sexta-feira, março 02, 2007

As eleições francesas – um panorama sombrio

Apresentar a França como um país decadente e despejar criticas sobre o seu povo e simultaneamente enaltecer o dinamismo da Espanha e a criatividade da sua burguesia tornou-se quase dever de rotina para os analistas da média portugueses.

Essa cantilena, que repete sem originalidade a de Bush e da extrema-direita dos EUA, deturpa grosseiramente a realidade.

A direita, em Washington como em Portugal, não perdoa à França ter-se oposto no Conselho de Segurança, em 2004, à guerra de agressão contra o Iraque e sobretudo haver dito NÃO à chamada Constituição Europeia, congelando um projecto que institucionalizava o capitalismo na UE.

Essas acontecimentos positivos não alteraram obviamente o rumo da política reaccionária do governo francês, mas evidenciaram que na Pátria de Robespierre a classe dominante enfrenta maiores dificuldades do que noutros países europeus para impor discricionariamente a sua vontade. Em Março e Abril do ano passado a mobilização popular contra uma lei que iria agravar o desemprego entre a juventude atingiu tal magnitude que o governo foi obrigado a revogar esse diploma, já aprovado pelo Parlamento e a promulgado pelo Presidente Chirac.

Por muito que isso desagrade a Bush e Cia Lda, o povo da França, frente à actual crise de civilização, não se deixa manipular com a facilidade do norte-americano. O peso do país na UE é obviamente muito superior ao da Espanha, onde as Cortes, sob a pressão do social-democrata-liberal Zapatero, aprovaram por ampla maioria a Constituição Europeia.

Neste contexto as eleições de Abril assumem uma importância que não deve ser subestimada.

A situação é tanto mais preocupante quanto o desfecho será mau, qualquer que seja o eleito.

O número elevado de candidatos impressiona pela quantidade. A maioria aproveita a oportunidade para se exibir e ocupar algum espaço na comunicação social. Mas apenas dois, Segolène Royal pelo PS e Nicolás Sarkozy pela União para o Movimento Popular (UMP), têm possibilidades de chegar ao Eliseu. Excluindo os folclóricos, aparecem na corrida cinco candidatos cuja soma de votos, considerável, impedirá que em 22 de Abril o vencedor obtenha maioria absoluta, tornando inevitável uma segunda volta.

Durante meses as sondagens atribuíram vantagem a Sarkozy, mas as últimas apontam para um empate técnico. O resultado, quando se enfrentarem a dois, dependerá de factores por ora imprevisíveis, inseparáveis da distribuição dos votos dos candidatos eliminados.

Sarkozy conseguiu impor-se a uma direita oficial, dividida. Emerge nela como o representante das forças mais obscurantistas. Diz-se gaullista, como Chirac e Villepin, mas as relações que mantém com ambos são péssimas. Um dos absurdos da actual campanha é precisamente a atmosfera de hostilidade existente entre Sarkozy e o presidente e o primeiro-ministro, membros do mesmo partido. O semanário Le Canard Enchainé tem divulgado comentários insultuosos do chefe do Estado e Villepin sobre o candidato da UMP e opiniões deste igualmente ofensivas sobre ambos. Ninguem desmentiu. Nos corredores dos Conselhos de Ministros em que Sarkozy participa como responsável pela pasta do Interior a troca de palavras impublicáveis é também frequente. Mas a relação de forças no maior partido da direita é tão complexa que Chirac não ousou demitir o ministro que lhe critica a politica e se comporta como adversário.

Descendente de uma família da aristocracia húngara, Sarkozy ganhou notoriedade pelo seu estilo arrogante, pela vocação repressiva e por assumir desde a juventude atitudes racistas.

Durante a vaga de violência que principiou em bairros degradados dos subúrbios de Paris e se estendeu depois a quase toda a França, alarmando o governo e a classe dominante, Sarkozy exibiu como ministro o papel do duro, «defensor da ordem», usando uma linguagem profundamente reaccionária. Ganhou e perdeu apoios.

Cultiva um género de populismo atípico que confunde amplos sectores do eleitorado. Orador hábil, adoptou durante a campanha um discurso diferente do anterior. Renunciou a tratar o tema da imigração na perspectiva do nacionalismo exacerbado e quando se dirige aos excluídos dos subúrbios a mensagem, demagógica, é agora, outra. Substituiu as ameaças por promessas.

Empenhado em atrair cidadãos que votam tradicionalmente no PS, não hesita em afirmar-se identificado com aspectos do pensamento de personalidades tutelares da esquerda como Jaurès e Leon Blum. Cito o facto por ser revelador de um descaramento demagógico sem limites.

