segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Violência e resistências em Guantánamo

Durante um encontro com a chanceler alemã Angela Merkel, que considera que o campo de prisioneiros de Guantánamo «deve, a prazo, deixar de existir», o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, invocou a guerra antiterrorista para responder o seguinte: «A base de Guantánamo é necessária à protecção dos americanos». Detido nos Estados Unidos na sequência dos atentados do 11 de Setembro, nos quais não participou, Zacarias Moussaoui incorre na pena de morte. O seu processo começará no início de Março [1].

Das sufragistas inglesas em 1909 aos presos políticos das masmorras turcas em 1984, 1996 e 2000, passando por Gandhi em 1943 e 1948, Bobby Sands em 1981 [2], mas também pelos sem-papéis de Lille em 2004, a grave de fome continua a ser a arma da desobediência e do desafio a um poder autista e esmagador. Na base militar de Guantánamo, entre Fevereiro de 2002 e o fim de Setembro de 2005, várias dezenas, ou até centenas, daqueles que as autoridades norte-americanas denominam como «combatentes inimigos» desafiaram seis vezes os seus carcereiros do Pentágono.

Os primeiros movimentos de protesto por parte dos cerca de quinhentos detidos encerrados em Guantánamo ocorreram em Fevereiro de 2002, apenas algumas semanas depois de terem chegado os primeiros prisioneiros. Só conhecemos as grandes linhas das suas acções graças, nomeadamente, ao trabalho das associações americanas de defesa dos direitos humanos, que divulgam continuamente informações e análises que vêm completar as parcas declarações oficiais. Cite-se, por exemplo, associações como a Amnistia Internacional [3], a Human Rights Watch [4], a American Civil Liberties Union (ACLU) [5] ou o Center for Constitutional Rights (CCR) [6]. Estas estruturas denunciam simultaneamente os perigos que Guantánamo faz impender sobre as liberdades individuais em qualquer parte do mundo, a responsabilidade da administração Bush na utilização da tortura, a sua manipulação e falta de respeito pelo direito – americano e internacional –, o seu autoritarismo e gosto pelo segredo, bem como a impunidade de que parece beneficiar.

Antes de 27 de Fevereiro de 2002 terão ocorrido em Guantánamo duas greves de fome, que parece terem durado pouco tempo e terem sido levadas a cabo por uma minoria de detidos. Depois desta data as coisas devem ter adquirido uma outra dimensão, pois logo a seguir a administração militar reconheceu que 94 prisioneiros recusavam alimentar-se. Em meados de Março de 2002, três detidos foram alimentados à força. No início de Maio, os dois últimos grevistas foram também alimentados à força, após 63 dias de jejum, num caso, e 71 dias no outro. Em Dezembro de 2002 regista-se uma quarta greve que, de acordo com um detido de nacionalidade britânica que nela participou, durou seis semanas e foi iniciada porque um guarda atirou para o chão o Corão. As duas greves seguintes – a quinta e a sexta – são mais bem conhecidas: a primeira aconteceu entre 21 de Junho e 28 de Julho de 2005; a segunda de 8 de Agosto até ao fim de Setembro de 2005. Terão participado de forma maciça nestas duas movimentações todos os detidos do Campo 5, fechado a qualquer visitante.

De acordo com os advogados da firma Shearman & Sterling, presentes em Guantánamo no fim de Junho com o objectivo de se encontrarem com os clientes, as reivindicações dos detidos diziam respeito a todos os aspectos da vida no campo. As explicações apresentadas são as seguintes: «Queremos que a nossa religião seja respeitada (...); queremos processos justos e advogados; queremos alimentos suficientes e água que não esteja suja (...); queremos ver a luz do Sol (...); queremos saber por que razão estamos há tanto tempo no Campo 5, desde há mais de um ano em alguns casos (...); queremos cuidados médicos (...); devemos poder contactar com as nossas famílias, escrever-lhes e receber as suas cartas (...); todos devemos ser tratados da mesma forma (...). Exigimos uma comissão imparcial que investigue e torne publicamente conhecida a situação que prevalece em Guantánamo».

