sábado, março 24, 2007

Ritual democrático e sociedade de castas

A 7 de Novembro, os eleitores americanos que se exprimiram nos diversos escrutínios de meio do mandato, em geral marcados por uma elevada taxa de abstenção, pronunciaram-se também sobre o balanço do presidente George W. Bush. Este vai ficar na Casa Branca até Janeiro de 2009, mas uma eventual oscilação de uma das câmaras – possivelmente das duas – no campo da oposição democrata complicaria o seu trabalho nos próximos dois anos. Tanto mais que a sua principal iniciativa de política externa, a guerra do Iraque, mostra ser um fiasco cada dia mais sangrento. E sem outra saída provável que não seja a retirada das tropas americanas de um país que a sua intervenção fez mergulhar no caos.

Para os militantes republicanos, os sinos tocaram a rebate: «Tudo o que conseguimos em seis anos pode ser perdido num só dia», escreveu-lhes Sam Brownback, senador do Kansas. «Os democratas pretendem aumentar os impostos, reduzir a eficácia da nossa guerra contra o terrorismo e lançar um processo de impeachment» [contra o presidente]. Na segunda circunscrição do Indiana, os potenciais eleitores são perseguidos por contactos telefónicos gerados por computadores. De fora do Estado, são os lóbis partidários pela reeleição do parlamentar republicano quem dá a ordem.

Por vezes faz-se por que a solicitação seja mais personalizada. Numa mensagem de correio electrónico endereçado a um dos presumíveis apoiantes – que, no presente caso, se trata de um francês bastante distante dos seus ideais –, o presidente George W. Bush escreve, a 17 de Outubro: «Caro Serge. Em 2004, participou na organização da minha vitoriosa campanha. Unidos, enviámos ao povo americano uma mensagem clara acerca da necessidade de preservar a segurança da nossa Nação, de manter baixos os impostos e de continuar a criar empregos. Este ano, volto a pedir-lhe que me ajude. (...) Sem uma maioria republicana no Congresso, os nossos adversários políticos tratarão de revogar o Patriot Act, aumentar os vossos impostos e impedir me de nomear juízes conservadores para os tribunais federais».

O tom militante da mensagem deixa transparecer a aposta de Karl Rove, responsável pelas sondagens e estratega da Casa Branca. Quando a participação numa eleição é fraca, importa menos seduzir os indecisos do que consolidar a respectiva base de apoio. «Em 2004», afirmava há algumas semanas o director de campanha do partido no poder, «62 milhões de americanos votaram no presidente Bush, um recorde. Por ocasião das eleições de meio do mandato de 2002, 77 milhões de americanos compareceram nas urnas. Assim, se conseguirmos mobilizar todos os republicanos [de 2004] que espontaneamente não vão votar fora de uma eleição presidencial, mostraremos que os comentadores estão errados e conservaremos a Câmara e o Senado».

A hipótese é audaciosa. As coisas vão de tal forma mal para a Casa Branca que o jornalista Bob Woodward, de um oportunismo lendário numa profissão lendária pelo seu oportunismo, ataca agora George W. Bush que tanto elogiara nos seus dois trabalhos precedentes. Entre um atoleiro de morte no Iraque, o aliciamento de um adolescente empregado no Capitólio por um parlamentar republicano defensor dos “valores morais”, e o sentimento crescente de que a vida está a tornar-se mais dura, “mobilizar” os partidários do presidente não será tarefa fácil.

OS LÍDERES REPUBLICANOS E DEMOCRATAS DEFENDEM POSIÇÕES QUASE IDÊNTICAS NOS GRANDES ASSUNTOS INTERNACIONAIS

Não faltam, no entanto, meios técnicos e financeiros para o fazer. Em cada uma das circunscrições onde o resultado parece incerto, os candidatos podem – cruzando uma quantidade de informação acerca da idade, do tipo de habitação, da orientação religiosa, dos mais diversos hábitos de consumo identificar o tipo de eleitor potencial a que prioritariamente pretendem dirigir-se. O procedimento não é novo: em 1995, convencido pelo seu responsável de sondagens de que devia seduzir antes de mais os americanos adeptos de caminhadas, do campismo e do golfe, o presidente Bill Clinton renunciara ao iate durante as suas férias de Verão...

Desde então, o sistema aperfeiçoou-se. A “microcaracterização” permite que cada partido, desde que possua os meios necessários, construa retratos-tipo dos seus simpatizantes. Os republicanos estabeleceram 42 diferentes, só para o Michigan, graças à síntese que fizeram (dispendiosa, mas é para isso que serve o dinheiro dos lóbis industriais) de uma massa de dados informatizados relativos, por exemplo, à assinatura de uma revista, a uma doação para uma obra de caridade, à inscrição numa escola privada, à posse de uma mota para a neve... Visto que a última característica define na maioria dos casos um partidário do presidente, fazem então saber – por via postal, por correio electrónico, mas também porta-a-porta – aos apaixonados das motas de neve que o «extremismo ecológico» do partido democrata ameaça impedir a construção de novas pistas na montanha. Quanto aos praticantes religiosos de etnia branca que vivem em zonas rurais, enviar lhes ão sobretudo mensagens reactivando a ameaça do casamento homossexual [1]. Antes de 7 de Novembro, os dois grandes partidos terão dispendido 500 milhões de dólares. Sem contar as somas investidas pelos próprios candidatos. Isto quer dizer que o número de mensagens será incontável e que o uso destas técnicas irá marcar a próxima eleição presidencial.

A microcaracterização não impede o recurso a processos menos refinados. Em matéria de luta contra o terrorismo, por exemplo. «Vote como se a sua vida dependesse disso. Porque é esse o caso», ameaça um anúncio republicano. A Al-Qaeda «ainda nos vai atacar por causa do falhanço das políticas de George Bush», respondem os democratas. A demagogia ambiente e o desejo de não exporem o flanco explicam que dezenas de parlamentares democratas não tenham deixado de homologar os repetidos ataques às liberdades públicas orquestradas a partir da Casa Branca, incluindo a legislação relativa à tortura [2]. A 29 de Setembro último, o orçamento de 448 mil milhões de dólares do Pentágono (uma subida de 40 por cento desde 2001) – entre os quais 70 mil milhões de créditos suplementares para a guerra no Iraque e no Afeganistão – foi aprovado pelo Senado por unanimidade.

Muito embora a guerra no Iraque constitua um ponto de opção na campanha, é por vezes difícil distinguir, no seu conteúdo, as posições dos campos em presença. A maior parte dos eleitos republicanos falam em “manter o rumo” até ao dia em que seja possível passar o testemunho às autoridades iraquianas; a maioria dos eleitos democratas afirma pretender alterar o rumo, mas recusa-se a fixar um calendário para a retirada das tropas. Analisando as opções dos dois candidatos que, segundo se afirma, irão enfrentar-se em 2008, o director da revista diplomática The National Interest concluiu: «Quando se comparam as declarações da senadora [democrata] Hillary Clinton e as do senador [republicano] John McCain, observa-se uma abordagem praticamente idêntica relativamente às questões internacionais» [3]. E é muitas vezes à direita que se ouvem as críticas mais acérrimas ao aventureirismo imperial do presidente Bush [4].

O contraste entre veemência eleitoral, veiculada pelos reclames publicitários e pela Internet, e a ausência de uma perspectiva de ruptura relativamente às orientações fundamentais da Casa Branca voltam a emergir relativamente à política interna. Exceptuando o aumento do salário mínimo federal, cujo nível (5,15 dólares à hora) permanece inalterado desde 1997, e alguns efeitos retóricos contra o dumping social praticado pelo gigante da distribuição Wal-Mart, percebe-se mal ainda em torno de que “Novo Pacto” económico poderá vir a unir se uma eventual maioria democrata e ultrapassar a obstrução de um veto presidencial. Também aí, uma eventual mudança de rumo deverá esperar por Janeiro de 2009.

A menos que a recessão se faça sentir mais cedo do que o previsto, desempenhando a deflagração da bolha imobiliária um papel de acelerador num país em que a taxa de poupança é negativa, em que as taxas de juro subiram e onde milhões de americanos se endividaram dando por garantia do seu empréstimo o valor (agora sobreavaliado) da sua habitação. No entanto, o quadro de conjunto não é uniformemente nebuloso: embora o défice comercial deva atingir os 800 mil milhões de dólares no fim do ano (cerca de 6 por cento do Produto Nacional Bruto [PNB]!), a inflação permanece baixa (2,1 por cento), a taxa oficial de desemprego estável (4,6 por cento), o crescimento bastante elevado, e o défice orçamental (260 mil milhões de dólares, ou 2 por cento do PNB) suportável para um país em guerra. Mas o que significam exactamente estas estatísticas, estas médias, numa América em que as classes se tornam cada vez mais impermeáveis, a ponto de constituírem castas?

