Está a disseminar-se nos meios mediatico-intelectuais franceses uma “revolução conservadora”. O seu principal objectivo consiste na denúncia de um povo rebelde. Os seus apóstolos voltam a deparar com as angústias sociais do século das revoluções e reconstituem a aliança entre a “boa sociedade” e os sábios de pacotilha. O espectáculo duma contra revolução sem revolução faz lembrar, ao mesmo tempo, o regresso dos emigrados políticos de 1792, os temores das “pessoas honradas” e o “pânico dos bem-pensantes”.
Os eleitores não falam, gritam; não se exprimem, escarram. E, como é óbvio, não sabem pensar. De maneira que na noite do referendo de 29 de Maio de 2005 a prostração apoderou-se dos editorialistas: «tsunami», «catástrofe», «impasse», «fiasco», «crise grave». Naturalmente, a vitória do “não” exigiu uma explicação à altura, e a explicação foi esta: a incapacidade dos eleitores. Os seus votos? «Aquilo que o eleitorado de esquerda levou para as urnas foram gritos de dor e de medo, de angústia e de raiva» (Serge July, Libération, 30 de Maio de 2005), tudo isso constituindo «um escoadouro insalubre onde se perverteu a regra do jogo referendário para lançar à cara do governo a sanha toda» (Claude Imbert, Le Point, 31 de Março de 2005). No seu abalo, os comentadores adoptaram espontaneamente as visões da psicologia das multidões do séc. XIX – as de Gabriel de Tarde, Scipio Sighele e Gustave Le Bon, segundo as quais o que caracteriza o povo é «a impulsividade, a irritabilidade, a incapacidade de raciocínio, a falta de opinião e de espírito crítico, o exagero dos sentimentos» [1]. Os nossos actuais analistas retomam esse vocabulário da patologia invectivando a «raiva dos protestos» (Claude Imbert), o «masoquismo» (Serge July), a «epidemia de populismo» (idem), a «paranóia aguda» (Franz-Olivier Giesbert). Deste modo, um registo mais sóbrio substitui a sífilis e o alcoolismo que obcecaram o século XIX.
Segundo a classificação de Le Bon, poucos meses depois do referendo europeu as «multidões criminosas» dos subúrbios de França substituíram as «multidões eleitorais». Nas situações que põem à prova as capacidades de explicação, o que muitas vezes as pretensões revelam é uma racionalização dos preconceitos: «Depois da trombose social, da derrocada cívica de 2002, da guerrilha eleitoral do passado mês de Maio», escrevia Nicolas Baverez no semanário Le Point de 10 de Novembro de 2005, «os motins urbanos do Outono de 2005 são uma nova ilustração da crise nacional em França e da decomposição do corpo social». E, por trás da descrição do caos, surgia mais uma vez o espectro da doença mental de uns amotinados cuja «violência delirante», clamava Claude Imbert, «mais pertence ao foro psíquico do que ao político».
A violência e a origem social dos amotinados desfizeram um pouco mais as inibições. Foi necessária a sombra do general De Gaulle para que um editorialista lançasse a seguinte advertência pré-eleitoral: «É preciso desconfiar dos franceses, esses “bezerros” que sem avisar se transformam por vezes em touros» (Denis Jeambar, L’Express, 21 de Março de 2005). Com a revolta dos subúrbios, ressurgiram os bárbaros e as bestas ferozes, como nas insurreições de antigamente. Em Junho de 1848, diz-nos um historiador, «todo o “cidadão honesto” tinha então na boca, ou na pena com que escrevia, essas designações animais, fosse qual fosse o seu grau de cultura; a propósito dos amotinados, Mérimée, Musset ou Berlioz dizem então e escrevem, tão naturalmente como qualquer escrevinhador, que os sublevados são bestas selvagens, cães raivosos, tigres, hienas, lobos, escumalha, etc.» [2]. Embora as declarações se refiram nos nossos dias a «canalha» e «ralé», nem por isso deixa de subsistir alguma regressão.
Ao aproximarem-se perigosamente da invectiva, os comentadores fazem relembrar que a contra revolução não se exprime essencialmente através duma racionalização mais ou menos sofisticada. As Considerações sobre a França de Joseph de Maistre ou A Psicologia das Multidões de Gustave Le Bon fazem esquecer as apreciações comuns suas contemporâneas, muito mais numerosas e com maiores consequências. É preciso reavaliar as “derrapagens” de alguns intelectuais mediáticos, que foram mais atacados por serem ineptos do que por laborarem em erro. Aquilo que exprimem as tolices proferidas sobre a poligamia dos moradores dos subúrbios é sempre um ódio social, que noutras circunstâncias não extravasa do espaço privado.