GREVISTAS DE FOME

A partir de 2 de Julho, os detidos jejuaram durante 26 dias consecutivos. Confrontado com a determinação dos grevistas, o Ministério da Defesa reconheceu algumas das faltas por eles denunciadas, nomeadamente as que se referiam à sua vida quotidiana. Começou a ser distribuída água mineral em garrafas, e as autoridades aceitaram a criação de um comité de detidos encarregado de negociar com o comando do campo as exigências dos prisioneiros, prometendo harmonizar as regras de detenção com as Convenções de Genebra.

Acreditando nestas promessas, a 28 de Julho os grevistas puseram fim ao movimento. No entanto, em meados de Agosto, depois de vários detidos terem sido espancados pelos membros da unidade especial Força de Reacção Extrema e de nenhuma das promessas ter sido realmente cumprida – incluindo as relativas à melhoria da alimentação e da qualidade da água –, o movimento ressurgiu, registando uma adesão ainda mais maciça. Todos os membros do Comité dos Detidos foram nessa altura colocados em isolamento. O advogado da CCR, Clive Stafford-Smith [7], que esteve em Guantánamo de 4 a 14 de Agosto, foi proibido de realizar qualquer tipo de encontro com o seu cliente, Hisham Sliti.

Segundo um outro detido, Binyam Mohammed, que se encontrou nessa mesma altura com o seu advogado, «nós só pedimos justiça: tratem-nos como previsto pelas regras das Convenções de Genebra aplicadas aos prisioneiros civis, e das duas uma: ou nos julgam equitativamente com base numa acusação criminal válida, ou nos libertam». Os grevistas parecem decididos a ir até ao fim. No fim de Agosto, apesar do silêncio das autoridades militares, os advogados dos detidos afirmaram que estavam a participar no movimento pelo menos 210 presos. A 2 de Setembro, um porta-voz do Ministério da Defesa confirmou a greve de fome, mas limitou a a 76 detidos. Anunciou ainda que nove grevistas tinham sido hospitalizados e alimentados à força.

Graças ao Freedom of Information Act (lei sobre a liberdade de informar), que permite a um detido pedir e ter acesso ao seu processo junto das agências de segurança do país [8], o CCR relata tentativas de suicídio colectivo que ocorreram pelo menos duas vezes. Durante os dezoito primeiros meses de funcionamento do campo, registaram-se 28 tentativas de suicídio, envolvendo dezoito pessoas. Em Agosto de 2003, numa mesma semana, mais de vinte prisioneiros tentaram enforcar-se nas suas celas; nenhum conseguiu. Num único dia, 22 de Agosto de 2003, registaram-se dez tentativas de suicídio. No entanto, no jargão médico militar dos médicos colocados em Guantánamo, uma tentativa deste tipo torna-se «um gesto destinado a atrair a atenção», levado a cabo por detidos «manipuladores com um comportamento prejudicial para si mesmos».

Será Guantánamo apenas um campo ou uma prisão militar, um lugar de desterro para detidos indesejáveis? Não se tratará antes de uma instituição totalitária, por não ter existência legal? O sentido do combate travado pelas organizações não governamentais (ONG) americanas perante os tribunais consiste em fazer com que seja reconhecida a aplicação da lei dos Estados Unidos e do direito nesta base localizada em território cubano, mas que desde 1902 pertence aos Estados Unidos. As ONG registaram o seu primeiro êxito a 28 de Junho de 2004, quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, no caso Rasul versus Bush, proferiu uma sentença favorável aos prisioneiros de Guantánamo, ao reconhecer a competência dos tribunais federais americanos para analisarem os recursos dos prisioneiros de nacionalidade estrangeira detidos na base militar. Não obstante, até agora esta decisão não foi aplicada pelas autoridades militares. Vários detidos, cuja identidade, nalguns casos, permanece desconhecida, não têm acesso aos serviços de um advogado [9]. Os prisioneiros foram subtraídos ao mundo do direito por uma administração Bush que pretende agir como muito bem entende, construindo o seu próprio modo de actuação fora de quaisquer constrangimentos democráticos legais, fora de qualquer tratado internacional.

