Devassa da PIDE à vida de Torga - Jornal «Público»
A Torre do Tombo colocou na Internet, como Documento do Mês, o processo que a polícia política do Estado Novo reuniu, ao longo de 40 anos, sobre o médico, escritor e opositor ao regime de Salazar. É um processo de minuciosa devassa. Por Sérgio C. Andrade
Miguel Torga e a PIDE - A Repressão e os Escritores no Estado Novo (com apresentação do próprio Reis Torgal e prefácio de Clara Rocha, filha de Torga). O livro abre uma colecção que posteriormente dará a conhecer outros trabalhos, também produzidos no CEIS 20, sobre processos semelhantes a este, como os de Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro e Fernando Namora.
Uma vigilância obsessiva
Para Renato Nunes, o aspecto mais relevante do processo de Torga é ele documentar "o interesse quase obsessivo da PIDE pelos vários domínios da vida do escritor", e lembra "as violências sistemáticas da correspondência, o registo das suas viagens, dos encontros com amigos, até os rendimentos da sua actividade como médico". Uma vida devassada até à intimidade.
O próprio escritor se referiu à violência dessa devassa no comentário que escreveu no seu Diário XII (1975), quando teve conhecimento do processo: "Vista através daquele registo laborioso e tenaz de gusanos inexoráveis, a minha vida era a própria imagem da desolação. Descarnada de qualquer substância anímica, mais objectivamente exacta do que a biografia que porventura aflora à
1907
Adolfo Correia da Rocha nasce a 12 de Agosto, em S. Martinho de Anta, Sabrosa
1920
Viaja para o Brasil, onde trabalha, durante cinco anos, com um tio na sua fazenda de Minas Gerais
1928
Publica o seu primeiro livro, Ansiedade (poesia); termina o curso do liceu, em apenas três anos
1931
Inicia a actividade de contestação à ditadura do Estado Novo
1932
Começa a escrever o Diário
1933
Termina o curso de Medicina na Universidade de Coimbra; regressa à terra natal, onde começa a exercer medicina
1934
Publica A Terceira Voz, primeira edição com o pseudónimo Miguel Torga
1936
Funda a revista Manifesto, com Albano Nogueira; entre os colaboradores estão Victorino Nemésio, Paulo Quintela, Bento de Jesus Caraça e Fernando Lopes-Graça
1938
É confrontado, pela primeira vez, com a censura, que exige a identificação do director, editor e proprietário da Manifesto - a revista só dura cinco números
1937
Atravessa a Espanha, em plena guerra civil, numa viagem em que passará também por França, Bélgica e Itália; dá conta das impressões que lhe causou o conflito no país vizinho em livros como O Quarto Dia da Criação do Mundo (que publica dois anos depois) e, mais tarde, nos Diários, Novos Contos da Montanha e Alguns Poemas
1939
É preso em Leiria, a 2 de Dezembro, na sequência da publicação de O Quarto Dia da Criação do Mundo, que é apreendido - passa dois meses nas prisões do Limoeiro e do Aljube
1940
Escreve, no Aljube, o poema de resistência Ariane; é libertado a 2 de Fevereiro (descreve a experiência da prisão em O Quinto Dia da Criação do Mundo); casa-se, civilmente, a 27 de Julho, com a belga Andrée Crabbé Rocha, fixando residência em Coimbra, no
n.º 32 da Casa da Beira; abre consultório na Rua da Portagem, n.º 45
1941
Edita o primeiro volume do Diário
1942
Publica Os Contos da Montanha, que é apreendido em Coimbra, o mesmo acontecendo ao poema dramático Sinfonia
1947
Integra a Comissão de Auxílio ao Dr. Mário Soares, na sequência da deportação deste para São Tomé e Príncipe; é demitido do Serviço de Saúde da Casa dos Pescadores da Figueira da Foz; Andrée Crabbé Rocha é expulsa da Faculdade de Letras de Lisboa, onde era professora assistente
1949
Solidariza-se com o médico Fernando Vale (amigo e futuro fundador do PS), que tinha sido demitido da Delegação de Saúde de Arganil, por ter apoiado a candidatura do general Norton de Matos; é testemunha de defesa de Vale em 1958, aquando da campanha de Humberto Delgado, que também apoia
1950
É-lhe levantada a proibição da saída do país, reiniciando viagens a Espanha e a outros países da Europa; publica Cântico do Homem
1953
Muda de residência, em Coimbra, para a Rua Fernando Pessoa, n.º 3
1954
Viaja até ao Brasil, onde participa como convidado no Congresso de Escritores de São Paulo; recusa o Prémio Almeida Garrett que lhe tinha sido atribuído pelo Ateneu Comercial do Porto, mas desloca-se ao Porto para justificar a recusa e pede que o dinheiro seja utilizado na publicação de jovens poetas
1955
Nasce a filha, Clara
1958
Participa na campanha de Humberto Delgado
1959
