domingo, março 18, 2007

“Einstein foi mau aluno” - uma mentira conveniente

Seria bom que o Ano Internacional da Física, o centenário do annus mirabilis de Albert Einstein (2005) tivesse servido, pelo menos, para dissipar algumas ideias que, por razões sobre as quais será interessante reflectir, «pegaram» e continuam a ser reproduzidas, por espírito cabotino ou com propósitos nada inocentes, por sucessivos ignorantes das peripécias da vida do grande físico. Um exemplo é a insistência numa suposta afirmação de Einstein segundo a qual a generalidade das pessoas usaria apenas 10% do seu cérebro. Einstein disse de facto isto, mas em resposta, num raro momento de sarcasmo, a um entrevistador particularmente obtuso que se saiu com a seguinte pergunta cretina: “Professor Einstein, porque é que só o senhor compreende a Relatividade?”

O que Einstein pretenderia salientar seria, seguramente, o facto de muitas pessoas – como o entrevistador – usarem pouco a inteligência que têm, e não de modo algum que entendesse haver no cérebro humano qualquer parte ignorada, sede de capacidades e poderes «extra-sensoriais». Infelizmente, a fina ironia perdeu-se e sobreviveu só o mito urbano.

Um outro mito patético mas particularmente perigoso nos dias de hoje é o tão repetido slogan – falso! Falso! FALSO!– de que «Einstein foi mau aluno».

De facto o que se pretende transmitir com essa afirmação, errada, como veremos? Pretender-se-á dizer que os pais, os professores, as escolas, não devem preocupar-se com os meninos que não sabem nada, não estudam nada e dão respostas idiotas a tudo, porque esse comportamento não impedirá que possam ser «génios» como Einstein? Pretender-se-á dizer que ninguém deve reprovar?

Num belo livro, O Cosmos de Einstein, o reputado físico Michio Kaku escreve: «Ao contrário do que conta o mito, Einstein foi bom aluno na escola, mas só era bom nas áreas que lhe interessavam, tais como matemática e ciências. O sistema escolar alemão encorajava os alunos a darem respostas curtas baseadas na memorização – de outra forma, poderiam ser punidos com palmadas dolorosas nos nós dos dedos. O jovem Albert, contudo, falava devagar e hesitantemente, escolhendo as palavras com cuidado. […] Desgastava-se sob um sistema sufocante e autoritário, que esmagava a criatividade e a imaginação […].

Percebe-se a «animosidade» positiva que alguém tão dotado como Einstein sentiria por uma escola que não correspondia à sua curiosidade e qualidades intelectuais e, pelo contrário, lhe impunha o estudo de disciplinas pelas quais não se sentia atraído e o desviavam das matérias e das questões que, já então, o apaixonavam. Compreende-se o constrangimento, o incómodo, que a profundidade com que abordava essas matérias e a atitude, entre o alheamento e a ironia que o distinguia causariam a alguns professores. Nada de muito diferente, aliás, do que lamentavelmente continua a verificar-se hoje com os melhores estudantes em muitas escolas portuguesas.

Continuando a citar Kaku: «O comportamento de Einstein definiu-se cedo. Era sonhador e perdia-se frequentemente nos seus pensamentos ou na leitura […]» Ouçamos Einstein: «Uma maravilha de uma natureza tal experimentei eu aos 4 ou 5 anos, quando o meu pai me mostrou uma agulha de bússola […] ainda me lembro […] que esta experiência provocou em mim uma impressão profunda e duradoura. Tinha de haver algo muito bem escondido por trás das coisas.»

Foi Talmud, um amigo mais velho que frequentava a casa da família, quem ofereceu a Einstein o famoso livro sobre geometria que ele devorava dia e noite. Chamou-lhe o seu «segundo milagre»: «Aos 12 anos de idade experimentei uma segunda maravilha, de uma natureza completamente diferente, num pequeno livro com a geometria plana de Euclides» […]». A matemática, registou a irmã Maja, tornou-se uma fonte de prazer inesgotável para Albert, especialmente se estivessem envolvidos enigmas e mistérios intrigantes, gabando-se de ter descoberto uma prova independente do teorema de Pitágoras sobre os triângulos rectângulos. Mau aluno?

