«O cidadão Evo Morales tem todo o direito e toda a liberdade de manter relações com quem quiser» [1]. O comandante chefe das Forças Armadas Bolivianas (FAB), almirante Marco Antonio Justiniano, respondeu assim, em Agosto de 2005, aos que reclamavam que fosse aberto um inquérito sobre as ligações do chefe do Movimento para o Socialismo (MAS) com os governos da Venezuela e de Cuba. Os conservadores multiplicaram então os ataques contra o dirigente indígena, previsto vencedor da eleição presidencial de 18 de Dezembro de 2005. Interpelado sobre o “populismo” e o perigo que ele representaria, respondeu o almirante que tudo dependia da definição dessa palavra: «Se a entendermos como um movimento de massas em busca de melhores condições de vida, nada tem de perigoso; mas se a virmos como um movimento que obedece a caprichos, será um perigo para a estabilidade do Estado». Uma resposta, no fim de contas, que não se decidiu por uma das interpretações.
O exército boliviano tem uma sólida tradição de ingerência nas questões políticas da nação, registando no seu historial cerca de cento e oitenta golpes de Estado desde a independência, conquistada em 1825. Da história recente, ficaram os nomes do general René Barrientos, que em 4 de Novembro de 1964 pôs fim à experiência reformista dirigida desde 1952 pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR); do general Hugo Banzer, que se apoderou do poder em 21 de Agosto de 1971, na sequência de um golpe apoiado pelas ditaduras argentina e brasileira e pelos Estados Unidos. Seguiu-se depois um longo período de regimes autoritários e repressivos, até à queda do narco general Luis García Meza, a 4 de Agosto de 1981, e à restituição do poder aos civis em 10 de Outubro de 1982.
Passaram-se depois vinte anos, atascados numa “democracia aproximativa”. Com uma arrogância de chumbo e mão de ferro, os partidários do neoliberalismo puseram o país a saque. Os pobres, os desapossados, a maioria indígena, tiveram nesse tempo a impressão de que se estavam a enterrar-se num desolado nevoeiro...
Toda a dinâmica militarista das décadas anteriores fora estimulada por Washington. Doravante, os Estados Unidos davam prioridade à “paz democrática”, indispensável ao desenvolvimento do mercado, preferindo dominar o país por intermédio dos partidos em vez de o fazer através do exército – com excepção da “luta contra o narcotráfico” e da erradicação da cultura da coca, ambas enquadradas no terreno por militares estadunidenses. Os generais bolivianos perdiam espaços e influência, subsistindo apenas as redes clientelistas tecidas com os partidos do poder, ao mesmo tempo que os presidentes utilizavam os fundos reservados para garantir a fidelidade do alto comando.
Em Outubro de 2003 a população sublevou-se contra a política do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, tendo os insurrectos tomado conta do imenso bairro popular de El Alto, que fica por cima de La Paz, e, com entulho, barricadas e pneus incendiados obstruíram as vias de comunicação. Mas a 12 de Outubro um grupo de soldados conseguiu infiltrar-se na zona de Villa El Ingenio. «As pessoas deram o alarme», testemunha Nestor Guillén, dirigente da Federação dos Comités de Bairro (FEJUVES). «Os militares começaram a disparar, as balas assobiaram por todo o lado e dezassete pessoas foram mortas; pessoas inocentes, que estavam apenas a ver o que se passava...» A repressão acabou por causar 67 mortos e cerca de 400 feridos. Inúteis. A negociata a que Sánchez de Lozada dedicou anos de esforços e cuidados desfez-se aos seus pés. Refugiou-se nos Estados Unidos.
O seu vice-presidente, Carlos Mesa, acedeu então ao poder. Mas decepcionou muito depressa, vendo se obrigado a pedir a demissão em 6 de Junho de 2005, após três semanas de agitação social e 80.000 manifestantes nas ruas [2].