Publica o 8.º volume do Diário, que será apreendido pela PIDE em Fevereiro do ano seguinte; o caso mobiliza acções de protesto e de solidariedade por parte de figuras dos meios intelectuais tais como Urbano Tavares Rodrigues, Jaime Cortesão, Artur Portela Filho, Victor Direito e Raul Rego
1960
É proposto, com Aquilino Ribeiro, como candidato ao Prémio Nobel da Literatura; a sua candidatura é subscrita pelo professor francês (Universidade de Montpellier) Jean-Baptiste Aquarone; a PIDE e os responsáveis políticos do Estado Novo acompanham a polémica em volta desta dupla candidatura
1965
Subscreve um protesto endereçado ao ministro da Educação contra a extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores depois da atribuição do seu prémio a Luandino Vieira
1967
Intervém no colóquio internacional comemorativo do centenário da abolição da pena de morte em Portugal, em Coimbra
1969
Recusa o Grande Prémio Nacional de Literatura, por ser entregue pelo regime; subscreve o manifesto Dos Escritores ao País, pela restituição da liberdade, contra a máquina repressora do regime, contra as prisões políticas...; participa no II Congresso Republicano em Aveiro
1973
Faz uma viagem a Angola e Moçambique, seguida pela PIDE
1974
A Revolução do 25 de Abril não lhe granjeia grandes euforias. Escreve no Diário XII: "Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada". Participa no 1.º comício do PS em Coimbra (1 de Junho) e Sabrosa (30 de Junho), sempre como independente
1976
Participa em comício de apoio a Ramalho Eanes em Coimbra
1978
Nova candidatura ao Nobel, recebendo o apoio do escritor premiado no ano anterior, o espanhol Vicente Aleixandre
1983
Encontra-se com o presidente moçambicano Samora Machel na visita deste a Portugal; a sua admiração pelo líder moçambicano está expressa no Diário
1985
Opõe-se à entrada de Portugal para a Comunidade Europeia
1987
Visita Macau e Goa e manifesta preocupação pela perda das marcas da lusitanidade
1988
Diz, em entrevista ao jornal Libération (11 de Fevereiro): "Quis sempre manter-me um homem independente. Sentimentalmente, sou socialista, mas, no fundo, permaneço um anarquista. Um rebelde."
1989
É distinguido com o Prémio Camões, na primeira edição
1992
Prémio Vida Literária da APE e Personalidade do Ano pela Associação de Imprensa Estrangeira em Portugal
1993
Comenta no Diário XVI a libertação de Nelson Mandela, a reunificação alemã, a guerra do Golfo, os massacres em Timor e a prisão de Xanana Gusmão, a cimeira Clinton-Ieltsin...
1995
Morre em Coimbra, a 17 de Janeiro
Fontes: Fotobiografia, por Clara Rocha (Publicações Dom Quixote), e site do IPLB - Instituto Português do Livro e das Bibliotecas
a Quando um diligente funcionário da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) informava os seus superiores, em Julho de 1947, que Adolfo Correia Rocha, "conhecido literariamente por Miguel Torga", era "anti-situacionista, de ideias avançadas, mas moralmente nada consta", o escritor transmontano era já uma figura bem referenciada pelo aparelho policial do Estado Novo.
Na viragem para a década de 40, Torga tinha já vivido a sua experiência de prisão nas cadeias salazaristas, na sequência da publicação, e posterior apreensão, do seu livro O Quarto Dia da Criação do Mundo, considerado pela PIDE como "uma publicação obscena e de propaganda comunista".
Esta ficha de informação (do processo n.º 11.803) é uma das primeiras dos quatro volumes que constituem o extenso dossier de Miguel Torga na PIDE (e que inclui também os documentos da sua antecessora, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, que existiu entre 1933-45), que está arquivado no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (IAN/TT). É este espólio, já tratado, que a Torre do Tombo disponibiliza agora na Internet (http://www.iantt.pt/) como Documento do Mês de Abril, no âmbito desta iniciativa lançada pela instituição em Maio.
O pretexto para o lançamento on-line do processo da PIDE é o centenário do nascimento de Miguel Torga (1907-1995), que está a ser evocado por todo o país. Neste contexto, uma exposição com os referidos documentos vai ser também apresentada em Outubro na Delegação Regional de Cultura do Norte, em Vila Real.
"Decidimos não ficar à espera da abertura desta exposição. Temos obrigação de tornar a informação disponível", justifica o director do IAN/TT, Silvestre Lacerda, notando que a circunstância do centenário tem motivado "muita procura de informação sobre o escritor", principalmente por parte de estudantes e investigadores de instituições, como as Universidades de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e de Coimbra.
