Voltar ao México é sempre para mim o reencontro com um povo que me fascina como nenhum outro na América Latina.
Tão imprevisível é ali tudo que ao chegar não tento imaginar o que vou sentir.
Em Março durante duas semanas escassas confirmei essa certeza.
Em vésperas da viagem lera o ensaio de um historiador famoso sobre as lutas sociais na América. A referência ao México era brevíssima. Na sua opinião nada ali acontecia que merecesse comentar, num momento em que no Sul do Hemisfério crescia a vaga anti-imperialista e as políticas neoliberais eram repudiadas pelas grandes maiorias.
É uma opinião de que discordo.
As aparências da vassalagem mexicana perante o sistema de poder dos EUA são enganadoras. Numa palestra que fiz em Córdoba, no estado de Veracruz, comparei o México a uma mulher grávida. O parto ainda não tem data, mas as tensões acumuladas no ventre da terra mexicana anunciam uma nova vida.
A previsão parece absurda porque o actual presidente é um político de direita defensor de um reforço da aliança com Washington. As circunstâncias em que Felipe Calderón foi investido na Presidência ajudam, porém, a compreender a complexidade de uma crise do poder das forças mais reaccionárias do país após a vitória de Pirro por elas alcançada.
O candidato do Partido de Acción Nacional - PAN foi declarado vencedor das eleições pelo Instituto Federal Eleitoral pós uma gigantesca e inocultável fraude. Esta repetiu outras anteriores, mas em circunstâncias tão escandalosas que se tornou inevitável uma recontagem dos votos, aliás também fraudulenta.
Calderón sucedeu a Vicente Fox, o primeiro político da direita assumida que chegou à Presidência após a vitória da Revolução Mexicana há quase 90 anos.
Fox, presidente da Coca-Cola, um empresário sem passado político, foi apoiado pela organização ultra-direitista Yunque que controlava a direcção do PAN. A sua mulher, Marta Sahagun (que somente não foi candidata por estar envolvida em escândalos maiúsculos), manteve relações estreitas com os Legionários de Cristo, uma associação de fanáticos anti preservativo, defensora da imposição do catolicismo como religião de Estado. Fez a política que dele se poderia esperar.
O candidato do Partido Revolucionário Institucional (PRI), Roberto Madrazo, partiu para a eleição derrotado. O velho partido é hoje uma relíquia que nada tem de revolucionário. Cabe-lhe a responsabilidade de, em sucessivos governos, ter destruído grande parte do sector empresarial do Estado. Acumpliciado com o PAN, foi no Poder um executor fiel das receitas neoliberais impostas pelo Consenso de Washington.
A luta eleitoral travou-se, assim, entre o PAN e o Partido da Revolução Democrática- PRD.
Os media internacionais, com poucas excepções, identificaram o PRD como um partido de esquerda. Alguns foram mais longe: definiram Andrés Manuel Lopez Obrador ,o seu candidato, como um politico de tendência socialista.
Trata-se de uma inverdade. Obrador nunca falou de socialismo na sua campanha, nem sequer como meta distante.
No México há quase duas décadas não participa em eleições por falta de registo eleitoral qualquer organização socialista.
Obrador pode ser definido como um social-democrata moderado. Manteve a tradição. Cuauhtemoc Cardenas, o fundador do PRD, desenvolveu esforços em 1999 para chegar a um acordo com o PAN cujo objectivo seria evitar a vitória do candidato do PRI. Lopez Obrador aprovou. "Temos discordâncias – afirmou então em Tabasco – mas a democracia está em primeiro lugar" [1] .
Estranho conceito de democracia que abrange um partido aberto a entendimentos com deputados da extrema-direita.
Os acordos políticos espúrios são aliás tradicionais na falsa democracia mexicana. Cabe recordar que durante a Presidência de Salinas de Gortari, o PRI e o PAN tinham actuado no Congresso como forças complementares na ofensiva neoliberal de privatizações. Salinas, um Harvard Boy, precisou então dos votos da bancada panista para impor as emendas constitucionais que destruíram conquistas históricas da Revolução Mexicana.
Falseiam portanto a realidade os analistas que "acusaram" Lopez Obrador de ser um reformista revolucionário, vendo nele um aliado potencial de Hugo Chávez. O candidato do PRD nem sequer declarou ser anti-capitalista. É suficiente ler o seu "Projecto Alternativo de Nação" para se perceber que o Programa da coligação Por el Bien de Todos não era de esquerda. Durante a campanha eleitoral as criticas ao imperialismo foram, aliás, tímidas.
É um facto que somente uma enorme fraude impediu Obrador de ser proclamado Presidente da República. Uma fraude tão transparente e escandalosa que o candidato roubado não reconheceu a decisão do tribunal Eleitoral e constituiu um governo paralelo, declarando ilegítimo o de Felipe Calderón.
O escândalo foi tanto maior quanto durante mais de um ano as sondagens atribuíam a Lopez Obrador uma vitoria confortável sobre o candidato do PAN.
A OUTRA CAMPANHA
Um sector ponderável da sociedade mexicana extraiu, entretanto, conclusões inesperadas da fraude eleitoral. A máscara democrática do regime caiu com estrondo.
A rebelião de Oaxaca não deve ser interpretada como acontecimento localizado, que expressou a revolta dos habitantes de uma cidade contra o abuso de poder de um governador brutal.
A chamada "Comuna de Oaxaca" resistiu durante meses a uma repressão criminosa. O governo de Calderón acabou por lançar o exército contra a população. Mas não atingiu o objectivo. Os apelos, reivindicações e denúncias da Assembleia Popular do Povo de Oaxaca (APPO) atravessaram fronteiras e sensibilizaram a humanidade progressista para lutas que, transcendendo o âmbito do México, têm um significado simbólico.
Surtos de rebeldia, reprimidos com violência pelo governo, demonstram que Oaxaca não foi um protesto isolado. Posteriormente foi em Atenco. Depois a repressão chegou a Chiapas, berço do Zapatismo.
Cientistas sociais que apoiaram a candidatura de Lopez Obrador tentam minimizar o significado da Outra Campanha, o movimento lançado pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional e por organizações revolucionárias como o Partido dos Comunistas Mexicanos.
A minha visita ao México fortaleceu a convicção de que A Outra Campanha – iniciativa de que pouco se falou na Europa e mal compreendida por personalidades progressistas na América Latina – não agiu irresponsavelmente ao apelar à abstenção.
A rebelião de Oaxaca confirmou a correcção da estratégia que levou destacados intelectuais a distanciar-se do subcomandante Marcos e da nova estratégia revolucionária do EZLN.
A Outra Campanha partiu da conclusão de que qualquer que fosse o candidato eleito a politica de submissão aos EUA prosseguiria. Obviamente Obrador difere muito do Calderón. Mas no fundamental ambos desenvolveriam políticas neoliberais, invocando a democracia para a negarem na prática, governando para os de cima contra os de baixo.
Essa Campanha inédita começou a esboçar-se quando o subcomandante Marcos, em nome do EZLN, numa inflexão estratégica inesperada, propôs à esquerda revolucionária e a movimentos sociais progressistas uma alternativa ao processo eleitoral tradicional e em choque com ele. Uma Campanha sem candidato, orientada para a denúncia do sistema, com um rosto claramente anti-capitalista e revolucionário.
Numa primeira etapa os dirigentes e activistas da campanha percorreram numerosos Estados. Não pediram votos. O objectivo era tornar transparente que o responsável pelos grandes problemas que preocupam as populações é um sistema, o capitalista, e que a luta para o destruir será muito prolongada e difícil e exigirá a unidade dos povos indígenas, da classe trabalhadora, dos camponeses, das mulheres, dos jovens, dos estudantes e intelectuais progressistas.
"Para identificar esse inimigo comum – as palavras são de Pablo Blanco Cabrera, dirigente do Partido dos Comunistas – a Outra Campanha adoptou um método: ouvir. E então, quando um camponês do Sudeste consegue escutar um camponês do Norte e percebe que enfrenta exactamente o mesmo problema e o mesmo inimigo, compreende que não pode lutar sozinho. Ocorre o mesmo com trabalhadores, com os jovens, etc. Temos agora um movimento muito amplo, extensivo, que sabe não ser suficiente mudar um governo, que é indispensável mudar um sistema, um movimento que compreende a necessidade de romper radicalmente com o neoliberalismo e o capitalismo. E é esse elemento de qualidade que diferencia a luta no México da travada por povo irmãos do Continente. Essa é a garantia de que, chegado o momento não será possível deter o impulso de um povo decidido a pôr-se de pé".
Oaxaca aponta um caminho. Os surtos de rebeldia irrompem inesperadamente em áreas muito distantes. Em Guerrero Negro, na Baixa Califórnia, após anos de espera por decisões judiciais, centenas de ejidatários (camponeses que partilham uma forma tradicional de propriedade colectiva) decidiram recuperar terras de que a Mitsubishi os tinha despojado, terras muito ricas em petróleo. Em Sinaloa os pescadores mobilizaram-se para uma luta de larga duração, o mesmo acontecendo com os comuneros de Parota.
São revolucionários com formação politica esses trabalhadores? Não. Mas o desespero levou-os a adoptar modalidades de luta que anos atrás eram impensáveis. Finalmente, compreenderam que nada podem esperar de um sistema de fachada democrática.
Emiliano Zapata e Pancho Villa, os grandes caudilhos da segunda década do século XX, não tinham sequer conhecimento do marxismo quando se levantaram em armas contra a opressão secular de que eram vítimas os camponeses da época. E, contudo, foram pioneiros e heróis de uma revolução nacional libertadora. Ambos tomarem consciência de que a democracia maderista era, afinal, uma falsa democracia e que a Revolução Mexicana somente avançaria se o povo oprimido assumisse o seu papel de sujeito da História.