Entretanto, o exército voltou a ficar no centro do debate. Não por iniciativa própria, como num primeiro tempo se poderá julgar. Carlos Mesa, que não queria mortos nem sangue derramado, não autorizou que se reprimissem as manifestações. Mas no auge desta crise, e à extrema-esquerda de Evo Morales, os dirigentes da Central Operária Boliviana (COB) e outros sectores apelaram a um militar patriota. «Precisamos de um coronel Chávez», proclamou Jaime Solares, dirigente da COB. A 25 de Maio, dois tenentes sem prestígio, Julio Herrera e Julio César Galindo, pediram «a título pessoal» a demissão do presidente Mesa e propuseram se para chefiar um novo governo. A 3 de Junho, várias dezenas de dirigentes da COB voltaram a ir bater à porta do estado maior, pedindo de novo a intervenção do exército.
ESTRANHO PACTO CIVICO-MILITAR
O alto comando desmentiu que tivesse havido a ideia duma tentativa de golpe nesse momento. Mas... como conta um colaborador próximo de Evo Morales, esse projecto existiu mesmo. «Mas em vez de se virarem para a direita, os militares contactaram Evo para ter o seu beneplácito. Estavam dispostos a fazer um golpe de Estado, mas queriam ser apoiados pelo movimento social». Foi um pacto cívico-militar: sim à nacionalização dos hidrocarbonetos, sim à Assembleia Constituinte, sim a todas as reivindicações populares! Ligados à COB, estes oficiais tinham clara consciência de que semelhante apoio não era suficiente (Jaime Solares nem sequer podia contar com o apoio da base da sua organização), devendo alargá-lo aos sectores que, como o MAS, tinham um poder efectivo de mobilização. «Essa proposta foi rejeitada. O processo democrático, ainda que o possamos questionar, custou muito ao povo, custou sangue derramado, mortos, exílio. Estava fora de questão interrompê lo, tanto mais que se chegassem ao poder em plena ascensão das massas, os militares o teriam travado.»
Como Carlos Mesa desistiu do combate, tiveram de suceder-lhe, escolhidos pelo Congresso, ou o senador Hormando Vaca Diez, presidente do Senado, ou Mario Cossío, presidente da Câmara dos Deputados. Porém, como ambos eram ex aliados de Sánchez de Lozada, a hipótese provocou uma rejeição incandescente. De fonte segura, soube-se todavia que um ramalhete de generais se reuniu para decidir qual dos dois apoiar. Soube-se também que a meio dos seus conciliábulos se apresentou um coronel que declarou, batendo pala: «É meu dever dizer-lhes o que pensa um certo número de oficiais: o único representante da dignidade nacional é o MAS». A 9 de Junho, o almirante Luis Aranda, então comandante-chefe das FAB, fez a seguinte declaração: «O Congresso deve interpretar da forma mais clara possível o sentimento do povo».
Graças a esta ajuda decisiva, o presidente do Supremo Tribunal, Eduardo Rodríguez, assegurou a transição. Todavia, associando-se de imediato aos presidentes das duas câmaras, destituiu o almirante Aranda e procedeu à substituição desse alto comandante que transigia com o movimento popular.
Foi então que entrou em cena um “agrupamento de cidadãos” fundado por ex-militares, em 12 de Maio, em Cochabamba, intitulado Transparência Democrática Patriótica (TRADEPA), que pretendia vir a ser o braço político das FAB (as quais, em virtude do artigo 121º da respectiva lei orgânica, não podem participar neste tipo de actividade).
Constou que foi uma iniciativa de militares aposentados... Mas alguns chefes das FAB, entre os quais o actual comandante do exército, general Marcelo Antezana, participaram na criação da TRADEPA. Os seus dirigentes, de resto, acabaram depois por reconhecer, a 25 de Agosto, que «alguns militares do activo» tinham assinado «voluntariamente» as listas entregues ao Tribunal Nacional Eleitoral (120.000 assinaturas) com vista a obter personalidade jurídica. Entretanto, alguns oficiais queixaram-se de que tinham sido pressionados para assinar, denunciando que as instalações da II Divisão, em Oruro, estavam a ser utilizadas como secretariado regional da organização.