Um desses investigadores é Renato Nunes, que há pouco tempo terminou um estudo precisamente sobre o processo de Torga na PIDE, no âmbito de um seminário orientado por Luís Reis Torgal, no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20), da Universidade de Coimbra. O estudo vai ser editado pela editora Minerva, de Coimbra, com o título Miguel Torga e a PIDE - A Repressão e os Escritores no Estado Novo (com apresentação do próprio Reis Torgal e prefácio de Clara Rocha, filha de Torga). O livro abre uma colecção que posteriormente dará a conhecer outros trabalhos, também produzidos no CEIS 20, sobre processos semelhantes a este, como os de Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro e Fernando Namora.
Uma vigilância obsessiva
Para Renato Nunes, o aspecto mais relevante do processo de Torga é ele documentar "o interesse quase obsessivo da PIDE pelos vários domínios da vida do escritor", e lembra "as violências sistemáticas da correspondência, o registo das suas viagens, dos encontros com amigos, até os rendimentos da sua actividade como médico". Uma vida devassada até à intimidade.
O próprio escritor se referiu à violência dessa devassa no comentário que escreveu no seu Diário XII (1975), quando teve conhecimento do processo: "Vista através daquele registo laborioso e tenaz de gusanos inexoráveis, a minha vida era a própria imagem da desolação. Descarnada de qualquer substância anímica, mais objectivamente exacta do que a biografia que porventura aflora à tona do que escrevi, parecia o relato de uma autópsia" (ver caixa).
O processo de Torga na PIDE reúne quatro centenas e meia de documentos, muitos deles com informação repetida, o que mostra a "descoordenação que caracterizou também o funcionamento da PIDE", realça Renato Nunes. Mas é importante não esquecer que o escritor foi igualmente seguido e investigado pela Comissão de Censura - num processo que está também na Torre do Tombo, mas ainda não foi tratado.
Nos arquivos da PIDE - que o IAN/TT mantém "com a ordem original, seguindo as regras do arquivismo", explica Silvestre Lacerda -, o dossier Torga não tem a dimensão política dos de outros vultos da literatura portuguesa do século XX, como Aquilino Ribeiro. Mas ele tem, como nos casos deste e dos outros escritores, "um interesse particular, por se tratar de uma figura que não esteve ligada ao Partido Comunista", diz Luís Reis Torgal. "Sabemos que os escritores do PC foram os mais perseguidos - é um dado histórico", lembra o historiador. Mas o estudo e a divulgação daquilo que a PIDE fez a Torga, Aquilino, Namora e Ferreira de Castro, que se destacaram pela luta em favor da democracia e da liberdade sem enquadramento partidário, "mostram-nos o carácter repressivo e totalitário do regime", que não só visava os comunistas como os outros democratas, acrescenta Reis Torgal. "A PIDE vigiava tudo, e isso é a marca mais relevante do fascismo do regime de Salazar", conclui.
Era um marginal
Também António Arnault, ex-ministro socialista que privou de perto com Torga, destaca o carácter individualista e não-alinhado do médico-escritor. "Era um marginal, e isso deu-lhe um certo estatuto de independência", que fez com que, depois do episódio em 1939/40, ele não voltasse a ser preso, diz Arnault, notando, no entanto, que "ele tinha consciência de que estava a ser vigiado". Renato Nunes lembra, a propósito, que o escritor foi por várias vezes detido e interpelado pela PIDE a pretexto dos livros que ia publicando, em edições de autor, "sem os sujeitar ao visto prévio da censura". Aconteceu assim, por exemplo, com a publicação do oitavo volume do Diário, em 1959.
Sobre a iniciativa agora lançada pelo IAN/TT, Reis Torgal considera-a "interessante", mas não deixa de lamentar que ela não tenha sido "conjugada" com o CEIS 20, nomeadamente, por exemplo, com o timing da publicação do livro de Renato Nunes, que, assim, poderá perder algo do seu ineditismo. E realça a importância da investigação deste jovem historiador, naquele que é "o primeiro estudo de caso" sobre um escritor. "Talvez a libertação do processo na Internet venha a chamar a atenção para o livro", admite o professor da Universidade de Coimbra.
oitavo volume do Diário, em 1959.
Sobre a iniciativa agora lançada pelo IAN/TT, Reis Torgal considera-a "interessante", mas não deixa de lamentar que ela não tenha sido "conjugada" com o CEIS 20, nomeadamente, por exemplo, com o timing da publicação do livro de Renato Nunes, que, assim, poderá perder algo do seu ineditismo. E realça a importância da investigação deste jovem historiador, naquele que é "o primeiro estudo de caso" sobre um escritor. "Talvez a libertação
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