Existe a certeza de que, se instalado na Presidência, Sarkozy optaria por uma politica pro-americana no tocante aos grandes problemas do mundo contemporâneo. Já o comunicou aliás a Bush. Seria na Europa, depois de Blair, o melhor aliado dos EUA.

Mas nas suas intervenções tem-se abstido sistematicamente de abordar com um mínimo de seriedade temas tão fundamentais como a guerra no Iraque, a presença militar francesa no Afeganistão, a situação criada pela agressão de Israel ao Líbano e ao povo palestiniano, a estratégia francesa na União Europeia. A atenção dedicada aos assuntos internacionais é mínima.

Relativamente aos grandes problemas da sociedade francesa a sua atitude é similar. Sarcozy prefere concentrar o seu discurso de campanha no confronto pessoal com a candidata socialista. Mas o debate é desviado do campo das ideias, de questões que condicionam o futuro do país e, de certa forma, da humanidade para o ataque à adversária. Falar do desemprego, dos despedimentos, da Segurança Social, da deslocalização para outros países de grandes empresas, de privatizações é incómodo para ambos.

Ségolène entra obviamente no jogo. Ao discurso político responsável que seria de esperar de uma aspirante à Presidência da Republica prefere o duelo verbal, a resposta a fofocas da imprensa, a denuncia dos podres do adversários bonita e elegante.

Por acordo tácito entre ambos, a campanha avança assim num nível baixo.

Tão baixo que o eterno candidato da ultra-direita, Le Pen, politico experiente, consegue nas entrevistas da televisão ser o menos mau. É provável que ultrapasse outro candidato da direita, François Bayrou, que afirma ser do «centro», mas é profundamente reaccionário.

Marie George Buffet, secretária nacional do Partido Comunista Francês, espera ultrapassar a votação que o seu camarada Robert Hue obteve na primeira volta das presidenciais anteriores. Mas não é candidata pelo PCF. Foi lançada por um Movimento formado had hoc por forças progressistas, a Esquerda Popular e Antiliberal, e tão heterogéneo que alguns dos seus elementos não ocultam o seu anticomunismo. Marie George não se apresenta assim como dirigente comunista e declarou que qualquer que seja o rumo da campanha de Ségolène, apelará ao voto na candidata do PS na segunda volta, afirmação que causou mal estar em muitas Federações dos PCF. Isso porque o programa e o discurso de Segolène são ostensivamente reaccionários.

Joseph Bové faz muito barulho, mas não conseguiu sequer atrair o apoio maciço das organizações camponesas.

A candidatura trotskista alcançou menos visibilidade do que a anterior.

Obviamente, a distribuição dos votos dos candidatos que não passarão à segunda volta será decisiva no confronto final de Ségolène com Sarcozy.

Perante o quadro existente, a maioria dos analistas admite que o actual líder da UMF, se a lógica funcionar, está melhor colocado para vencer do que uma socialista que, na realidade, defende também o neoliberalismo, portanto o capitalismo.

Um factor inesperado pode, entretanto favorecer Madame Royal, como lhe chamam alguns jornais.

A grande burguesia francesa teme que Sarkozy, se for eleito, inaugure na Presidência um estilo autoritário, de desrespeito por direitos dos trabalhadores, o que provocaria inevitavelmente forte resistência popular. Ora o grande patronato não quer ver as massas na rua. O precedente do ano passado não foi esquecido.

Em contrapartida, os senhores do capital identificam em Segoléne uma aliada segura e inofensiva.

Uma certeza, qualquer que seja o futuro Presidente da França, Nicolas Sarkozy ou Ségolène Royal, as perspectivas são sombrias, porque ambos são firmes adeptos de politicas neoliberais. No plano internacional ele e ela situam-se à direita de Chirac; defendem uma cooperação mais íntima com Washington, o que significa uma maior vassalagem da França perante a estratégia de dominação do imperialismo estado-unidense.

A França continuará nos próximos anos a ser governada pela direita. Não é motivo para surpresa. Isso acontece hoje em quase toda a Europa.

Mas as generalizações pessimistas podem levar a conclusões falsas.

A UE é uma soma de estados nacionais com vocação federativa, mas económica e culturalmente separados em alguns casos por diferenças abissais.

O povo francês realizou no final do século XVIII uma grande revolução que marcou decisivamente o rumo da história. E voltou, com a saga da Comuna, a ser sujeito de outra que anunciou o desafio do comunismo ao império do capital.