Embora reconheçamos que o actual pensamento contra-revolucionário evita, pelo menos de forma explícita, o conceito de raça, que se encontrava no âmago do pensamento contra-revolucionário do passado, as referências ao povo ignorante continuam a ser o princípio de afirmação das superioridades sociais. Num século XIX tido como progressista, quantas e quantas vezes não foram o povo, os camponeses ou os operários declarados ignorantes políticos? Em 1863, proclamava Proudhon: «A turba é de facto ininteligente e cega». Nesse mesmo ano, acrescentava Jules Ferry: «Uma última característica desta raça excelente é a sua absoluta credulidade». Em 1884, completava Alfred Fouillée: «O camponês ignorante é menos absurdo do que o operário semi esclarecido». Em 1888, zombava o socialista Joffrin: «Se soubessem com que patranhas os embrutecem! Até parece incrível». Em 1906 – um pouco como diria cem anos mais tarde um ministro da Economia –, explicava o governador civil da região de Vosges: «Confesso que não esperava encontrar entre os operários vosgianos uma tão completa ignorância das mais simples noções económicas» [3]. É enorme, como vemos, a lista das acusações, deplorações ou pesares. E em 2005, caracterizado por «abismos de ignorância política», o povo continuava ainda e sempre a precisar de ser esclarecido. Ora, justamente, o referendo fazia uma pergunta muito difícil para eleitores que só por erro foram vistos como «alunos de Direito» (Luc de Nanteuil, Le Figaro, 30 de Abril de 2005). Tais comentários far-nos-iam simplesmente sorrir, mas acontece que pretendem ter por base a ciência política, por eles tão falsificada como em seu tempo o foi a psicologia das multidões.
CAUÇÃO INTELECTUAL AOS PRECONCEITOS DE CLASSE
O sucesso da pseudociência das multidões foi tanto maior quanto os seus autores deram assim farpela científica aos fantasmas políticos das “pessoas honradas”, então apavoradas com o socialismo. Os preconceitos de classe não desapareceram das análises actuais. Na noite do escrutínio de 29 de Maio de 2005, os politólogos opuseram uma França de cima, quadros opulentos e diplomados, a favor do “sim”, e uma França de baixo, operários e empregados, pobres e pouco instruídos, a favor do “não”. Em suma, de um lado, pessoas inteligentes e informadas; do outro, indivíduos estúpidos e ignorantes. Pascal Perrineau, useiro editorialista da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Paris, explicou as coisas da seguinte maneira: «As pessoas enganaram se no voto» [4]. Trocado por miúdos, queria isto dizer que os eleitores do “não” tinham votado com base em motivações nacionais e não relativamente ao Tratado Europeu, como se as questões em jogo não estivessem ligadas... De resto, esses peritos oficiais salpicam as suas declarações com prescrições impositivas que são estranhas à ciência política. Mas as insígnias e os princípios vão-se apagando, à medida que essas personagens vão despindo as vestes de cientistas para envergar as de conselheiros ou peritos ao serviço de partidos políticos ou institutos de sondagens, bem como a vestimenta de propagandistas.
Os politólogos não são os únicos que participam nas novas e sábias roupagens dos medos sociais. Com espantosa ingenuidade, alguns historiadores empreenderam uma campanha de restauração em que à empresa ideológica se junta um assustador recuo intelectual. Tal como uma dessas revistas de história feitas para entreter os leitores com narrativas de batalhas e a vida dos “grandes homens”, a revista L’Histoire, na capa do seu número de Novembro de 2005, levantava solenemente a seguinte questão: «Deverá Luís XVI ser reabilitado?» Para um historiador é uma questão estúpida – mas trata-se de uma questão da actualidade mediática. Professor emérito na referida Faculdade de Ciências Políticas, Michel Winock afrontou a com ambivalência: «Devemos deixar de repetir que estamos em 1788, mas convém admitirmos que a inércia e as falhas da nossa época nos inclinam a uma indulgência que nem sempre tivemos».
O regresso a Luís XVI serve para condenar as «resistências a toda e qualquer reforma», a «recusa da adaptação à corrente do mundo» e a «rejeição da única abertura tangível que se nos ofereceu, este referendo sobre o Tratado Constitucional da Europa». Seria pois Luís XVI um profeta do “sim”? Nunca é tarde para dizer aos humanos que não têm outro caminho. O legitimismo dinástico junta-se assim ao legitimismo contemporâneo, graças ao qual o conservadorismo se adorna com os méritos da razão e se justifica pela ordem necessária das coisas.
A tribuna da rádio permitirá melhor que as colunas da imprensa escrita que as coisas recalcadas possam emergir? No passado dia 26 de Novembro, na France Culture, o programa “Réplica”, de Alain Finkielkraut, deu a palavra a um espantoso dueto: de um lado, um historiador empenhado na empolgada defesa de um rei reformista (para quando a reabilitação de Carlos X?); do outro, uma historiadora lançada na defesa igualmente apaixonada da rainha. O primeiro, Jean-Christian Petitfils, considerou «totalitária» a Assembleia Nacional Constituinte de 1789, enquanto a segunda, Mona Ozouf, pintou Marie-Antoinette como uma Lady Di. «Vítima do ressentimento democrático», porque «esta mulher tinha tudo – era a mais bela, a mais sedutora, a mais dotada com superioridades de todo o género, atraindo assim contra ela a eleição do ódio... Marie Antoinette inventou algo de inteiramente novo na história das rainhas, o gosto pelo prazer imediato, pelo individualismo livre, pela construção de uma vida pessoal...». O anacronismo esvaiu-se quando por fim a historiadora admitiu, lúcida no seu desvario: «Nós estamos a caminho, você e eu, de reabilitar o rei»...
