Nosso texto anterior causou certa perplexidade em alguns dos nossos leitores e mesmo certa confusão. Esse complemento visa tentar esclarecer de forma mais esquemática o nosso raciocínio.
Minha tese básica é a de que o trabalho precário surgiu em função da “racionalização” das atividades ocupacionais, de modo que cada profissional execute exclusivamente o trabalho para a qual está qualificado ao máximo, e apenas pelo tempo em que esse trabalho é realmente necessário.
Isso significa que as novas tecnologias, e os métodos gerenciais por elas viabilizados, tem sido empregadas sistematicamente com o objetivo de eliminar todo o “tempo” de trabalho pago que não se enquadra nessa categoria. Em outras palavras, embora o “trabalho” em si possa não ter diminuído, a necessidade de profissionais em tempo integral tem caído vertiginosamente.
Definimos que para cada atividade profissional, além do tempo ocupado pelas tarefas em que o trabalhador usa sua “capacidade plena” em termos de qualificação e efetiva atuação, existe uma quantidade de tempo em que isso não acontece.
Essa quantidade de tempo se divide em duas: O tempo de “espera” e o tempo gasto em atividades onde as qualificações do trabalhador são subutilizadas. Chamamos essas últimas tarefas de “rotineiras” mesmo quando se trata de operações altamente especializadas, isso porque robôs e computadores estão em condições de executá-las.
Desse modo vamos ficar com as seguintes definições para a distribuição do tempo de ocupação durante uma jornada de trabalho:
A) Tempo de trabalho “pleno”: É aquele em que o profissional executa uma tarefa que exige toda a sua especialização. Exemplo: Profissional de marketing quando cria uma nova campanha publicitária.
B) Tempo de trabalho “rotineiro”: É aquele em que o profissional executa uma tarefa aquém da sua especialização. Exemplo: Advogado digitando um documento jurídico.
C) Tempo de “espera”: É aquele em que o profissional, mesmo estando à disposição do empregador, simplesmente não pode atuar. Exemplo: Contador que aguarda a impressão de um relatório para tomar decisões.
Devemos reparar que nesses casos, não estamos nunca levando em conta os tempos “mortos”, gastos em atividades que não se relacionam ao trabalho em si (conversar, distrair-se, etc). Nem os tempos necessários às necessidades básicas (banheiro, cafezinho, lanche, etc).
Em todos os casos, o tempo de trabalho da jornada é todo pago pelo valor “mais alto”, ou seja aquele que definimos como “pleno”. Nos exemplos que demos não seria admissível pagar valores diferentes para cada hora do dia por exemplo. Mas poderíamos providenciar algumas coisas:
1) Evitamos que advogados tenham de digitar documentos criando modelos pré-redigidos e transferindo os dados dos processos, já armazenados, para eles.
2) Fornecemos aos contadores as informações na tela de um computador em tempo real.
3) Transferimos boa parte do trabalho para pessoas que estão em suas próprias casas, de modo que não teremos de pagar nada além do tempo que elas dedicam efetivamente a empresa.
Devemos notar que todas essas providencias são perfeitamente possíveis nos dias de hoje, graças às tecnologias de informática e telecomunicações disponíveis. Nesse caso, a generalização dessas providencias, levará a uma redução significativa nos tempos de trabalho “rotineiro” e de “espera”.
É desnecessário dizer que o número de profissionais necessários ira se reduzir também. Se pudermos transferir o trabalho “rotineiro” dos advogados, de modo a que se limitem a escolher o modelo adequado de documento, precisaremos de um número menor deles.
Se fornecermos as informações contábeis em tempo real na tela de um computador, um contador poderá “monitorar” várias empresas, ou filiais da mesma empresa, ao mesmo tempo. Alem disso, pessoas que trabalham em casa não poderão cobrar pelas horas que gastam com alimentação, necessidades fisiológicas, etc.
Em todos esses casos, estaremos eliminando “empregos” mas não necessariamente “trabalho”. Ocorre que no atual estágio de desenvolvimento das sociedades humanas, é o “emprego” que dá ao indivíduo a sua referência ou “posição social”.