A TRADEPA reivindica «um nacionalismo revolucionário, independente e humanista», uma «participação das Forças Armadas no desenvolvimento nacional», em resposta à corrupção dos partidos políticos. Será uma célula progressista? Vendo bem, os governos do coronel David Toro (1 7 de Maio de 1936-13 de Julho de 1937) e do seu sucessor, general Germán Busch (13 de Julho de 1937-23 de Agosto de 1939), com o seu “Programa do Estado socialista militar” abriram caminho (com sortes diversas) a transformações sociais [3]. E ninguém esqueceu o general Juan José Torres: em Outubro de 1970, a tomada do poder por uma junta de extrema direita provocou uma reacção da esquerda do exército, que ele dirigia, tendo então o general Torres formado um governo “nacionalista e revolucionário” e, em Junho de 1971, reunido uma Assembleia Popular para radicalizar o regime. Mas foi derrubado pelo general Banzer.
Só que a TRADEPA faz lembrar também o tristemente célebre grupo Mariscal de Zepita (constituído, na sua maioria, por militares reformados), que nas eleições de 1997 apoiou a Acção Democrática Nacionalista (ADN) do ex-ditador Hugo Banzer. Os membros desse grupo, com ligações às Forças Armadas, ocuparam depois lugares importantes na administração pública e, de resto, a presença na TRADEPA de personagens como o ex coronel Faustino Rico Toro, para citar apenas este, dá que pensar: ex-chefe dos serviços secretos do ditador García Meza, foi implicado no assassinato do dirigente socialista Marcelo Quiroga Santa Cruz, ocorrido em 17 de Julho de 1980.
Seja como for, o vice-ministro da Defesa, Victor Manuel Gemio, foi destituído, em 16 de Agosto de 2005, por causa das suas ligações com a TRADEPA, tendo então o novo comandante-chefe das FAB, Marco Antonio Justiniano – criando um grande mal-estar –, declarado que estava de acordo com ele e anunciado, a 17 de Agosto, que essa organização tinha o apoio dos militares para fazer chegar as suas posições à Assembleia Constituinte.
Na véspera, as Forças Armadas tinham-se declarado em estado de alerta quando souberam da decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de revogar o segredo militar, para que os comandantes e oficiais que haviam chefiado a sangrenta repressão das jornadas de Outubro de 2003 comparecessem perante a justiça comum. E graças a isso o comandante do exército, general Antezana (um dos que no auge da crise conspiraram contra Carlos Mesa), justificou, a 19 de Agosto, a formação da TRADEPA. Segundo ele, a decisão do STJ afectava a justiça militar, tomando-a inútil. Quanto ao ex-general Luis Gemio, irmão do vice ministro destituído, ele ameaçou publicamente recorrer a «outros métodos» se não se permitisse que os militares tivessem o seu próprio braço político. (Este mesmo Luis Gemio dirigiu o grupo Mariscal de Zepita entre 1997 e 2002.) Coisa que, na altura em que toda a gente se interrogava sobre a verdadeira natureza da TRADEPA, levou Evo Morales a dizer: «Isto nada tem a ver com Chávez. É um movimento fascista, muito preocupante. Um sector do alto comando favorável a um golpe de Estado contra o movimento social em geral e contra o MAS em particular».
Eleito no dia 18 de Dezembro de 2005, logo à primeira volta, com 54 por cento dos votos, Evo Morales tem pela frente uma situação difícil. As castas “superiores” esforçaram-se sempre por conservar as vantagens que esta hierarquia lhes atribui e não lhe darão tréguas. Não mais do que Washington, as multinacionais e as elites brancas “autonomistas” – para não dizer separatistas – das regiões ricas em petróleo e gás de Santa Cruz e de Tarija. Ora, em caso de agitação, que fará o exército?
Sabe-se que o exército se encontra dividido em três tendências. Em primeiro lugar, uma corrente golpista e reaccionária, partidária da repressão do movimento social e de que a TRADEPA faz sem dúvida parte. Em segundo lugar, uma facção desejosa de contentar gregos e troianos, o poder e a oposição. «Dantes», analisa Walter Chávez, «podiam-se massacrar trezentos camponeses e não acontecia nada. Agora, trinta mortos desencadeiam a reprovação mundial – é isso que a globalização também permite». Os militares, por conseguinte, vão fazendo os seus cálculos. Em caso de conflito, afrontar um movimento social tão forte provocará centenas de vítimas. Quem será o responsável? Quem será julgado, quando a impunidade já não está garantida? Se até o general Augusto Pinochet tem de prestar contas...
Em terceiro lugar, há na instituição militar um sector progressista. Não declarou o secretário permanente do Conselho Supremo de Defesa Nacional (COSDENA) que é viável nacionalizar e industrializar os hidrocarbonetos? Por outro lado, como notou em Agosto de 2005 Álvaro García Linera, hoje vice presidente de Evo Morales, «a direita foi longe demais. Numerosos quadros intermédios vêem com muito maus olhos o que consideram ser as tendências separatistas de Santa Cruz e de Tarija. Tradicionalmente, estes quadros estão mais em sintonia com as forças conservadoras, mas não a esse preço, e disso resulta que têm uma certa afinidade com as forças sociais». Convém acrescentar que o exemplo do antigo tenente coronel Hugo Chávez, que na Venezuela dirige a sua revolução bolivariana ao mesmo tempo que actua com vista a uma integração “social” da América Latina, não deixa todos os oficiais indiferentes.
Mas ninguém está em condições de avaliar as relações de forças entre estas diversas correntes. E Washington está a tomar as suas precauções. A 2 de Outubro, por indicação da embaixada dos Estados Unidos, 29 mísseis terra ar HN-5A foram retirados do quartel onde estavam armazenados por um comando boliviano especializado na luta antiterrorista, intitulado “Chacha Puma” e enquadrado por oficiais norte-americanos. Segundo o general Antezana, estes mísseis, comprados à China, foram retirados «porque concluíram o seu ciclo de vida». Mas esse ciclo é de vinte anos, e só passaram nove... Mais tarde, o general provocou um terramoto político ao revelar que a destruição dos mísseis tinha sido imposta por Washington «perante a iminente vitória de Morales». Estas declarações valeram-lhe a destituição, a 18 de Janeiro, enquanto o ministro da Defesa foi obrigado a demitir se.
Paralelamente, a 1 de Julho de 2005 chegaram ao outro lado da fronteira, no Paraguai, 500 militares estadunidenses das forças especiais, para darem instrução ao exército paraguaio «em matéria de luta antiterrorista e contra o narcotráfico». E desde Agosto, ao mesmo tempo que dirige manobras militares, o exército norte-americano está a proceder no Chaco ao restabelecimento do aeroporto Mariscal Estigarribia, que fica a 250 quilómetros da Bolívia e tem uma pista com 3800 metros de comprimento, onde podem aterrar aviões de grande porte B-52, Hércules C-130 e C-5 Galaxy. Trata-se de uma base idealmente situada para, a pedido, por exemplo, de um qualquer “movimento autonomista de Santa Cruz”, intervirem na Bolívia, em caso de “ingovernabilidade” do país.
[1] La Prensa, La Paz, 7 de Agosto de 2005.
[2] Maurice Lemoine, O movimento social na Bolívia, poderoso e fragmentado, Le Monde diplomatique, Novembro 2005.
[3] Em 13 de Abril de 1936, Toro nacionalizou o petróleo, até então monopolizado pela empresa norte americana Standard Oil.
Maurice Lemoine
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/amlatina/bolivia022.htm
Sem comentários:
Enviar um comentário