quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Um Estado sem Educação?

Ao que parece, afinal já existem algumas reservas sobre aquilo que o Governo quis fazer passar para a opinião pública através da comunicação social sobre as funções nucleares e exclusivas do Estado e que na semana passada se afirmava reduzirem-se à Justiça, Segurança, Defesa e Diplomacia, ou seja, ao chamado Estado-Mínimo, meramente regulador da vida da comunidade e representante no plano internacional. Significaria isto a completa adesão a uma concepção do Estado de matriz liberal no seu sentido mais “americano”, por oposição a uma tradição histórica “europeia” de um Estado com características mais sociais e redistributivas.
Como muito bem já foi sublinhado, esta é uma discussão eminentemente política e as concepções em confronto radicam em visões diversas do papel do Estado e da sua relação com a sociedade. É uma discussão quase insanável e que fractura boa parte dos partidos centrais do regime, embora claramente mais o PS do que o PSD.
No entanto, e neste momento e contexto, estas propostas resultam principalmente de constrangimentos orçamentais e do desejo de aligeirar a carga da despesa com alguns dos sectores mais “pesados” do aparelho do Estado, nomeadamente a Saúde e a Educação. Porque o Estado pode definir as suas funções nucleares sem que isso implique o fim da existência de vínculos definitivos na função pública para outros sectores, como o Fisco, a Educação ou a Saúde.
Aliás, se pedirmos uma justificação teórica aos promotores actuais desta ideia, os mesmos terão alguma dificuldade em desenvencilharem-se da tarefa, em especial se os confrontarmos com algumas das bandeiras “assistenciais” do partido no poder durante a campanha eleitoral, exactamente porque as coisas conflituam de forma evidente no plano conceptual.
Mas o que aqui mais me (pre)ocupa é a opção por deixar cair a Educação como um dos pilares do Estado Moderno.
Porque, por muito que custe a quem faz por perder a memória, o modelo moderno de Estado(-Nação) construiu-se desde o século XIX sobre quatro aspectos fundamentais: o chamado “exercício legítimo da violência” (manutenção da ordem pública e julgamento dos infractores), a função de defesa militar, a extensão de uma rede administrativa para efeitos fiscais e, sim, a construção de sistemas de educação de massas, progressivamente inclusivos. Mais interessante ainda, se nos dermos ao trabalho de comparar o que muda de essencial entre o Estado pré-moderno e pré-liberal anterior às revoluções librais do século XVIII e XIX e o Estado moderno que se lhes sucede, a principal diferença passa exactamente pela preocupação do Estado erguer sistemas educativos de tipo racional, não-confessional e universal. As funções de defesa, polícia e diplomacia já existiam há muito e mesmo a fiscalidade já avançara bastante com o próprio absolutismo.
Qualquer leitura dos mais clássicos e afamados autores (Anderson, Gellner, Green, Greenfeld, Hobsbawm, Llobera, Smith, para mencionar apenas os mais traduzidos entre nós) sobre a génese dos Estados-Nação e do próprio fenómeno do nacionalismo (no que ele também tem de positivo e não apenas na visão negativa que foi ganhando durante o século XX) permitirá encontrar a estreita relação entre a consolidação do modelo actual de Estado e a paralela consolidação dos sistemas educativos públicos. Mesmo em países onde já pré-existia uma rede escolar alargada de origem privada (Grã-Bretanha, Escandinávia), o Estado vai ocupar-se em tornar a sua oferta cada vez mais alargada e concorrencial.
O papel da Educação Pública foi considerado essencial, pois permitiria transformar os súbditos em cidadãos e, através de uma instrução ditada por princípios liberais (esta palavra insiste em aparecer com sentidos tão diferentes…) transferir as múltiplas fidelidades dos tempos do absolutismo para uma fidelização exclusiva ao princípio unificador da Pátria ou Nação de que o Estado constituía o aparato concreto.
Claro que se pode considerar que esta aliança de conveniência entre o Estado Moderno e a Educação tem muitas falhas e deu origem a muitos abusos e/ou preversões. Assim como se pode considerar que nos tempos actuais se exige um Estado Pós-Moderno, mais leve e flexível. Admito tudo isso.
Mas acho, igualmente, que quando o Estado prescindir de considerar a Educação com um dos seus pilares básicos, mais do que renegar a sua história, estará a contribuir para a sua própria erosão e para o enfraquecimento dos laços de solidariedade e coesão da sociedade, porque a aposta num sistema de educação maioritariamente privada será a aposta num sistema fragmentado e fragmentário, com a coexistência não só de modelos diversos de gestão (organizacional, curricular) mas igualmente de sistemas de valores conflituantes.
Para além de que, se o Estado se demitir do seu papel de fornecedor preferencial dos serviços educativos - para aligeirar a carga da despesa - depois ficamos perante vários dilemas, alguns dos quais já assomam: o sistema público passará a ser, em definitivo, considerado e tratado como um sistema de segunda qualidade? E como se fará o financiamento dos sistemas privados? Se for com subsídios estatatais é um contra-senso, se for apenas com os dinheiros das famílias, isso conduzirá a práticas de segregação socio-económica muitas mais graves do que as actuais.
Mas, e principlamente, renegando a Educação como parte integrante de si mesmo, o Estado está a contrariar os seus próprios interesses, a erodir a sua identidade e a tornar-se crescentemente vulnerável, mas essencialmente a contribuir para a atomização e a dissolução de importantes laços de coesão social. Em última instância está a prescindir da própria identidade nacional.
E isso, desculpem-me lá, não é muito boa ideia. Por muito “europeus” e “tecnológicos” que queiramos ser.
http://educar.wordpress.com/

Sem comentários: