domingo, março 18, 2007

A Anormalidade Quotidiana

Se há argumento que pela repetição constante me irrita solenemente é o de “É normal, deixa estar, não vale a pena uma pessoa chatear-se…”. Porque, nas suas múltiplas variações desde a justificação complacente da mãe que acha que não há problema que o filho consuma substâncias ilícitas no recinto escolar (é normal, é coisa da idade...) às pessoas que acham estranho que eu me insurja por alguém, no exercício normal das suas funções não cumprir devidamente as suas obrigações (o que queres, com o que lhe pagam e como isto anda é normal…), a anormalidade parece tornar-se normal e as excepções transformarem-se em regra.
Então se for acrescentada a pitada final do “deixa estar, a vida são dois dias, não vale a pena irritarmo-nos com isso…” é ver-me a entrar na estratosfera e a disparar mísseis balísticos. É normal? A vida são dois dias? E depois? Acertar também não é normal? Cumprir medianamente as suas obrigações? Ser honesto nas suas práticas? respeitar o próximo? E se a vida são só dois dias, então façam-me o favor de não me chatear nesses tais dois dias. Não será mais fácil tentarmos fazer o que nos compete, errando apenas quando não pode deixar de ser, e não como regra nascida da resignação ao disparate?
É verdade que por vezes aparento uma irascibilidade incontida perante aquelas pequenas (a)normalidades diárias que muitos deixam passar com se fossem detalhes. Não, não gosto que desrespeitem as regras da prioridade nos cruzamentos e ainda achem que eu é que faço mal em protestar, não, não gosto que se enganem sistematicamente a processar os meus impostos e me obriguem anos a fio a perder tempo e dinheiro a demonstrar que, não, não fui eu que me esqueci de preencher o anexo 109862, não não gosto de ver criancinhas conduzidas pelos familiares do lado exterior dos passeios junto a estradas movimentadas, não, não gosto que colegas de trabalho fujam à verdade e depois digam que são só detalhes e não vale a pena ligar às palavras, não, não gosto de ver pontapés brutais na equidade e transparência com que os órgãos de comunicação social tratam certos assuntos, não, não gosto que a regra seja a autodesculpabilização a oscilar entre o sorriso cínico, para ver se a coisa fica por ali, e a apoplexia malcriada, quando eu não deixo as coisas por ali.
Há quem diga que, com o meu ritmo cardíaco já de si naturalmente elevado, assim só encurto a minha vida, mas meus caros, a esta altura do campeonato, frankly I don’t give a damn. Estou cansado da anormalidade ser normal e que depois me filosofem, ao cêntimo o cliché, questionando sobre “o que é o normal?“, ou que “errar é desumano?” à moda de um comentador intermitente aqui do Umbigo.
Não me venham com pós-modernismo da treta. Normal é fazermos as coisas de modo a não prejudicarmos o próximo de forma negligente e cumprirmos as nossas obrigações até ao momento em que, achando que são excessivas, passemos para outro modo de vida. Errar é humano, claro, quantas vezes eu errei e pedi desculpa por isso. Só que acertar também é.
Mas normal não é certamente a mãe que desculpa os comprimidinhos coloridos do filho com os seus charros do passado. Ou o esquecimento de obrigações com um encolher de ombros. Ou o ministro que deseja fazer passar o Algarve a Allgarve para inglês ver (obrigado pela referência à Maria Lisboa, sendo que o assunto também aparece hoje no caderno de Economia do Expresso). Ou aqueles pequenos nadas que nos enfernizam e dificultam a vida e estão na base daquele ser português, que quase todos criticamos no geral, mas acabamos por tolerar no concreto.
E para terminar, em modo de rodapé exemplar, um caso com perto de 15 anos. Em 1992 acompanhei um grupo de alunos premiados pelo seu desempenho numa visita à Expo 92 de Sevilha, iniciativa promovida por um Grupo de Trabalho do ME de que eu era colaborador externo. Eu e dois colegas éramos responsáveis pelos miúdos e miúdas, todos na casa dos 16-16 anos, uma dúzia deles. O resto da visita era composto por pessoas do ME e, claro, alguns familiares. Aquela que era a nossa futura coordenadora aproveitou para obviamente levar o seu rico filhinho, que de mérito tinha coisa pouca. Indo pernoitar à Pousada da Juventude de Alcoutim, ali defronte para o rio, com San Lucar à espreita, o panorama era idílico. Claro que era. Muito mais para adolescentes. O filhinho querido da dita responsável começou a tentar fazer o seu “engate” para passar a noite junto ao rio com uma das miúdas. Apercebi-me disso e comuniquei à mãe o facto, que seria de evitar para não existirem problemas posteriores. Qual foi a resposta? Levei uma reprimenda, que não tinha nada com isso e se, por acaso, no meu tempo também não tinha feito coisas daquelas (não, no meu tempo não houve Expos e muito menos visitas oferecidas à conta das boas notas e ou de se ser filhinho da mamã). Que aquilo era normal. Normal?
Está bem. Então também foi normal que eu passasse o resto do serão colado ao dito galarote. No meu turno, não, não há cá normalidades dessas. Não por questões de moral, mas sim de ética. Que a diferença, não sendo abissal, pode ser relevante. Afinal, se algo corresse mal, quem era o responsável pelo acompanhamento do(a)s jovens? A dita senhora passou a dedicar-me um ódio de estimação que durou dois anos e ainda hoje não sei como resisti esse tempo sem ser posto a andar da lista de colaboradores do tal Grupo de Trabalho. Ou melhor, até sei, porque o caso veio a saber-se mais acima e, afinal, não era só eu a considerar pouco normal que aquela iniciativa se destinasse ao desenvolvimento dos afectos do filhinho da dita senhora. Que, diga-se de passagem e apesar de licenciada em História, achava normal localizar a Revolução Industrial na América oitocentista e estava convencida que o padrão dos Descobrimentos que hoje vemos ali está desde 1940 e da Exposição do Mundo Português. E que, quando lhe tentassem corrigir os erros disparatados que debitava em público, encolhia os ombros com um “isso é tudo o mesmo”, mais outra daquelas cerejas que me fazem logo entornar o bolo.
E pronto, lá descarreguei mais umas gotinhas de bílis… Já posso ir passear mais descansado. E até talvez sorria ao condutor do próximo jipe que me cortar o caminho, só porque vai agarradinho ao telemóvel, porque é normal, e com as mãos ocupadas não deu para parar.

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