Em uma metrópole urbana, nenhuma pessoa se refere a si mesma como membro de um determinado clã, grupo familiar, associação religiosa, cultural ou esportiva. Se você pergunta a um cidadão de uma metrópole quem ele é, a resposta será a profissão seguida da descrição de seu empregador. Mesmo um abastado banqueiro dirá que é esse o seu “negócio” (sou banqueiro) e em seguida dirá o nome do banco que possui.
Ninguém se apresenta como “descendente de portugueses, da família Souza, diácono da igreja de Santa Terezinha, apreciador de forró e corintiano”, por exemplo. A mesma pessoa provavelmente irá se apresentar como “torneiro mecânico, funcionário da Volkswagen”.
Da mesma forma, ninguém se sente à vontade em se descrever como uma pessoa que faz “trabalhos temporários de digitação, dá algumas aulas particulares de inglês e às vezes faz uns bicos como motorista, segurança ou garçom, dependendo do que aparecer”.
Mesmo que essa pessoa tenha uma renda muito superior a de um “funcionário da prefeitura”, por exemplo, ela se sentirá inferiorizada. Embora do ponto de vista do modo de produção capitalista, a pessoa que “vive de bicos” e ganha bem, seja mais valorizada, as ideologias que dão suporte ao sistema não sustentam esse raciocínio.
O motivo é simples: Se do ponto de vista do empregador o que interessa é a capacidade do indivíduo de realizar “trabalho”, do ponto de vista do trabalhador o importante é o “emprego”. Isso não decorre de uma tendência das pessoas a “acomodação” e a “preguiça” e sim aos sistemas de valores das sociedades da qual fazem parte.
E esses sistemas têm todos uma coisa em comum: Valorizam sobretudo a “estabilidade” do indivíduo acima de seus ganhos pecuniários, mesmo que muito elevados. Somente essa condição permite um grau mínimo de previsibilidade, em relação às intenções e futuros comportamentos das pessoas, fator indispensável em qualquer estabelecimento de “contratos” sociais.
Um funcionário do “Banco do Brasil” dificilmente larga a esposa e os filhos, deixa de pagar suas contas, abandona sua religião, suas convicções políticas e seu circulo de amizades. Mas uma pessoa que vive de seus conhecimentos de montagem de “sistemas on-line” e que trabalha “por projeto”, poderá ser tentada ou até forçada a agir dessa forma.
Isso ocorrerá porque seus ganhos serão variáveis e a necessidade de mudanças (deslocamento físico, troca de ambiente, tipos de pessoas com que convive, idéias e costumes aos quais estará exposta, etc) serão uma parte integrante de sua existência.
Alguém pode argumentar que isso já é assim para muitas profissões, como por exemplo: diplomatas, militares, marinheiros, repórteres, comissárias de bordo, etc. Mas ai o caso é muito diferente. Essas pessoas normalmente mantêm um sólido vínculo com alguma instituição ou empresa que lhes serve de referência.
Mas, num mundo totalmente “globalizado” e sem qualquer vínculo com o que quer que seja, uma pessoa que vive exclusivamente do seu “trabalho” torna-se instável. E isso pode ser observado nas profissões que mencionamos, sempre que a relação estável (o emprego) deixa de existir.
Diplomatas podem virar espiões, militares se tornam mercenários, marinheiros se tornam contrabandistas, repórteres viram chantagistas, comissárias de bordo viram “dançarinas”, etc. Em outras palavras, sem um conjunto de “lealdades” de longo prazo, os padrões morais e éticos tendem a cair rapidamente.
Esse é um perigo muito real para as sociedades em que a tecnologia e os métodos gerenciais sejam projetados, cada vez mais, para extrair apenas o “trabalho pleno” das pessoas. O desaparecimento gradual do emprego pode levar sociedades inteiras a se tornarem “instáveis”.
Temos de considerar que o emprego formal, com jornada de trabalho integral e por tempo indeterminado, é muito mais do que uma simples reivindicação “comodista” das classes trabalhadoras. É uma condição vital para a manutenção da coesão das sociedades contemporâneas.
A menos que se descubra como distribuir a renda obtida com os espetaculares aumentos de produtividade, proporcionados pelas novas tecnologias, de forma independente do trabalho de cada um, teremos um colapso social num horizonte não muito distante.
http://lauromonteclaro.sites.uol.com.br/
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