions, retomando o projecto desenvolvido para a televisão digital terrestre por Paul Nahon e Bernard Benyamin. Mas Michel Boyon, chefe de gabinete do antigo primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, teve o mérito da franqueza ao explicar-lhes que «estava fora de questão criar obstáculos à TF1». Com efeito, o grupo TF1 financia sem retorno, desde há onze anos, o seu canal informativo LCI, que se revelou um precioso instrumento de lóbis e influências. Está pois fora de questão dar à CFII a possibilidade de lhe fazerem concorrência nas ondas hertzianas, no seu território, tal como estava fora de questão deixar a France Télévisions apresentar um projecto de canal informativo gratuito com base no sistema de televisão digital terrestre.
No seu projecto actual, a CFII será pois, em suma, um canal com a particularidade de ser financiado pelos contribuintes franceses, de em França só poder ser visto por cabo ou satélite (após uma derradeira concessão do governo), mas que vai ficar sob a vigilância de um grupo privado concorrente. É esta, certamente, a melhor forma que a presidência da República encontrou para manter sob seu domínio, relativamente à opinião pública francesa, o novel canal. Patrick Le Lay, director-geral da TF1, e Marc Tessier, ex-presidente da France Télévisions, tentaram impedir que os programas da CFII fossem transmitidos em França, sustentando que haveria um problema de concentração na aliança de «dois líderes» no quadro de uma difusão nacional. Reconheceu depois que a CFII poderia «canibalizar» a audiência das informações da France 2 e da TF1: «Tudo será muito mais difícil se ela fizer concorrência aos nossos próprios telejornais», conveio Marc Tessier. Por seu turno, Robert Namias, director de informação da TF1, confessou ele próprio que não acreditava «nada nisso (...), é muito complicado e tem muitos custos» [8]. Quanto aos sindicatos dos canais públicos, todos eles fizeram saber (CFDT, SNJ, CFTC, SNRT-CGT e SNJ-CGT) que não estavam dispostos a colaborar com a TF1 e advertiram contra um «desmantelamento programado do audiovisual público» [9].
Não se percebe, com efeito, como poderá todo o pessoal da France Télévisions trabalhar eficazmente numa atrelagem contra-natura e sob a égide dum presidente da TF1, Patrick Le Lay, que em 2004 se distinguiu ao afirmar que a sua missão consistia em vender à Coca-Cola «tempo disponível do cérebro humano». E isso quando a AFP e a RFI se vêem convidadas a pôr generosamente à disposição dos interessados as suas redes de correspondentes. Para mais, o projecto levanta a questão da sua articulação com as missões informativas da TV5 e da Euronews. Estes dois canais, que têm a enorme vantagem de dispor de uma rede de transmissão mundial construída ao longo do tempo, atingem, respectivamente, 144 e 155 milhões de lares numa centena de países. Não há dúvida nenhuma de que teria sido mais pertinente utilizar este acervo para dotar a CFII com uma plataforma de lançamento operacional... Mas os accionistas multinacionais ou europeus destes dois canais, que se teriam mostrado propensos a favorecer uma independência editorial, pelos vistos não coincidiam com a vontade de pôr sob tutela a informação internacional à francesa.
O primeiro-ministro, Dominique de Villepin, acabou assim por não mexer no essencial das conclusões do Relatório Brochand. O projecto da CFII, realizado por encomenda da presidência da República, pouco preocupada em respeitar o código dos mercados públicos com base em concursos, será assim o exacto reflexo da política chiraquiana em matéria de audiovisual externo. O canal, que deverá começar a transmitir em 2006, limitar se á a ter um orçamento muito modesto de 65 milhões de euros (contra os 887 milhões de dólares, cerca de 750 milhões de euros, da CNN Internacional e os 510 milhões de euros da BBC World). Disporá apenas de 130 jornalistas e, ao mesmo tempo que a Al Jazira e a Rússia se preparam para emitir integralmente em língua inglesa, terá apenas, quando começar a emitir, uma parte diária de quatro horas destinada ao público anglófono. Quanto ao lugar reservado à língua árabe, este deverá fazer pálida figura ao lado da BBC Arabic TV, o canal internacional que a Grã-Bretanha está prestes a lançar em língua árabe e que transmitirá 24 horas por dia. No tocante à língua espanhola, esta só está prevista para a CFII num segundo tempo. E este o preço a pagar para permitir que um presidente em fim de mandato realize o seu sonho de uma “CNN à francesa”, a qual só se distinguirá das congéneres norte-americanas pelos parcos meios de que irá dispor. Sob o impulso do canal norte americano Fox News, de Rupert Murdoch, desde o 11 de Setembro de 2001 a informação internacional entrou na era do patriotismo e da instrumentalização partidária. E a França não lhes quer “ficar atrás”...
[1] Que declara «incompatíveis com o mercado interno» as ajudas públicas «que ameaçam falsear a concorrência».
[2] AFP, 7 de Março de 2002.
[3] CB News, 26 de Janeiro de 2004.
[4] Relatório Brochand ao primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, 24 de Setembro de 2003.
[5] Audição no Clube Parlamentar sobre o futuro do audiovisual, 1 de Fevereiro de 2005.
[6] Comunicado da SDJ citado pelo diário Le Monde, 21 de Maio de 2005.
[7] Dossiê de imprensa do Relatório Brochand, p. 12.
[8] Libération, 25 de Julho de 2005.
[9] AFP, 12 de Janeiro de 2004.
Marie Bénilde
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/midia/midia061.htm
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