sábado, março 31, 2007

Entre silêncio e mito

A IKEA não se encontra cotada em Bolsa. Assim sendo, a empresa tem evoluído envolta num emaranhado jurídico que não passa pelo crivo de quem quer que seja. É impossível saber quem é proprietário do conceito IKEA, obter o detalhe das contas, um balanço consolidado, conhecer os activos e os investimentos da sociedade… A Stichting Ingka Foundation, na Holanda, detém nominalmente a sociedade anónima Ingka Holding, a qual agrupa todas as empresas da IKEA. Mas existe, sobretudo, a Inter IKEA Systems, que detém o “conceito ikeano”, tutelada pela Inter IKEA (Waterloo, Bélgica). Dominando a marca, a estrutura assegura assim a sua perenidade. Controla a imagem, os nomes, as normas que fazem com que uma IKEA chinesa em nada se distinga de uma IKEA americana ou kuwaitiana.

Quem dirige a inter IKEA Systems? E, por conseguinte, quem possui o conceito e os direitos de licença? Formalmente, é impossível dizer. Stellan Björk, um jornalista sueco que investigou o sistema, refere: «segundo se sabe, a Inter Ikea Systems pertence a diversas fundações e sociedades offshore, algumas das quais têm a sua sede nas Caraíbas» [1]. Dito de outra forma, nada se sabe… Mas a família Kamprad não deve andar muito longe.

Esta armação opaca ilustra bem a “transparência” de geometria variável de que se faz valer a empresa. Durante a sua campanha sobre a IKEA, a Oxfam Lojas do Mundo pediu autorização para “traçar” cinco produtos escolhidos conjuntamente com a direcção internacional. Um ano mais tarde, e apesar numerosos contactos, a resposta ainda não surgiu. No seu diálogo com a organização não governamental (ONG) belga, a IKEA nunca responde por escrito.

Como mencionado anteriormente [2], as auditorias “independentes” são na verdade realizadas por empresas que não estão autorizadas a fornecer quaisquer informações sobre as suas constatações e comentá las na praça pública. E quando, em Maio de 1998, foi assinado um acordo-quadro entre a multinacional e a International Federation of Building and Wood Workers (IFBWW) [3], ele comprometeu este sindicato, no caso de entorses sociais, a prevenir… a multinacional. Esta «estudará o caso e proporá medidas apropriadas» [4]. Nada passa para o exterior. Sempre na lógica de fechamento, nenhum empregado, na Bélgica, pôde responder às nossas questões. Não podem falar à imprensa.

Em contrapartida, quando os seus erros vêem a luz do dia, a IKEA comunica, imensamente. De acordo com um esquema, sempre idêntico: a empresa reconhece o erro, minimiza o caso, reage e apresenta “soluções”.

Desde a década de 1990, e em resposta aos ataques das organizações ambientais sobre a madeira, a IKEA estabeleceu laços com o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) e a Greenpeace. Quando é acusada de fazer trabalhar crianças, parcerias com a UNICEF e Save the Children são imaginadas. Sem fazer julgamentos prévios quanto à pertinência destes projectos, pode-se ainda assim fazer duas constatações: a política de IKEA em matéria ambiental e social é exclusivamente reactiva. Não se trata de compromissos “filantrópicos” (para quem ainda acredita neles), mas de salvar os negócios. Depois, essas colaborações nada garantem. Nenhuma das ONG “parceiras” controla a produção. Nenhuma delas efectua visitas aos fornecedores.

