segunda-feira, abril 02, 2007

Jónatas Machado e a Filosofia da Ciência

Num artigo no Ciência Hoje (1), Jónatas Machado (JM) resume em apenas 3,145 palavras (contou-as o Santiago, em 2) o que outros diriam em mais de três: «Deus não é explicação». Tão sucinto foi que, naturalmente, algumas coisas ficaram menos claras. São essas pequenas falhas que tentarei colmatar.

Primeiro, JM diz que a ciência parte de uma premissa naturalista. Faltou aqui dizer que a ciência parte sempre de muitas premissas. Chamam-se hipóteses, e o objectivo é encontrar as que melhor correspondem ao que observamos. Há uns séculos, a ciência favorecia a hipótese de Deus como explicação. Mas o sucesso de alternativas mais detalhadas que «ah, isso foi Deus» favoreceu essas hipóteses naturalistas. Não por uma limitação do método científico, mas pelas mesma razão que quando o carro não pega o levamos ao mecânico em vez de rezar para que Deus mude as velas. O naturalismo corresponde melhor à realidade do que criacionismo do judeo-cristianismo evangélico literalista bíblico.

Em segundo lugar, JM parece confundir a evolução com a teoria da evolução. É o que dá resumir tudo tão resumidinho. Há tantas observações a apoiar a evolução que a consideramos um facto, como a gravidade ou a Terra orbitar o Sol. A Terra tem biliões de anos, havia espécies que se extinguiram, as espécies modernas descendem de espécies antigas, e o governo não se vai esquecer de cobrar o IRS este ano. São factos. Contem com isso. E a teoria da evolução é a teoria que explica o facto (facto!) de as espécies terem evoluído e continuarem a evoluir. A tarefa do criacionismo é difícil. Não só querem refutar uma das teorias mais sólidas da ciência moderna, como querem refutar os factos que a teoria explica. É como ser tão contra a relatividade que nem sequer se aceita que haja gravidade.

Em terceiro lugar, JM fala da «evolução aleatória». Um termo estranho. Se fosse aleatória não precisávamos de a explicar. A biologia moderna reduzia-se a um conveniente «Olha, calhou». Mas a noção de evolução aleatória sugere uma solução para este debate. Se Deus criou as bactérias sensíveis à penicilina, e se a evolução aleatória não pode criar informação, então não pode haver agora bactérias que resistam à penicilina. Basta os criacionistas se recusarem a tomar qualquer outro antibiótico que a controvérsia acaba em duas ou três décadas.

Em quarto lugar, JM dá um salto de fé ao propor que toda a biologia moderna deriva de assumir que não foi deus que fez isto:

«Se a possibilidade de uma criação sobrenatural é excluída à partida, então a única possibilidade admissível é a evolução cósmica e biológica aleatória. Só pode. Não é?»

Não. Há a possibilidade de criação por um ser natural, de geração espontânea, de evolução por herança de características adquiridas, de ter sido sempre assim, e uma infinidade de outras. A alternativa a “ah, isso foi Deus” não tem que ser forçosamente a teoria da evolução como temos hoje. O que nos trouxe aqui não foi uma premissa pequenina, mas uma enorme montanha de observações e experiências que o universo nos deu.

Mas no título JM acertou em cheio: «O paradigma naturalista». A ciência já explorou muitos paradigmas: os quatro elementos, o vitalismo, o catastrofismo, a mecânica de Newton, o calórico, etc. A maioria foi como veio, sobrenaturais ou naturais. No século XIX havia o éter, um fluido que permeava todo o universo, que não se via nem se sentia, mas milhões de vezes mais rígido que o aço, e que vibrava à frequência da luz. Para mim, isso é que é sobrenatural. Hoje temos o princípio de incerteza de Heisenberg, que aceitamos como natural mas que deveria parecer sobrenatural a alguém do século XIX. A noção de natural muda conforme muda a percepção da natureza.

Hoje aceitamos que a natureza é natural. É o paradigma vigente, e não porque o método o obrigue. Pelo contrário, só recentemente é que a ciência o aceitou. Teve que ser. O universo refutou todas as alternativas com que desesperadamente tentámos salvar as nossas superstições. Foram-se os dragões, os unicórnios, os anjinhos e os deuses. Nem o Pai Natal resistiu ao limite de velocidade que a relatividade impôs.

(700 palavras... por favor leiam quatro vezes para ficar mais ao nível do texto do Jónatas Machado)

1 - Jónatas Machado, 29-3-07, O paradigma naturalista
2 – Santiago, 29-3-07, Ciência Anteontem...
Por Ludwig Krippahl
http://ktreta.blogspot.com/

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