Não obstante, e este facto representa um dos paradoxos da situação, a ilusão de mobilidade social, “da miséria à fortuna”, nunca foi tão forte. Em 1983, 57 por cento dos americanos julgavam ser possível «começar pobre e acabar a vida rico». Em 2006, a proporção atinge os 80 por cento. Entre 1983 e 2006, a parcela do rendimento nacional absorvida pelo 1 por cento mais rico aumentou, no entanto, para o dobro, passando de 9 por cento para 16 por cento [5].

Apreciado a longo prazo, o quadro não se desanuvia: os salários representam actualmente a fracção mais fraca do produto nacional desde que essa estatística existe. Simetricamente, os lucros não representavam uma parcela tão elevada há quase meio século. É aliás ao seu crescimento que se atribui a abundância de certas receitas fiscais (mais 27 por cento para o imposto sobre as empresas) e, daí, o bom desempenho relativo do défice orçamental.

O VELHO MITO DA MOBILIDADE SOCIAL ESTILHAÇOU-SE. UMA NOVA REGRA: “O VENCEDOR FICA COM TUDO”

A direita americana vê neste resultado o triunfo da “política de oferta” (supply side): a redução da taxa fiscal impulsionada pelo presidente Bush desde 2001 teria provocado um afluxo de receitas fiscais. Na realidade esquece se, por um lado, que a política de oferta tinha por primeiro objectivo aumentar a taxa de poupança (que se tornou negativa pela primeira vez desde 1933) e, por outro, que o excedente de receitas encaixadas pelo Tesouro foi, como admite o Wall Street Journal, «largamente alimentado pelos ricos, que beneficiaram de salários mais elevados, de bónus e de ganhos bolsistas» [6]. No fundo, o “milagre” resume se facilmente: os ricos pagaram um pouco mais de impostos porque ganharam muito mais dinheiro.

A monopolização, cada vez maior, que exercem sobre os frutos do crescimento caracterizará, de agora por diante, a sociedade americana. Um estudo da Universidade de Northwestern conduzido por Ian Dew Becker e Robert J. Gordon proporcionou indicações espantosas, ainda que não considerasse os ganhos do capital. Entre 1966 e 2001, o salário médio (nível abaixo do qual se situa a maioria dos salários) não progrediu senão 11 %, em termos de valor real. Mas, para os 10 % de assalariados mais bem pagos, o aumento atingiu 58 %. E 121 % para o 1 % de salários mais bem providos, 256 % para o 1 por 1000 mais favorecido, 617 % para o 1 por 10.000 situado no topo da pirâmide [7]. Maldita partilha, agora “o vencedor fica com tudo” [8].

Nem sempre foi assim: «No passado», lembra Clive Crook, «a produtividade assemelhava-se a uma vaga que fazia subir praticamente todos os barcos. Durante os vinte anos de crescimento contínuo da produtividade que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, os rendimentos médios aumentaram ao ritmo dos rendimentos mais elevados» [9]. Entre 1966 e 2001, em contrapartida, segundo o estudo da Universidade de Northwestern acima evocado, o 1 % mais rico apoderou-se de uma fracção dos ganhos de produtividade maior do que a dos 50 % mais pobres. Compreende-se que a maioria dos eleitores americanos contenham tão facilmente a sua excitação quando se anunciam bons índices de crescimento...

Os anos de Bush acentuaram uma tendência, observável já durante a presidência de Clinton, em que sobre os salários dos trabalhadores menos qualificados pesaram a liberalização comercial, as deslocalizações, a imigração e enfraquecimentos dos sindicatos. Actualmente, o sistema americano favorece de tal forma as fortunas que certos “remédios” já não funcionam. Assim, em 1993, esperando embaraçar os conselhos de administração demasiado generosos para os seus dirigentes, as autoridades federais obrigaram as empresas cotadas em Bolsa a tornar pública a lista de pagamentos e os voluptuosos bónus dos seus chefes. Em 1984, o Congresso havia já suprimido certos abatimentos fiscais sempre que o salário e a “protecção social” do presidente do conselho de administração (a sua indemnização de saída, por exemplo) ultrapassassem o milhão de dólares.

Quais foram os resultados? O salário dos patrões de empresas importantes atingiu 10,5 milhões de dólares em 2005, ou seja 369 vezes a remuneração média dos seus assalariados (contra 131 vezes em 1993, e 36 vezes em 1976). Paradoxalmente, a divulgação das remunerações fez com que os dirigentes menos bem pagos reclamassem regalias equivalentes às dos mais favorecidos. Quanto ao limiar de um milhão de dólares, para lá do qual o imposto tinha sido aumentado, acabou por ser assimilado «a um salário mínimo de um presidente do conselho de administração». No entanto, a contrapartida da performance capitalista nem sempre se fica por aí: no fim do último ano, o patrão da Pfizer tinha acumulado 83 milhões de dólares sob a forma de pensões de reforma diversas, ao passo que, sob a sua direcção, o valor da acção da empresa tinha caído 37 % [10].

Metade dos americanos não possui senão 2,5 por cento da fortuna nacional; os 10 por cento mais ricos detêm 70 por cento dela [11]. Entre estes, diversos parlamentares foram frequentemente escolhidos, para representar o seu partido, em virtude da sua capacidade de financiar uma campanha. Isto equivale a dizer que o jogo político e o aparato “democrático” que se exibe a cada dois anos em nada corrige, pelo contrário, os veredictos do “mercado”. O “contrapoder” mediático também não; e pelas mesmas razões.

QUANDO SE TRATA DE FAZER FRUTIFICAR UM INVESTIMENTO, OS MAIS “AFORTUNADOS” SÃO... OS ELEITOS DO CONGRESSO!

O próximo Congresso virá assim confirmar, independentemente do resultado, um perfil social singularmente pouco representativo do país: 40 senadores em cada 100 são milionários (em dólares) e 123 dos 435 da Câmara dos Representantes ganham esta soma apenas num ano. Para além do mais, os eleitos abandonam o Capitólio geralmente mais ricos do que quando entraram. Um estudo chega mesmo a afirmar que ninguém, profissionais de Wall Street incluídos, se revela tão apto quanto eles para fazer frutificar um investimento [12]. A coincidência vale igualmente para os adversários do presidente Bush. Foi por isso com total tranquilidade que a Boeing, a Wal-Mart e a General Electric reequilibraram agora os seus “investimentos” políticos a favor dos democratas.

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[1] Ler, por exemplo, Dan Gilgoff, Everyone is a special interest : In their hunt for voters, microtargeters study how you live and what you like, US News and WorldReports, Nova Iorque, 25 de Setembro de 2006; e Caroline Daniel, Party arsenals feature duelling databases, Financial Times, Londres, 13 de Outubro de 2006.
[2] Doze senadores e trinta e nove congressistas democratas votaram a favor da lei, assinada a 17 de Outubro pelo presidente Bush, que legaliza a arbitrariedade em matéria de detenção e de interrogatórios de pessoas suspeitas de terrorismo.
[3] Nikolas K. Gvosdev, In foreign policy, don’t hold your breath, International Herald Tribune, Neuilly sur Seine, 18 de Outubro de 2006.
[4] Jeremy Brecher e Brendan Smith, Pacifistes de droite aux Etats-Unis [ed. brasileira: Como Bush está perdendo a guerra], Le Monde diplomatique, Outubro de 2006.
[5] Harper’s, Nova Iorque, Setembro de 2006.
[6] Deborah Solomon, “Budget deficit shrinks on strong tax receipts”, The Wall Street Journal, 12 de Outubro de 2006.
[7] Dados citados em Clive Crook, The height of inequality, The Atlantic Monthly, Nova Iorque, Setembro de 2006.
[8] Para retomar o título de um livro profético de Robert H. Frank e Philip J. Cook de 1995, The Winner Take All Society, The Free Press, Nova Iorque.
[9] Clive Crook, op. cit.
[10] Ler, para alguns dados apresentados, Joann S. Lublin e Scott Thurm, “Money rules : Behind soaring executive pay, decades of failed restraints. Instead of damping rewards, disclosure, taxes, options helped push them higher. Return of golden parachutes”, The Wall Street Journal, Nova Iorque, 12 de Outubro de 2006.
[11] David Wessel, “US rich are still getting richer, but not as fast as you’d think”, The Wall Street Journal, Nova Iorque, 2 de Março de 2006.
[12] William K. Tabb, The power of the rich, Monthly Review, Nova Iorque, Julho-Agosto de 2006.
Serge Halimi
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/usa/usa151.htm

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