Essas revoluções deixaram ali sementes que não morreram.

A França é hoje um dos países capitalistas mais desenvolvidos e ricos do mundo. O sistema entrou numa crise estrutural para a qual não existe desta vez saída salvadora. Mas a sua desagregação não tem data no calendário e o desfecho dependerá fundamentalmente do crash final nos EUA, pulmão e motor do imperialismo.

Aquilo a que os neoliberais chamam «os anos gloriosos» do capitalismo europeu após a segunda guerra encobre realidades incómodas para as classes dominantes, empenhadas em reescrever a história de acordo com os seus interesses. A grande vitória alcançada pela URSS contra o «invencível exército alemão» deu ao país dos Sovietes um enorme prestigio no Ocidente. Finda a guerra, as lutas dos trabalhadores que se haviam batido contra o fascismo assumiram uma amplitude que assustou as burguesias nacionais. Um grande medo de que essas lutas fossem o prólogo de situações revolucionárias invadiu a Europa capitalista. Então, um conjunto de factores simultâneos contribuiu para a mudança do mapa social do Ocidente. Não houve concessões, mas sim conquistas das massas.

Mas é evidente que a humanização da vida, uma melhora sensível das condições materiais dos trabalhadores e a ofensiva para desarticular os sindicatos contribuíram dialecticamente para uma quebra drástica do espírito de luta da classe operária em todo o Continente.

A exploração persistiu, mas sob formas suavizadas. A ditadura do capital sob o trabalho manteve-se, mas na Europa desenvolvida passou a ser muito mais difícil mobilizar as massas para lutar contra o sistema responsável pela injustiça social.

Mesmo neste início do século XXI, quando essa injustiça se agrava a cada ano, após o desaparecimento da União Soviética, a França aparece como o paraíso no imaginário de milhares de candidatos a emigrantes da Europa Oriental e da Africa.

Na América Latina, onde a implantação brutal do neoliberalismo na sua versão imperial produziu efeitos devastadores, lançando na miséria dezenas de milhões de trabalhadores, a resposta dos povos contra as ditaduras da burguesia é globalmente positiva, embora o desfecho das mudanças em curso seja imprevisível.

Em França a esperança da revolução surge transferida para um futuro remoto. As instituições criadas pela burguesia funcionam em benefício do seu projecto. Mas a classe dominante tem consciência de que num moderno estado capitalista as engrenagens do sistema devem ser programadas de modo a evitar situações de opressão susceptíveis de provocar explosões de descontentamento social.

Passei agora uma semana em Paris. Impressionou-me verificar que o Estado burguês funciona ali com eficácia, não obstante o povo pagar a factura de um sistema em crise. Os meios de comunicação social – imprensa, televisão e rádio – a serviço da direita esforçam-se por cumprir a sua tarefa de desinformação e manipulação da opinião pública. Apenas se diferenciam dos portugueses porque os quadros são ali mais cultos e preparados do que os da burguesia lusitana.

Foi, entretanto, gratificante, verificar que o nível do debate político no âmbito das forças progressistas reflecte em França a herança cultural de um grande povo. Numa conferência do sociólogo belga François Houtart sobre a América Latina – estavam na mesa Samir Amin e Remy Herrera – a participação da assistência, ao longo de duas horas, foi intensa, deixando transparecer não somente a condenação frontal do imperialismo como a solidariedade com os processos de ruptura com o capitalismo em curso na região.

Não serão hoje muito numerosos os intelectuais revolucionários de grande qualidade em França. Mas o punhado existente, de Labica a Gastaud e Henri Alleg, chama a atenção.

A criatividade dos pensadores marxistas franceses fascina. Li agora um pequeno livro de Jean Salem – Lénine et la révolution – que, pelo que diz e pelo convite à reflexão sobre a Historia profunda, deveria ser lido pelos comunistas de todo o mundo. Numa centena de paginas, o autor, professor de filosofia grega na Sorbonne (é filho do escritor Henri Alleg), recorre a Seis Teses de Lenine, que seleccionou das Obras Completas de Vladimir Ilitch, para desmontar o bombardeamento mediático que falsifica a Historia e iluminar brilhantemente a actualidade da sua mensagem revolucionaria carregada de lições no campo da teoria e da acção.

Livros como o de Jean Salem fortalecem a confiança dos comunistas no futuro. Ajudam a preparar as grandes lutas que se esboçam no horizonte.
Miguel Urbano Rodrigues

http://resistir.info/

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