Nada de esperanças que isto não é texto de profundo ensaio, com a fórmula dourada que finalmente desvendará qualquer Graal até agora oculto a gente bem mais desempoeirada e diplomada do que eu. São apenas alinhavos.
O fenómeno educativo, sob esta ou aquela fórmula organizacional, mantém uma essência quase imutável de há muitos milhares de anos para cá, a qual me parece ser bastante simples e que passa por duas vertentes essenciais:
• A transmissão geracional (e também horizontal no caso de novas experiências bem sucedidas) de saberes, que por comodidade definiremos como “técnicos”, indispensáveis para a sobrevivência da espécie, para além do que seja “instinto” ou conhecimento “inato” (sei que esta última questão não é pacífica, mas esqueçam isso por agora…). No fundo começou em questões tão elementares como a melhor forma de obter alimentos sem apanhar valentes problemas gastro-intestinais a cada refeição, de fugir de animais de porte e hábitos menos amistosos, de observação dos astros para determinar a época do ano e tudo por aí abaixo. No fundo, a preparação para o Trabalho.
• A transmissão, também naturalmente geracional, de um conjunto de elementos “ideológicos”, a que de início designamos como “míticos”, sobre a origem e identidade do grupo em que os indivíduos nasceram e foram criados. É o aspecto da Educação que visa socializar o indivíduo nos hábitos, tradições e projectos do grupo alargado a que pertence ou a que é suposto pertencer. E é por aqui que passa o nascimento do que de forma assumidamente simplista eu designarei como Cultura.
Desde há não sei quantos anos antes de Cristo, Marx e Zarastrusta, o fenómeno educativo passou por aqui, apenas se tendo transformado progressivamente a forma como se processou, deslocando-se gradualmente da “família” para a “sociedade” e finalmente para o “Estado”. De início a transmissão de saberes e competências, sendo restrita para os nossos padrões e porque envolvia umpequeno número de indivíduos, era possível no ambiente de um grupo reduzido. Com o crescimento dos grupos humanos, a complexificação das relações e funções no seu seio, a Educação foi-se deslocando progressivamente para uma esfera “especializada”.
Seria entediante tentar demonstrar como isso se processou desde o tempo das civilizações anteriores à escrita até ao advento das sociedades industriais que conhecemos há 200 anos. Interessa apenas reter que, para mim, a Educação sempre permaneceu condicionada por dois factores que são a necessidade de assegurar a sobrevivência e daí a preparação para o mundo do Trabalho e a necessidade de criação de um sedimento social ou identidade para os grupos humanos e daí a exigência de transmissão do que, num sentido algo restrito, poderemos considerar Cultura.
Após períodos em que as duas variantes do fenómeno educativo se afastaram (caso da Idade Média) e se mantiveram de acordo com lógicas fragmentárias localizadas e regionalizadas, o conflito entre estas duas tendências agudizou-se quando o Estado decidiu erguer sistemas de ensino de massas, nacionais, visando a homogeneização da formação dos cidadãos e foi necessário conjugar uma preparação “técnica” com uma formação “humanista” nos currículos.
Há 200 anos que se discute o peso e a importância relativa de cada uma destas componentes nos currículos, o momento em que os indivíduos devem ser introduzidos em diversas das matérias ligadas a cada uma delas, quando é necessário optar por uma ou outra, etc, etc, etc.
Muito do que se discute de forma recorrente, não sendo estéril ou desnecessário, não passa da consequência de algo que acho por demais evidente: a Educação não pode fugir muito a nenhuma dessas duas suas facetas.
Desligar a Educação da formação para o mundo do trabalho - alegando que isso é reduzir os indivíduos a peças incaracterísticas de um sistema que as usa de forma descartável ou a meres seres-máquina, quais antigos homo faber - é atractivo para certas tendências de pensamento, mas é claramente algo distópico mais do que utópico. Queria ver depois o ar de certos defensosres do puro humanismo educativo se quando o computador avariasse e a net fosse abaixo e não existissem simpáticos trabalhadores competentes para colocar tudo a funcionar de novo… É uma caricatura, mas válida.
Mas desligar a Educação da sua componente mais teórica, humanista, cultural, whatever, seja em nome da não transmissão de um sistema de valores homogeneizadores que anula a capacidade crítica indidividual ou em nome da denecessidade de tal formação para o mundo tecnológico contemporâneo, é dar um passo em relação ao abismo da atomização da sociedade e para a destruição de quaisquer laços de coesão social (nacional ou outra).
Qualquer das atitudes está errada por ser edutora. A Educação precisa de manter essas duas perspectivas, para o bem de todos nós, individualmente e como grupo mais ou menos alargado. O equilíbrio é instável, por vezes existem balanceamentos qu fazem pender demasiado a balança para um dos lados, mas mais tarde ou mais cedo dá-se um necessário reequilíbrio.
Quanto ao aspecto ideológico da Educação, queria deixar aqui apenas um pensamento simples: em nenhum momento a Educação não foi uma transmissão de conhecimentos com um enquadramento ideológico qualquer. Platão não era um mestre neutro, ele transmitia os seus valores com os seus ensinamentos, sendo que a sua mensagem era fortemente política. Numa oficina medieval, a aprendizagem técnica de um aprendiz de ferreiro ou tecelão ia acompanhada de todo um leque de pressupostos sobre a organização da sociedade envolvente. Mesmo numa qualquer idílica sociedade nómada perdida nos confins de uma selva imaginária, a transmissão de conhecimentos faz-se sempre com base em pressupostos que correspondem a um aparato ideológico mais ou menos complexo.
É inútil procurar no passado ou futuro uma sociedade em que a Educação seja completamente desideologizada - pois mesmo o apelo à neutralidade é uma forma de ideologia como o meu amigo António sempre me afirma quando discutimos a Esciola Pública. Isso seria negar quase por completo a sua natureza.
O problema é que há quem, talvez por deficiente formação ou por uma educação amputada ou distorcida, pense que é possível educar sem que alguma ideologia esteja envolvida ou que o essencial passa por uma transmissão de meros saberes técnicos.
Sei que estamos a atravessar um período em que esta visão cinzenta da Educação parece predominar. O conhecimento da História (talvez por isso seja, com a Filosofia, cada vez mas mal amada pelos transitórios senhores dos tempos) ajuda-nos, porém, a saber que é uma fase passageira como tantas outras que pareceram nos seus tempos bem mais dramáticas. Isto não é um apelo à resignação. Pelo contrário, é um encorajamento à resistência e à acção para acelerar a modificação deste estado de coisas. Mas sem ilusões quanto ao facto da Educação poder vir a ser algum dia “pura”. Isso seria o pior de tudo.
É pela sua impureza que a Educação se constitui como instrumento essencial de Progresso e não meramente de Conservação. A pérola nasce de um simples grão de areia.
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