Não são novas as convergências e alianças entre os “sábios” mais oportunistas e os jornalistas mais poderosos. Um pouco como se se confortassem com a invocação dos produtos pseudocientíficos da psicologia das multidões (Gustave Le Bon era no seu tempo mais conhecido do que Émile Durkheim), os comentadores alimentam se com os mais obsoletos produtos da ciência, tais como o behaviorismo (estudo dos comportamentos) apoiado nas sondagens. Esta convergência é sancionada pela afinidade do senso comum que dá respostas políticas (e não científicas) a questões políticas. Os conceitos são aqui inúteis para compreender, porque os eleitores diriam o que pensam e o que fazem. Antecedidos de umas quantas percentagens, isso produz a opinião pública. Umas reminiscências sobre a «sociedade bloqueada» bastam para pôr em causa as «inércias» e as «falhas» de um povo agarrado aos seus «benefícios adquiridos». Os quais nunca dizem respeito aos editorialistas que não lêem ou aos universitários que renunciaram a toda e qualquer ciência.
Nessa troca de serviços, uns fazem valer o reforço intelectual de universitários que citam mais pelos seus títulos do que pelas suas ideias, os outros recebem a publicidade para os seus (medíocres) ensaios, satisfazendo assim o respectivo narcisismo mediático. Entre aqueles que se multiplicam em todas as frentes, um dos mais generosos é o politólogo Dominique Reynié. As suas ideias sobre as eleições, a crise dos subúrbios ou a futura eleição presidencial tanto ornamentam o Le Figaro como o Libération, o Le Monde ou a Revue politique et parlementaire, sem falar de diversos jornais estrangeiros cujos redactores encontram ideias lendo a imprensa francesa. As mundanidades politológicas têm a vantagem de fazer com que se retenha unicamente o conteúdo que consiste na amálgama habitual entre a esquerda da esquerda e a extrema-direita. Subtilmente, Dominique Reynié resumiu a primeira a um “social-nacionalismo”, invenção que logo lhe valeu os cumprimentos da imprensa.
Nos Estados Unidos, os comentadores que falam de tudo e de nada foram definidos como «classe tagarela» (chattering class). Neste aspecto, não há excepção francesa. As declarações estereotipadas repetem se tanto mais quanto mais os seus adeptos vão perdendo influência sobre um público cada vez mais crítico. A este respeito, o referendo de Maio de 2005 devia ter engendrado mais reflexão e menos fúria. Na história da imprensa, não é corrente que as tomadas de posição unânimes seguidas das condenações nutridas pela impotência afastem uma parte dos leitores e ouvintes. Quem poderá pretender que o cálculo das audiências ou o interesse económico reinam sozinhos sobre a palavra jornalística? Bela demonstração da sobrevivência da “ideologia”, precisamente entre aqueles que clamam que ela desapareceu.
O apagamento dos pensadores críticos na vida intelectual francesa não é o resultado dum fenómeno genético nem da concorrência de conservadores talentosos. Em contrapartida, a crise da Universidade explica em parte uma inflexão política, a que se junta um recuo da qualidade intelectual. Os universitários, confrontados com os progressos do conservadorismo nas suas fileiras, admitem com fatalismo que os seus colegas têm direito a exprimir as suas convicções e até a perseguir noutros sítios e de forma diferente o êxito social. Desprezam discretamente as intervenções mediáticas e os ensaios medíocres desses seus colegas, mas fecham se eles próprios numa concepção esotérica da ciência.
O controlo exercido pelos pares, que pressionava no sentido da ortodoxia, tinha os seus inconvenientes. Deixa de ter vantagens quando já não incita ao respeito pelos princípios elementares do trabalho intelectual. A simultânea exclusão nos media dos pensadores críticos e dos talentos exauriu também uma renovação das gerações e das ideias. Neste processo, a própria inteligência conservadora também ficou a perder.
[1] Gustave Le Bon, La Psychologie des foules, PUF, Paris, 1963 [18951, p. 17.
[2] Dolf Oelher, Le Spleen contre l’oubli. Juin 1848, Payot, Paris, 1992, p. 30.
[3] Citações extraídas de Alain Garrigou, Histoire sociale du suffrage universel en France (1848-2000), Seuil, Paris, 2002.
[4] Rádio France Info, 29 de Maio de 2005.
Alain Garrigou
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/midia/midia064.htm
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