Num comunicado de Abril de 2005 [10], a Amnistia Internacional utiliza aliás o termo «desaparecidos» para qualificar os detidos fantasmas. Engloba nesta classificação os detidos de Guantánamo e os cerca de quarenta que caíram nas mãos da CIA, não esquecendo também os que foram secretamente transferidos para países terceiros (entre 100 e 150) [11]. A organização de defesa dos direitos humanos utiliza igualmente os termos «execuções extrajudiciárias» para relatar o assassinato no Iémen, em Novembro de 2002, de seis presumíveis membros da Al-Qaeda, cujo automóvel foi atingido por um míssil [12]. Este sistema ilegal, cujos contornos ainda hoje conhecemos mal, assenta naturalmente no segredo: transportes secretos de detidos de um país para outro; voos secretos fretados pela CIA; detenção em segredo em bases militares americanas; tribunais militares que mantêm secretos os processos formados sobre os “combatentes inimigos”, recusando comunicar lhes, bem como aos seus advogados civis, o conteúdo dos mesmos, o que impede qualquer defesa eficaz; proibição de as Nações Unidas se deslocarem ao terreno e visitas muito enquadradas para os senadores americanos e os jornalistas.

Desaparecimentos, segredos, torturas, tribunais militares e execuções extrajudiciárias constituem métodos normalmente utilizados pelos regimes ditatoriais, mas são agora retomados por conta própria pela administração americana.

Apesar disso, a denúncia destes factos mobiliza muito pouco as opiniões públicas ocidentais que, depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001, se tornaram muito sensíveis às declarações dos seus governos, que usam com naturalidade uma linguagem “aterrorizante”. Neste sentido, em Guantánamo existiriam apenas talibãs e membros da Al-Qaeda ou associados desta; alguns destes “loucos de Deus” teriam abatido americanos no Afeganistão ou noutros lugares, ou então gostariam de o ter feito. Os detidos de Guantánamo nada mais seriam, assim, do que terroristas e assassinos que, por acções ou pensamentos, se teriam posto à parte do resto da espécie humana. O facto de eles permanecerem indefinidamente em cativeiro, sem nunca serem julgados, é percepcionado como um mal menor por opiniões públicas que aderem ao consenso repressivo e assimilam um discurso de medo quotidianamente destilado e sabiamente gerido pela Casa Branca quando quer ostentar a sua determinação. Perante tal situação, a denúncia da tortura e de Guantánamo continua a não ter consequências políticas, por não existir uma mobilização colectiva contra a existência desta instituição totalitária.


[1] Patrick Baudouin, Pena de morte para Zacarias Moussaoui?, Le monde diplomatique, Fevereiro de 2006.
[2] Entre 5 de Maio e 20 de Agosto de 1981, dez detidos da prisão de Maze, membros do Exército Republicano Irlandês (IRA) e do Exército Nacional de Libertação Irlandês (INLA), deixaram-se morrer de fome como forma de protesto contra a eliminação, por parte de Margaret Thatcher, do seu estatuto de prisioneiros políticos.
[3] Amnistia Internacional, Guantánamo and beyond: The continuing pursuit of unchecked executive power, Londres, 13 de Maio de 2005.
[4] Human Rights Watch, Still at risk: Diplomatic assurances no safeguard against torture, Nova Iorque, Abril de 2005.
[5] ACLU, Memo to interested persons on the civil liberties record of designate Michael Chertoff, Nova Iorque, 28 de Janeiro de 2005.
[6] Barbara Olshansky e Gitanjali Gutierrez, The Guantánamo prisoner hunger strikes and protests: February 2002 August 2005, Center for Constitutional Rights, Nova Iorque, 8 de Setembro de 2005. Este relatório forneceu-nos muitas informações utilizadas neste artigo.
[7] De nacionalidade inglesa, Stafford-Smith dedicou mais de vinte anos à defesa de condenados à morte no estado do Mississipi.
[8] O Freedom of Information Act resultou dos trabalhos da comissão presidida pelo senador democrata Frank Church em 1975. A comissão investigou as responsabilidades e as práticas das agências de segurança americanas, entre outros aspectos no que diz respeito ao papel da CIA no golpe de Estado do general Augusto Pinochet no Chile, a 11 de Setembro de 1973, ou à liquidação pelo FBI dos Black Panthers e dos seus militantes entre 1969 e 1971.
[9] Usufruem actualmente dos serviços de um advogado civil cerca de duzentos detidos; no entanto, segundo a Amnistia Internacional, só 74 deles tinham conseguido, em Abril de 2005, encontrar-se com o seu defensor.
[10] AMR 51/064/2005, 28 de Abril de 2005.
[11] Amnistia Internacional, relatório citado, p. 4.
[12] Ibid., p. 21, p. 27 e ss.
Marie-Agnès Combesque
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo215.htm

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