Nesta lógica de comunicação, a forma como a IKEA geriu o “maior fiasco” do fundador Ingvar Kamprad é particularmente reveladora. Em 1994, um jornal sueco preparava-se para revelar nove anos de amizade (entre 1941 e 1950) entre o patrão da IKEA, então jovem, e um líder sueco de extrema direita. Entre a espada e a parede, Kamprad admite o, recusando em seguida todas as ideias fascistas e racistas, verte uma lágrima na televisão sueca, envia a todos os colaboradores uma carta afirmando que «esta amizade era a coisa mais estúpida por que tinha passado na sua vida». Na sua biografia autorizada, acusa sem contenção o seu pai anti semita, antes de concluir: «Perguntei me frequentemente quando poderia finalmente um velho esperar ver absolvidos os seus pecados de juventude. Será um crime ter sido criado por uma avó e um pai alemães?» Revisitando o erro de um adulto de 24 anos, falando de «erro de juventude», de «desvarios políticos de criança e de adolescente», e de «miúdo» [5], desculpando-se abundantemente, Kamprad corresponde na perfeição à estratégia de comunicação IKEA. Ocupando o terreno da crítica, a multinacional monopoliza todas as versões do discurso sobre a empresa. Ainda que reinterpretando os factos…

De certa forma, esta revelação sobre o passado de Kamprad terá reforçado, ao extremo, uma imagem que a IKEA pretende dar do seu fundador. A de um ser sensível, acima de tudo susceptível de aperfeiçoamento e próximo do “povo”. E os episódios comoventes. Dos primeiros fósforos vendidos pela criança de 5 anos às “avarezas” do velho milionário que compara os preços dos postais, a comunicação da IKEA e do próprio Kamprad criou um personagem tremenda, impondo a mais ínfima economia ao mais modesto trabalhador da empresa. Estas histórias deleitam os meios de comunicação social. Ingvar trata por tu o pessoal, Ingvar conduz um velho automóvel, Ingvar espera pelo fecho do mercado para comprar legumes mais baratos, Ingvar viaja em classe económica para estar próximo do povo…

Acontece que o povo nunca teve dois Porsches aos 30 anos, não possui uma vinha de dezassete hectares, nem tem uma casa de quatrocentos e trinta e cinco metros quadrados na Suíça. Será realmente um eremita, este milionário? Pouco importam estas incoerências entre o discurso e a prática: muitos meios de comunicação social amam o mito IKEA.

Um exemplo entre outros: a entrevista que Kamprad concedeu em Março de 2006 ao programa “pardonnez moi” (à medida da IKEA…) da televisão suíça francófona. O jornalista não parece poupar o milionário no seu fentre a-frente. A célebre “parcimónia” é longamente tratada, ou mesmo estigmatizada («Viaja em classe económica? É necessário escrever nas duas faces do papel? Conduziu durante muito tempo um velho Volvo desconjuntado? Compra os vegetais no fim do mercado?»). O jornalista fala abertamente do passado nazi. Em suma, a entrevista quer-se cortês, mas directa. Missão cumprida? Em mais de dezoito minutos, nem uma questão sobre as cláusulas ambientais, as condições sociais e sindicais dos noventa mil empregados da IKEA e as centenas de milhares de trabalhadores nas empresas subcontratadas.

A agenda das perguntas foi dirigida pelo gigante do mobiliário. Sem impor nada. Autocriticando se, revelando falhas menores, a IKEA quer monopolizar todos os discursos sobre si, dos que a põem em causa aos que lhe tecem louvores. E prevenir simultaneamente qualquer derrapagem mediática deplorável para a empresa.

[1] Oliver Burkeman, “L’empire d’Almhult vous veut du bien”, dossier “IKEA: la secte mondiale du kit”, Courrier International, n.° 722, Paris, 2-8 de Setembro de 2004.
[2] Olivier Bailly, Jean-Marc Caudron e Denis Lambert, IKEA na Índia: emprego desmontável, Le Monde diplomatique, Dezembro 2006.
[3] Tornou-se desde então a Building and Wood Workers’ International (BWI).
[4] Revised agreement between Ikea and the IFBWW, Dezembro de 2001.
[5] Bertil Torekull, Un design, un destin. La saga Ikea, Michel Lafon, Paris, 2000.
Olivier Bailly, Jean-Marc Caudron e Denis Lambert
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo221.htm

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