Relativamente à interrupção voluntária da gravidez, julgo que aqueles que se colocam na posição de dizer “sim” deverão, neste momento, fazer um exercício de raciocínio no sentido da máxima abrangência, isto é, do maior denominador comum. Um raciocínio que possa ser extensivo a todos os que, por variadas razões, dirão “sim” em consciência e no voto. Nesta perspectiva, renuncio voluntariamente a posições mais polémicas, mais extremadas, e a outras cuja matéria seria bem interessante em termos filosóficos ou de concepção biofilosófica.
Estamos perante uma realidade: a do aborto clandestino que acontece em todo o mundo e também em Portugal, e que reflecte a ocorrência ocasional e involuntária duma gravidez no corpo de mulheres cuja situação pessoal, física, psíquica, social ou económica é incompatível com a continuação dessa gravidez.
O fenómeno do aborto clandestino exige então duas notas claras: é ilegal e portanto passível de castigo judicial, e é inseguro e portanto causa potencial de graves riscos para a saúde.
Ao longo da minha vida como médica, o contacto que tive com a história clínica do que poderei quantificar como milhares de mulheres levou-me a ouvir, por inúmeras vezes, relatos da ocorrência de interrupções voluntárias de gravidezes feitas de forma clandestina.
Desses relatos concluo que o aborto clandestino é uma situação sempre altamente traumática para a mulher, tanto sob um ponto de vista psíquico como físico. É uma situação de grande solidão e sofrimento. Tenho observado que há reacções diversas a essa ocorrência, mas também tenho concluído que a maior parte do sofrimento advém, no fundamental, de duas circunstâncias. Uma é constituída pelo contexto ilegal do acto, feito às escondidas e punível na Justiça. Outra é o medo dum acidente agudo provocado por uma situação cirúrgica desenvolvida secretamente e fora duma instituição. É um duplo medo. Tenho ainda observado que, muitas vezes, a mulher está só ou quase só – nates, durante e após o aborto –, sendo raras as vezes em que o companheiro a acompanha. E, é claro, mais raro ainda se tornou esse acompanhamento após a exposição pública dos arguidos masculinos do Tribunal de Aveiro.
TAMBÉM AQUI A DESIGUALDADE SOCIAL
A interrupção voluntária da gravidez, desta forma praticada à margem das actuais leis portuguesas, é uma das situações em que a desigualdade social das mulheres é mais flagrante. Não podemos deixar de encarar esta desigualdade como qualquer coisa que nos questiona a todos. As mulheres que podem pagar uma viagem e uma clínica estrangeira sentem-se a salvo. As mulheres pobres, desde logo com menor acesso a planeamento familiar por razões de vida quotidiana, de instrução e de ambiente cultural são aquelas que farão os seus abortos em pior situação. Porque mesmo os abortos feitos em Portugal clandestinamente têm uma escala de preços, dos mais caros aos mais baratos. E, tendencialmente, quanto mais barato, piores são as condições.
O aborto clandestino pode provocar muitas sequelas que são evitáveis no aborto praticado em condições seguras. São elas: febre, infecção, septicemia, aborto incompleto, problemas no colo do útero, perfuração do útero, hemorragia. Qualquer destas sequelas pode levar à morte ou causar danos, como a infertilidade. Por tudo isto, a legalização da IVG é um acto que vai salvar multas vidas. Representa um acto de promoção de saúde pública. Além do mais, a despesa no Serviço Nacional de Saúde provocada pelas numerosas situações agudas e pelas situações crónicas causadas pelas sequelas do aborto clandestino é muito superior à despesa que acarretarão as interrupções feitas legalmente e em instituições públicas.
Importa considerar também que a IVG feita legalmente e em instituições públicas leva à inclusão imediata da mulher na consulta de Planeamento Familiar, o que se tem traduzido por uma diminuição dos abortos a médio prazo nos países onde se tem legalizado.
REPRODUÇÃO E DESENVOLVIMENTO HUMANOS
Finalmente, a respeito da IVG devemos encarar o ser humano numa perspectiva de desenvolvimento. Um embrião de poucas semanas não pode ser comparado a um bebé recém-nascido, portador dum sistema nervoso central que lhe permite ter consciência e autonomia cardiorrespiratória. Nós sabemos que, no total das gravidezes, 20 a 25 por cento (um quinto a um quarto das gravidezes totais) são interrompidas espontaneamente, mesmo sem a mulher dar por isso. Esta interrupção pode ocorrer porque o ovo fecundado não chega a nidar no útero, pode ocorrer porque é um pequeno embrião anómalo ou por outra qualquer anomalia de condições. Tudo isto pode acontecer na segunda metade do ciclo ou nos primeiros dias de um “atraso menstrual”. Quantas vezes já ouvi mulheres de todas as ideologias e credos dizerem “que alívio!” quando este atraso se resolve assim, espontaneamente. Claro que ninguém pensa que se perdeu uma vida, e seria artificial pensá-lo. Tudo isto faz parte da complexidade da reprodução animal e da reprodução humana. Como faz parte de todas as culturas humanas tentar domesticar o destino. Neste domesticar do destino está incluído o controlo da natalidade, seja preventivamente, seja interrompendo algo que não tem ainda significado de futuro e que não tem condições para ser futuro. Porque uma das competências que a espécie humana também procura adquirir é diminuir o sofrimento de cada pessoa.
Isabel do Carmo
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/portugal/port142.htm
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