No Império Romano foi a inteligência colectiva dos burros a escolher e a reinventar os novos e melhores caminhos
Vivemos num pico de propaganda sobre as vantagens do fim do Estado e da bondade da iniciativa privada. Volto por isso aos romanos. O Império Romano não construiu as suas estradas, pontes e aquedutos com os fundos de um acto de beneficência organizado por um grupo de jograis ambulantes. Nem tais obras foram dirigidas pelos mercadores do trigo e do azeite. Nas obras esteve presente o Estado. Por questões práticas, e de sabedoria, os engenheiros romanos, construtores de estradas, mandavam à sua frente alguns burros esperando que estes animais escolhessem o melhor percurso. E foi a inteligência colectiva dos burros a escolher e a inventar os novos e melhores caminhos. Em Portugal somos governados pela direita disfarçada. Mas há também uma esquerda cada vez mais conservadora... e inoperante.
É um dado adquirido que as sociedades mudam permanentemente. Confrontados com esta realidade as pessoas e as instituições têm, pelo menos, duas formas de reagir. Podem optar pela mudança, pela actualização, pela transição para o novo, pela adaptação às novas realidades aparecidas na sociedade. Nesse caso procuram entrar em interacção com o mundo real, procurando manter princípios essenciais, mas respondendo aos novos desafios mesmo que para isso seja preciso sacrificar alguns detalhes e muito do que sendo acidental passou a ser ritualista, retórico, doutrinário, mera expressão simbólica do passado. Um passado que se perpetuou no presente de um modo quase mágico, mítico ou, pelo menos, religioso, às vezes até poético, heróico, mas que perante o desenvolvimento de novas realidades se foi progressivamente esvaziando de sentido. Um passado que deve ser entendido como passado, isto é, história.
As instituições, e as pessoas, podem ter uma reacção oposta. Perante as profundas alterações do clima social e das mudanças do ambiente cultural, político e económico, confrontadas com o que consideram ser uma crise dos valores até aí tidos como pilares sociais e políticos inamovíveis, imutáveis e estruturantes do seu modo de pensar o edifício social e o Estado, quer as instituições quer as pessoas crispam-se e, de «revolucionários», transformam-se em ferrenhos e resistentes conservadores. Nessa qualidade de resistentes, na defensiva perante qualquer mudança resistem até ao limite. Insistem então num processo de sacralização do efémero, do detalhe, do circunstancial, do datado, do que no passado lhes deu segurança e sentido à vida, fechando-se numa espécie de universo interno oposto ao mundo exterior. Todos os desafios de mudança se constituem em ameaça e provocam o erguer das velhas e esfiapadas bandeiras do passado.
Na sociedade actual não existe apenas um novo capitalismo ou neoliberalismo. A par da nova direita o poder dominante é também servido por partidos, que sendo de direita, ainda conservam rótulos de esquerda. Mas reconheça-se que do lado das esquerdas, que ainda se querem esquerda, tem medrado também um neoconservadorismo. Trata-se de uma negação prática, concreta, do espírito revolucionário. É uma recusa de mudanças radicais no modo de pensar e de agir político. Uma rejeição em promover novas respostas tanto aos velhos como aos novos desafios a que a esquerda está agora sujeita. É assim que quanto mais o mundo se altera mais se acentua a ansiedade em muitas instituições e pessoas. Toma dimensão nunca vista o desejo de nada ceder, nada corrigir, nada adaptar, nada mudar, nada criar de novo. Não se procura o campo aberto. Não se corre contra o vento. Defensivamente, dizendo avançar mas sempre recuando, saltam de trincheira em trincheira, agarrados a velhas práticas e estereótipos. Imaginam que é esse o modo de sobreviver no pântano social em que a sociedade se irá inevitavelmente afundar. Gritam. Protestam. Iludem-se. Nada conquistam. Resignados, resistem. Onde antes se usava e ousava a palavra «revolucionar» passa a usar-se apenas a palavra «resistir». Resistir é uma palavra de ordem que brota da ideia de que mudar agora só pode ser para pior. Por isso, todos os que ousam transformar e desafiar os velhos estereótipos e (pre)conceitos das esquerdas, se tornam ainda mais ameaçadores e merecedores de combate que os velhos inimigos da direita.
Ser «puro», isto é, repetir religiosamente ideias e conceitos petrificados é fácil, ainda que tenha como consequência inevitável ancorar-se em seitas cada vez mais diminutas. Difícil é abrir-se e enfrentar a realidade. É não desistir de estudar, analisar e pensar o mundo em que somos chamados a viver e a intervir. Exigente é procurar novos caminhos que respondam aos direitos e necessidades do povo. Trabalhoso é procurar novas formas de combater com eficácia os novos senhores no poder. Fácil é fazer a opção pelo fixismo, pela recusa à procura da reinvenção ou da reconfiguração das práticas sociais, culturais e políticas.
Neste tempo, perante situações tão novas quanto desafiantes e de risco os que se mumificam são por vezes mais exaltados e até tidos como mais coerentes. Como se a coerência não fosse a capacidade de avançar dialecticamente, reinventado o novo, mantendo o rumo e salvaguardando as conquistas históricas e essenciais à civilização humana. Mumificar-se repetindo «ad eternum» rituais desadequados à realidade e condenados ao insucesso, mas contidos no velho catálogo de «luta» de alguma esquerda, é o modo que muitos continuam a usar para exorcizar os que cometem o «pecado» de procurar novos modos de fazer política a favor dos mais desfavorecidos.
É evidente que a procura de adaptação aos sinais do tempo contem o risco de desagregação ou da perda de identidade. A História mostra-nos que o desenvolvimento humano não se fez sem riscos, sem dor e sem profundos saltos epistemológicos, com profundas rupturas com as práticas anteriores. Mas não correr o risco de perda de identidade significa a certeza de transformação numa seita fechada, árida, intransigente, cada vez mais pequena e tão mais «ideologicamente pura» quanto mais condenada à perda de qualquer papel social e, no final, ao completo desaparecimento. O risco de não ousar reinventar-se como força revolucionária está na quase fatalidade de se transformar num inoperante e minúsculo grupo de jograis-políticos produtores de cenas pobres para o pobre espectáculo mediático do poder dominante.
A esquerda actual, a que ainda é esquerda, está irremediavelmente condenada a optar por um destes dois destinos: ou se reinventa e reinventa novas práticas de luta política, novos caminhos, novas formas de pensar e de organizar os sistemas sociais e o Estado, ou se condena a morrer em cada trincheira a que se acolhe, apenas resistindo. A redução da prática política ao mero protesto é uma espécie de esquizofrenia que procura conciliar o inconciliável. Não basta gritar o que não se quer, dando a entender que se quer alguma mudança sem dizer que mudança se quer.
Evitar o desaparecimento das organizações populares - por incapacidade ou falta de vontade de se repensarem - implica a capacidade de ler os sinais dos tempos. Obriga à experimentação de novos processos e caminhos. Exige a participação de todos os que defendem o património historicamente construído pelos que estiveram, e muitos caíram, do lado do trabalho e dos trabalhadores. Mas, sobretudo, obriga a rejeitar os esquemas políticos, dependentes, e de lideranças miraculosas que são património próprio da direita.
http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=5292
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