Transcrevemos a seguir a informação autorizada de Abraham Pais (Einstein Viveu Aqui), o mais respeitado biógrafo de Einstein:

Aos 5 anos de idade Einstein recebeu a primeira instrução em casa, através de uma professora. Aos 7 anos entrou para a Volksschule, uma escola pública, onde se saiu muito bem. Em 1886 a mãe escrevia numa carta que o filho era «novamente o primeiro». Em 1888 foi para a escola secundária, para o Gymnasium Luitpold, onde mais uma vez se saiu bem. Quando, em 1894, a família se mudou para Milão, Albert ficou ao cuidado de uma família de Munique para poder continuar os estudos. Num esboço biográfico do irmão, concluído em 1924, Maja recorda que esta existência solitária deprimiu Einstein e tornou-o nervoso. Por isso, meio ano depois abandonou a escola, por iniciativa própria, e juntou-se à família em Itália. Contudo, estava determinado a continuar os preparativos para a admissão à universidade, o que fez estudando sozinho.

Em Outubro de 1895 Einstein fez, com permissão especial – era dois anos mais novo do que a idade de admissão mínima –, o exame de admissão ao Polytechnikum de Zurique, a partir de 1911 denominado Eidgenössisiche Technische Hochschule (ETH, Instituto Federal de Tecnologia). O exame abrangia matérias científicas (matemática, física e química) e matérias de cultura geral (história literária e política, alemão). Reprovou devido aos maus resultados obtidos nas últimas matérias. Este revés talvez tenha provocado a impressão muito difundida e errónea de que era mau aluno. Na verdade, nunca teve maus resultados em ciência – mas nunca gostou muito da escola.

Seguindo o conselho do director da ETH, Einstein passou o ano seguinte numa escola de Aarau, na Suíça, para terminar a instrução secundária. Em Setembro de 1896 passou no exame final da escola, o que lhe permitia entrar na universidade. Com excepção do francês, as notas eram excelentes em todas as disciplinas, especialmente em matemática, física, canto e música (violino). Em Outubro Einstein inscreveu-se, finalmente, na secção VIA do ETH, que proporcionava um curso de professor de física e matemática do ensino secundário. Era o elemento mais novo de um grupo de cinco que entraram para essa secção com apenas 17 anos.

É conveniente recordar que o ETH de Zurique se encontrava, no início do século XX, entre as cinco melhores instituições do mundo nas áreas das ciências exactas, com um nível científico comparável apenas a Göttingen, Oxford, Cambridge ou à École Polytechnique. As universidades americanas tinham um enorme atraso; ao contrário de hoje, eram os americanos que procuravam a Europa para estudarem ciência, situação que começaria a inverter-se no período entre as guerras.

Neste panorama, o ETH era, como hoje é, uma escola de excelência, da mais seleccionada elite, onde só eram admitidos os melhores estudantes do mundo. Dela saiu o primeiro Nobel da Física, Wilhelm Röntgen (1901). Desde então o ETH produziu mais de duas dezenas de prémios Nobel sobretudo nas áreas da física e da química, como Wolfgang Pauli, Peter Debye ou o próprio Einstein. Um século depois, o ETH continua a ser uma universidade de referência no plano científico – e a produzir prémios Nobel (o último dos quais, Kurt Würtrich, Nobel da Química em 2002).

Foi nesta escola, entre a nata da nata, que Einstein foi admitido para o curso mais exigente, em termos que hoje se descreveriam como aluno autoproposto, dois anos mais cedo do que o normal, sem possuir um percurso escolar formal usual.

Chumbou no exame de admissão, mas obteve um resultado tão excepcional em Matemática e Física que impressionou o reitor, Albin Herzog. Este prometeu admiti-lo no ano seguinte, sem que Albert tivesse de fazer novamente o temido exame.

Aos 16 anos de idade Einstein imaginou algo que desencadeou uma intuição que viria mais tarde a alterar o curso da história da humanidade: imaginou-se a correr ao lado de um feixe de luz e perguntou a si próprio qual seria o aspecto desse feixe.

Como pode alguém familiarizado com os caminhos da ciência considerar estes factos compatíveis com a fábula do "mau aluno" e, piada de salão de gosto duvidoso, ou argumento de concepções pedagógicas facilitistas, propagá-la publicamente?

Mais interessante e relevante do que repetir infundados lugares-comuns seria reflectir seriamente sobre a relação de Einstein com a escola. E mais relevante ainda seria aproveitar a oportunidade para pensar informadamente, objectivamente e não ideologicamente, a própria escola, a nossa escola, que põe em causa o progresso do país.
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