Martin Almada, jurista que descobriu arquivos da aliança dos aparatos repressivos na América do Sul, revela que militares da região continuam a trocar informações sobre “subversivos”
O paraguaio e advogado Martin Almada, Prémio Nobel Alternativo da Paz, é um dos expoentes latino americanos na denúncia e acção contra as ditaduras na região. Integrante da Associação dos Juristas Americanos, descobriu os arquivos da Operação Condor, a união do esquema repressivo do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia. Hoje, Almada continua a alertar sobre a vigência actual da Condor.
Nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Martin Almada retoma a advertência e mostra que, com excepção do governo argentino, falta vontade política aos demais governos latino-americanos, inclusive o do Brasil, de terminar com a impunidade de figuras que nos anos de chumbo dos anos 70 assassinaram e torturaram jovens combatentes que se insurgiram contra a ditadura.
Almada analisa também o actual momento que atravessa o Paraguai e a real possibilidade de vitória no próximo ano da candidatura presidencial do ex-bispo Fernando Lugo, representante dos paraguaios que não têm voz. Lugo enfrenta sérias objecções da oligarquia que não se conforma com o surgimento de um nome que poderá desbancar o predomínio do Partido Colorado, o mesmo partido do ditador Alfredo Strossner, e tenta inviabilizar a sua candidatura alegando que ainda é bispo, o que constitucionalmente o impediria de concorrer. Lugo abandonou a batina para ser candidato à Presidência, o que deixou irritados os sectores conservadores paraguaios.
– Você poderia lembrar sinteticamente como descobriu os arquivos da Operação Condor?
Isso foi fruto de 15 anos de investigação. Em 26 de Novembro de 1974, quando voltei a Assunção ao terminar os meus estudos superiores na Universidade de La Plata, na Argentina, fui sequestrado pela Polícia Política de Stroessner e levado a um Tribunal Militar integrado pelos Adidos Militares de Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, além de militares e políticos paraguaios. Um coronel chileno e o Chefe de Polícia da Província de Córdoba, Argentina, ordenaram que eu fosse torturado. Fiquei na sala de tormento durante 30 dias, finalmente os militares tipificaram o meu delito como “terrorista intelectual”. Depois fui transferido para o Comissariado Primeiro, a sede da Interpol. Soube então da Operação Condor, estando no ventre do Condor, por meio de um Comissário preso connosco. Isso foi em Abril ou Maio de 1975 e a Operação Condor foi criada oficialmente em fins de Novembro/Dezembro do mesmo ano. O Comissário estava informado porque trabalhou no Escritório de Telecomunicações da Polícia. Ele recebia todos os telex. Caiu preso por não ter delatado que o seu filho integrou o Centro de Estudantes de La Plata, Argentina, quer dizer, tornou-se “subversivo”. Um dia disse me: «Olhe Martin, se tu sais vivo daqui tens de ler a Revista Policial do Paraguai, ali está tudo sobre o Condor».
– E como você saiu?
Fiz uma greve de fome durante trinta dias, depois de castigado no “Sepulcro dos Vivos”, Comissariado Terceiro, e saí em liberdade em Setembro de 1977. Em Fevereiro de 1978, viajei ao Panamá, cujo presidente da República, general Omar Torrijos pediu ao Secretário Geral das Nações Unidas que me arranjasse um trabalho na minha especialidade. Foi assim que a UNESCO de Paris me contratou como Consultor para a América Latina (1978/1992). Nas minhas horas livres pesquisei os passos do Condor através da Revista Policial do Paraguai. Em 3 de Fevereiro de 1989, caiu a ditadura militar de Stroessner. Mudou-se a Constituição que contemplou a figura jurídica do Habeas Datas, que estabelece que «toda pessoa tem direito a ter acesso à informação e aos dados sobre si mesma...» Eu queria saber os detalhes sobre a morte da minha esposa, a educadora Celestina Perez e também o que significava ser terrorista intelectual. Por isso, recorri à Justiça pedindo que a Polícia fornecesse os meus antecedentes. A Polícia então nega a existência dos meus antecedentes.
Peço a abertura do Arquivo da Polícia, facto que se publica na imprensa. Recebo uma chamada telefónica e uma mulher disse me: «Professor Almada, os seus papéis não estão na Central de Polícia, mas sim nos arredores de Assunção». Convido-a para passar no meu escritório. Uma hora depois apresentou um plano. Explicou que há mais de três meses a cópia desse mesmo plano tinha sido fornecida a um líder da oposição que não fez nada. Disse que confiava muito em mim e despediu se. Esse plano levei ao juiz que estava a conduzir o meu recurso de Habeas Data, Dr. José Agustin Fernandez. Este decidiu abrir o Comissariado de Lambare, a 10 quilómetros de Assunção. Isso foi em 22 de Dezembro de 1992. Toneladas de documentos...
