segunda-feira, abril 02, 2007

Da Natureza do Homem: lendas urbanas e outras histórias

Não obstante todos as indicações em contrário da biologia e da sociobiologia, a concepção judaico-cristã do ser humano como naturalmente perverso preenche o léxico do imaginário da população em geral.

Segundo Ashley Montagu (in «The Nature of Human Aggression») na sociedade ocidental este pessimismo em relação à natureza humana foi secularizado ao longo dos séculos, o que explica que tenha marcado mesmo as lucubrações de pensadores ateus como Freud, Thomas Huxley (que introduziu o termo agnóstico), Herbert Spencer, Konrad Lorenz, Niko Tinbergen ou Desmond Morris. O facto de os autores citados serem cientistas de renome, autores de obras com grande divulgação entre o público em geral, contribuiu para o sedimentar desta descrença na bondade do Homem.

Todos estamos familiarizados com a cena de abertura do famoso filme de Stanley Kubrik «2001, Odisseia no Espaço» que corrobora esta noção da violência inata do Homem, que o acompanha desde os primórdios da evolução. Mas poucos saberão que com esta cena estão a assimilar as teorias (erradas) de um antropólogo australiano, Raymond Dart. Em 1924, Raymond Dart fez a descoberta que o tornou famoso. Dart estava interessado nos fósseis descobertos numa exploração de pedra em Taung, África do Sul, e descobriu entre eles o fóssil de um primata a que chamou Australopitecus africanus.

A descoberta por Dart do Taung Boy e a sua persistência em ir contra o que a comunidade científica defendia na época, determinado essencialmente por aquele que é hoje reconhecido como uma fraude grosseira, o suposto fóssil baptizado homem de Piltdown, foram determinantes no esclarecimento da evolução do homem. Mas as suas teorias sobre a selvajaria destes antepassados do Homem, amplamente divulgadas e amplificadas pelos media e passadas para as telas de cinema em filmes de culto, foram tão perniciosas na opinião pública quanto o Piltdown o foi para a ciência.

Dart concluiu erradamente dos fósseis de animais trucidados de forma violenta (por predadores que não o homem) descobertos nas imediações dos fósseis Australopitecus, que estes antepassados do Homem eram caracterizados por uma cultura «osteodonkeratic« (ossos, dentes e chifres), isto é, eram caçadores cruéis cujas tendências sanguinárias deixaram marcas indeléveis no comportamento humano. E escreveu em 1953, ano em que que foi reconhecido publicamente ser o Piltdown uma fraude:

«Os arquivos manchados de sangue e atrocidades - The blood-bespattered, slaughtergutted [sic] archives of human history, no original - da História da Humanidade, desde os mais antigos registos egipcios e sumérios até às mais recentes atrocidades da II Guerra Mundial, estão de acordo com o primitivo canibalismo universal, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou seus substitutos em religiões formalizadas, e com as práticas generalizadas de escalpelizar, caçar cabeças para reduzi-las, mutilar corpos, e com as actividades necrófilas da humanidade revelando esse hábito predatório, essa marca de Caim, essa sede de sangue que separa dieteticamente o homem dos seus parentes antropóides e o aproxima dos mais mortíferos dos carnívoros».

A influência da concepção judaico-cristã do Homem em Dart é evidenciada pela epígrafe deste artigo, «A Transição Predatória de Macaco a Homem», uma citação de Baxter, um famoso teólogo inglês do século XVII: «De todas as feras, a fera homem é a pior. Para as outras e para si mesma, o mais cruel inimigo».

A visão dos «macacos assassinos» foi popularizada pelo escritor Robert Ardrey em livros como «African Genesis» que por sua vez serviram de inspiração para a cena de abertura do filme «2001: A Odisseia no Espaço». Estas ideias foram fortemente criticadas na época e estudos posteriores provam que estão totalmente erradas.

Para desmistificar as lendas urbanas sobre a natureza malévola do Homem, recomendo o livro de Robert W. Sussman e Donna Hart «Man The Hunted: Primates, Predators, and Human Evolution». O livro «Biological Basis of Human Behavior: A Critical Review», e em especial o capítulo 20, intitulado «The myth of man the hunter/man the killer and the evolution of human morality», igualmente de Robert Sussman - disponível em formato pdf - é muito interessante porque sugere que as teorias de Dart, completamente erradas, prevalecem na opinião pública e mesmo em alguns membros da comunidade científica apenas porque «reflectem, reforçam e reiteram as nossas crenças culturais tradicionais».

Na realidade, não obstante todas as evidências em contrário, para o público em geral a imagem que perdura incontestada é a da violência primeva do Homem, a sua tendência intrínseca para o mal, um assassino da própria espécie.
Palmira F. da Silva
http://dererummundi.blogspot.com/

Sem comentários: