é um termo ambíguo. É a atitude de aceitar algo como verdade, como quando creio que não está a chover. Mas é também recusar que algo possa ser falso, como na fé religiosa. E além de ser ambíguo por vezes é mal aplicado. A crença é apenas a atitude de quem crê, é a forma subjectiva de se colocar perante uma hipótese. Por si só, a atitude não indica a veracidade da hipótese. Daqui resulta uma confusão entre crença e conhecimento, como exemplificou um comentador anónimo neste blog:
«deve perceber que interpretações das intenções de Jesus, feitas por alguém que não acredita na ressurreição interessam-me tanto como uma aula de português dada por um analfabeto»
É verdade que quem sabe também crê. Se sei que o teatro está a arder, necessariamente acredito que o teatro está a arder. Seria contraditório dizer que sei algo em que não acredito. A crença é parte essencial do conhecimento, e quem sabe ler acredita que sabe ler. Mas esta é a crença no sentido de aceitar algo como verdade. A outra crença, a atitude de recusar que algo possa ser falso, impede o conhecimento. Por um lado porque encurrala o crente. Por outro lado porque saber é mais que a atitude de crer. É crer em algo que é verdade (senão é engano), e pelas razões certas (senão é adivinha, e não saber). Como as razões que fundamentam uma crença são sempre falíveis nunca justificam uma crença definitiva e irrefutável. Ninguém passa a saber ler só por acreditar que sabe, por muito convicto que seja. E é melhor uma aula de Português dada por um analfabeto ciente das suas limitações que por um analfabeto convencido que sabe ler. Mas saber ler é algo que podemos testar, e podemos determinar quem sabe e quem não sabe de uma forma independente da crença de cada um.
Esta possibilidade de verificação independente é a barreira entre a crença e o conhecimento, uma barreira que a religião ultrapassa criando um domínio onde a verificação é impossível. Os mafaguinhos. Se eu disser que sei muito sobre mafaguinhos, ninguém pode testar o meu alegado conhecimento. Assim é mais fácil vender a ideia que a fé nos mafaguinhos fundamenta a sabedoria neste campo. Torno-me um mafagólogo em virtude da minha crença inabalável nos mafaguinhos. O que eu sei é a Verdade Revelada do Mistério Mafaguinhico, e outras tretas que tais.
Deuses, santos, milagres, a trindade que é três em um, as orações e outros mafaguinhos formam um domínio auto-contido de ideias vagas onde a religião vende fé como sabedoria. A sabedoria devia ser a crença na verdade, mas com mafaguinhos não se distingue o verdadeiro do falso. A sabedoria devia assentar nas razões certas, mas os mafaguinhos estão isolados de qualquer razão. Os mafaguinhos são postulados gratuitamente. A hóstia transforma-se no sangue de Cristo porque sim, não porque tenha outro gosto ou textura. O baptismo é importante porque é, não porque o bebé note alguma coisa de especial. A alma existe porque dizemos que existe, sem qualquer razão para o afirmar.
Esta técnica tem dois efeitos nefastos. Cria a ilusão que a doutrina religiosa é conhecimento. Chamam-lhe verdade, saber, Revelação. Mas por muito que os padres e teólogos saibam acerca dos livros que outros padres e teólogos escreveram, sabem tanto acerca dos deuses (ou mafaguinhos) como eu ou qualquer outra pessoa.
Pior ainda, como no exemplo que citei, dificulta aos crentes a distinção entre o que sabem e o que acreditam. E isso é perigoso para eles e para todos. Não era até recentemente, quando o conhecimento era prático, imediato, e quase inconsequente. Um lavrador medieval ou um mineiro no século XVII não tinham muito a perder por confundir conhecimento com crença. Mas nós temos. Individualmente temos mais escolhas e mais possibilidades de decidir o nosso futuro. E colectivamente as nossas escolhas criam ou resolvem problemas que afectam muitos outros. Problemas ambientais, económicos, políticos. Hoje em dia, confundir crença com conhecimento não é apenas disparate. É uma irresponsabilidade perigosa.
Por Ludwig Krippahl
http://ktreta.blogspot.com/
Sem comentários:
Enviar um comentário