No excelente blog De Rerum Natura, o Desidério Murcho tem um artigo perfeito (1). Claro, inteligente, e conciso, com muito com que concordo e algo de que discordo. Exactamente como eu gosto.
Concordo que a abertura à crítica e o confronto de hipóteses tem que fazer parte de qualquer investigação séria, seja qual for o tema. Concordo que se deve respeitar provas e não autoridades. Concordo que a abordagem crítica que dá a compreender a química e a física se aplica a fantasmas e deuses, se os houver. E concordo que sem esta abordagem não há conhecimento. Mas não concordo que «em muitos casos a ciência não é falsificável». Mais concretamente, como esclarecemos em conversa nos comentários a esse post, discordo que haja conhecimento a priori. Ou seja, que haja conhecimento sem observação.
Muitas vezes se aponta a lógica ou a matemática como exemplos de conhecimento a priori. É possível deduzir toda a geometria Euclideana partindo de alguns axiomas. O problema é que é possível deduzir infinitas geometrias não Euclideanas partindo de outros axiomas. O conhecimento não é nem uma nem todas estas geometrias. O conhecimento aqui é distinguir qual a mais adequada, e isso exige observação.
Vou dar um exemplo. Concebo um universo hipotético composto de blahs e blehs. Nesse universo a operação blih converte um blah num bleh, ou um bleh num blah. Daqui deduzo duas verdades a priori: que blih de bleh dá blah, e que blih de blah dá bleh. Isto é conhecimento? Não. É treta. Criei um modelo conceptual, posso complicá-lo arbitrariamente, posso criar alternativas infinitas, mas não passa de imaginação. Como este, todos os modelos científicos, e todos os modelos não científicos, podem ser criados a priori só pela imaginação. Na prática não temos imaginação que chegue, e até para a matemática dependemos da experiência. Se não fosse ter que contar ovelhas e ânforas de azeite nunca teríamos matemática. Mas, em princípio, qualquer ideia pode surgir do nada.
Mas ideias não são conhecimento. Quem imagina a química dos quatro elementos, do flogísto, da transmutação alquímica e da mecânica quântica tem uma grande imaginação. Mas só tem conhecimento se souber qual destes modelos melhor corresponde à realidade. Mesmo o exemplo clássico da verdade a priori, que nenhum solteiro é casado, só é conhecimento na medida em que «solteiro» e «casado» correspondem a estados observáveis. Sem essa correspondência temos «nenhum blah é bleh», que ninguém diz ser conhecimento.
Talvez pareça batota semântica, mas «conhecimento» deve-se referir apenas à informação acerca da correspondência entre ideia e observação. Isoladamente, ideias e observações não são conhecimento. Só obtemos conhecimento ao descobrir como (algumas) ideias encaixam nas observações. Isto não pode ser feito a priori porque precisamos das observações, mesmo que a ideia surja a priori. Nem pode ser feito com ideias não falsificáveis, porque essas não têm encaixe nenhum.
E penso que este não é um argumento a priori, porque encaixa na realidade que observo. Pode ser concebido a priori: se conhecer é saber que um modelo corresponde à realidade, então não há conhecimento sem observação. Mas isto não é só blahs e blehs porque podemos confrontar esta ideia com a realidade, e ver como se aplica na prática. Na prática, não chamamos conhecimento a uma proposição que não pode ser falsa à custa de não ser acerca de coisa alguma. Muito menos chamar-lhe ciência.
Desidério Murcho, 29-3-07, Ciência e banha da cobra
Por Ludwig Krippahl
http://ktreta.blogspot.com/
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