Quem foi a mulher que me traçou o plano? Soube muito mais tarde que foi a esposa de um Comissário que fugiu com uma menina muito mais jovem. Ela traçou me o plano por despeito.
– O ditador Alfred Stroessner morreu no ano passado em Brasília sem que o governo brasileiro atendesse a uma solicitação sobre a extradição em função dos crimes cometidos no seu período de governo. A questão agora está totalmente encerrada ou ainda se pode fazer algum tipo de justiça para que se demonstre às novas gerações que a impunidade não prevalece?
A Justiça paraguaia pediu, tanto a Fernando Henrique Cardoso como ao companheiro Lula, a extradição de Stroessner, mas o Itamaraty silenciou. Isso é compreensível para nós, porque Stroessner entregou ao governo brasileiro a fonte mais importante da nossa energia: Itaipu. A partir de então o Paraguai converteu se numa subcolónia brasileira...
– O senhor, como descobridor dos arquivos da Operação Condor, não acha que nestes 15 anos não se fez justiça em relação à punição dos responsáveis por violações de direitos humanos nesta região?
A Operação Condor foi um pacto criminoso entre os militares de Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai na década de 70. No Paraguai foram enviados para o cárcere os “torturadores” da Polícia Política, mas os autores morais e intelectuais, os militares, até esta data continuam impunes e com muita riqueza, fruto dos roubos dos cofres do Estado e aos particulares da oposição. Quando eu falo com os militares sobre o tema, eles dizem que cumpriram ordens da Embaixada estadunidense em Assunção. Realmente, para nós, o Terrorista mundial número um chama-se Henry Kissinger, o segundo é George W. Bush e o terceiro Bin Laden, sócio deles...
– Acha que hoje os fundamentos da Operação Condor continuam vigentes?
Rotundamente que sim.
– E de que forma se manifesta?
Encontrámos um documento militar paraguaio de 10 de Julho de 1997 no qual o coronel Francisco Ramon Ledesma, oficial do Exército paraguaio diz ao coronel equatoriano Jaime del Castillo Baeza, secretário executivo da XXII Conferência de Exércitos das Américas (CEA), que estava a remeter a lista dos subversivos paraguaios como contribuição do Exército paraguaio para que Castillo Baeza elaborasse a lista dos subversivos da América Latina. A pedido das organizações de Direitos Humanos, o juiz penal Jorge Bogarin Gonzalez ordenou que o coronel paraguaio prestasse declaração. Isso ocorreu em 9 de Outubro de 1997. O coronel paraguaio, que nunca viu a cara da justiça, assustou-se e revelou ao juiz que a reunião da CEA ocorreu em Novembro de 1995, em Bariloche, Argentina, com a presença de Menem e Pinochet, fornecendo os nomes dos militares paraguaios participantes. Assinalou, além disso, que a CEA foi criada pelo Pentágono em 1961 para se contrapor à triunfante revolução cubana. Seguimos a pista e descobrimos que em Novembro de 1997 se reuniram os militares latino-americanos em Quito, onde trocavam a lista de subversivos. Posteriormente, reuniram se em La Paz, capital boliviana, sob a presidência de Hugo Banzer. Nesta ocasião, segundo os militares paraguaios que assistiram ao evento, concordaram em exigir a imediata libertação de Pinochet, então preso em Londres, por ordem do juiz Baltasar Garzón, acusado de crimes de lesa-humanidade.
– Que sugestões faria aos governos democráticos deste continente para que se faça justiça em relação às pessoas envolvidas naquele período pela forte repressão?
À excepção do Presidente Nestor Kirchner da Argentina, nenhum governo latino-americano tem realmente vontade política de fazer justiça com as vítimas da repressão. Por exemplo, no Chile o governo de Michele Bachellet tem um discurso progressista, mas que na prática é de direita, ao permitir que a morte alcançasse Pinochet impune e ao aceitar as honras militares ao ex-ditador. Lá reina realmente uma hipocrisia colectiva entre os quatro poderes do Estado, Executivo, Legislativo, Judiciário e as Forças Armadas e com uma burguesia post Pinochet insaciável, nunca investigada.
Mas a situação brasileira é ainda pior, porque o Exército nunca permitiu que se investigasse os seus crimes de lesa humanidade e muito menos entregasse à Justiça os documentos da Operação Condor. Devemos investigar o passado não só para castigar e condenar, mas, fundamentalmente, para aprender.
O drama dos presos/desaparecidos continua penoso... A dívida externa é uma criação dos militares da América Latina que os civis não se atreveram a tocar. É a firma pendente da democracia.
– Como analisa os últimos acontecimentos relacionados com a violência urbana aqui no Brasil, com sectores conservadores da sociedade defendendo penalidades mais rigorosas, até mesmo a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos?
Os governos brasileiros destes últimos tempos caracterizaram se pela sua ideologia atrasada que acredita que vai parar a violência com mais violência em vez de criar fontes de trabalho, saúde, educação e habitação. A política actual de Lula acaba provocando e legitimando essa violência, lamentavelmente. Sem mudar as estruturas económicas e sociais que oprimem os nossos povos não é possível acabar com a violência.
– Como está a situação no Paraguai?
No Paraguai de Nicanor Duarte Frutos, há uma pobreza explosiva. O actual governo caracteriza se por exportar os seus pobres para a Espanha e Argentina, porque aplica em toda a plenitude a política ordenada por Washington através do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Interamericano. Finalmente, o problema do Paraguai não é a pobreza, é o empobrecimento. Por isso, o que temos de combater não é a extrema pobreza, mas sim a extrema riqueza e a concentração desta riqueza em mãos de uma limitada oligarquia herdeira da ditadura de Stroessner. O desprestígio da democracia é tamanho no Paraguai que agora confunde se com a corrupção.
– Como analisa a próxima eleição no ano que vem no Paraguai? Acha possível a vitória de um candidato não do Partido Colorado a que pertenceu o ditador Stroessner?
O povo paraguaio quer a mudança, quer a alternância de poder, mas o oficialismo não sabe interpretar os sinais dos tempos. Stroessner endividou o Estado para que os pobres paguem essas dívidas e as empresas privadas aumentam os seus benefícios... Em 3 de Fevereiro de 1989, mudou o regime político, mas não mudou a natureza corrupta do Estado imposto por Stroessner. Por isso, há uma consciência clara dos de baixo de que não há ninguém que represente os seus interesses. O Partido Colorado deixou de ser a ferramenta de mudança. No Paraguai, é possível que ocorra exactamente o que aconteceu no Uruguai onde o centenário Partido Colorado apenas conquistou 10% do eleitorado. Segundo as últimas pesquisas Fernando Lugo, ex bispo católico, é o candidato favorito do eleitorado paraguaio.
– Que possibilidades efectivas tem Fernando Lugo de conquistar a Presidência enfrentando a máquina do Partido Colorado?
No Paraguai repete se o fenómeno argentino do ano 2000, na base da palavra de ordem “que todos (políticos) vão embora!” (que se vayan!). A sociedade civil já não se vê representada pelos seus deputados e senadores. A maioria deles, salvo raras excepções, tornaram se muito corruptos e ostentam o seu poder, ou seja, provocam! Nesse cenário, Fernando Lugo pode vencer a infernal maquinaria oficialista. A última concentração exitosa de mais de 30 mil pessoas organizada por Lugo sem “arriar” as pessoas, demonstra a aceitação de que goza por parte da população empobrecida, humilhada e perseguida. Isso aconteceu em 29 de Março último, em frente ao Congresso Nacional.
– Então acha que nesta altura vai ser difícil impedir a candidatura de Fernando Lugo como querem os sectores conservadores?
O oficialismo, a burguesia e a hierarquia católica continuam os seus ataques a Lugo, o candidato dos que não têm voz. O povo paraguaio tomou consciência de que é vítima da democracia de marketing com promessas não cumpridas e enganações por mais de 60 anos. Da economia de mercado ultimamente passamos à sociedade de mercado e a governos de mercado. Lugo recebe diariamente massivas adesões que desesperam os governantes de turno porque há uma pobreza explosiva. Parafraseando um destacado geógrafo brasileiro que escreveu A geografia da fome, Josué de Castro: «no Paraguai, os ricos não podem dormir porque têm medo dos pobres e os pobres não podem dormir porque têm fome...»
– Quando acha que a candidatura de Fernando Lugo se vai definir, ou seja, não haverá mais tentativas de impugnação?
A candidatura de Lugo esta definida. O movimento está a constituir urgentemente o seu quadro de condução a nível nacional e internacional. Lugo tem dois caminhos muito importantes a superar e para entrar na corrida. Primeiro, exigir a renúncia aos cinco Ministros da Corte Suprema de Justiça que avaliam a violação da Constituição Nacional por parte de Nicanor Duarte Frutos, Presidente do Paraguai, e, segundo, exigir a renúncia dos três Ministros da Justiça Eleitoral a serviço total do oficialismo. Para conquistar estes dois objetivos continuaremos a inundar a Justiça de exigências e as ruas de protestos ...
Em homenagem ao Monsenhor Lugo escrevi justamente o poema “Quando a rua se agita” musicado por Oscar Escobar e cantado por Ruben Dominguez. Um verso do poema diz assim: «A rua é o pulmão do meu povo em rebeldia / é a alma e coração / dessa grande massa bravia...»
Mário Augusto Jakobskind
Brasil de Fato
http://www.infoalternativa.org/amlatina/amlatina030.htm
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