Não pretendo estabelecer analogias porque o século XXI é profundamente diferente daquele em que viveram e lutaram Zapata e Villa.
Mas a Outra Campanha está abrindo os olhos a uma geração de mexicanos, vítima de um sistema instaurado paradoxalmente pela Revolução que, ao institucionalizar-se, se tornou progressivamente contra-revolucionária.
A sua segunda etapa estará nas estradas do México no momento em que escrevo.
O QUE VI E SENTI
Transcorreram duas semanas desde que regressei do México. E tenho ainda dificuldade em arrumar as ideias. Imagens, sensações, emoções, a memória do que vi, ouvi e senti fundem-se num painel de contornos imprecisos, tão complexo que imprime à reflexão rumos que não consigo controlar.
Identifico no México, repito, a cultura mais fascinante da América. Filho de duas civilizações que se chocaram tragicamente, o seu povo mestiço ainda não forma uma nação. A dualidade que persiste não impediu a formação de uma consciência nacional muito forte. É suficiente visitar o Museu Nacional de Antropologia – um dos mais belos do mundo – e entrar na grande sala de Tenochtitlán para se captar o orgulho doloroso da mexicanidade e a esperança que ele abre para o futuro, enraizada nas tormentas de um passado semeado de humilhações.
Participei no Seminário Internacional do Partido do Trabalho, numa Conferência Nacional de Solidariedade com o povo da Colômbia, pronunciei uma Conferencia na Universidade Nacional Autónoma do México (380 mil estudantes e professores), e fiz duas palestras nos Estados de Veracruz e Morelos.
Eram obviamente diferentes os públicos e a atmosfera. Mas uma ponte os uniu. O México é neste início do século XXI um laboratório onde ferve o debate de ideias. O repúdio do neoliberalismo, cujas polítcas são responsáveis por um empobrecimento progressivo do povo, não obstante o pais ser riquíssimo em recursos naturais, contribuiu para reforçar o sentimento anti-imperialista, profundamente ancorado no coração dos mexicanos.
A permanência no governo de uma burguesia reaccionária, submissa a todas as imposições do sistema de poder dos EUA, estimula a repulsa pelo Tratado de Livre Comercio da América do Norte, que recolonizou o país.
A convicção de que a conquista da independência real passa pelo processo de integração dos povos a Sul do rio Bravo deixou de ser um sonho para se tornar objectivo. A defesa da integração manifesta-se em discursos diferentes, consoante a ideologia, mas ganha adeptos a cada mês. A popularidade de Hugo Chávez, hoje o revolucionário que empunha a bandeira unidade latino-americana, reflecte o renascimento do projecto de Bolívar.
A participação dos jovens militantes no debate dos grandes problemas do nosso tempo impressionou-me muito.
Em Córdoba, Vera Cruz, e Jojutla, Morelos, falei para quadros do Partido dos Comunistas, promotor desses encontros. Independentemente do tema das palestras, foram levantadas questões inseparáveis da crise global que a humanidade enfrenta. As perguntas deixavam transparecer um nível de informação elevado e uma formação ideológica marxista pouco comum noutros países do Continente. Do Iraque, do Irão, da Palestina e do sionismo partia-se para problemas da Ásia Oriental, o agravamento da crise do sistema imperial estadunidense, e daí para a União Europeia, as eleições francesas e a América Latina. Os jovens comunistas mexicanos manifestaram um interesse especial pelos desafios colocados pela transição do capitalismo para o socialismo, pelas causas profundas, internas e externas, do fim do socialismo na URSS, pelos trabalhos de marxistas europeus como Georges Labica, Henri Alleg, Gastaud e István Meszaros. Chamei a atenção para o grande significado do livro "Lenine e a Revolução", do professor francês Jean Salem – praticamente ignorado no seu país – e, quando foi colocado o tema do Socialismo como única alternativa ao capitalismo em fase senil, o debate prolongou-se.
Na América Latina tornou-se quase uma moda defender aquilo a que chamam o Socialismo do Século XXI. O facto de Hugo Chávez e destacados académicos utilizarem a expressão e fazerem a apologia de um socialismo de contornos difusos tem contribuído para uma chuva de adesões a algo que ninguém sabe exactamente o que é, para além de uma fórmula vazia de conteúdo. Registei que os comunistas mexicanos têm consciência da diversidade da América Latina. Defensores da integração económica dos países irmãos do Hemisfério, não desconhecem que o socialismo terá de apresentar cores nacionais em sociedades culturalmente tão diferentes como são o México e o Paraguai, a Argentina e a Guatemala, o Brasil e o Equador.
Aliás, a moda do Socialismo do século XXI tem sido utilizada por alguns intelectuais, sobretudo de tendência anarquista e trotskista, para catilinárias anti-soviéticas nas quais as criticas a Stalin e à dramática burocratização do PCUS funcionam como trampolim para o ataque à Revolução de Outubro, à sua herança, e a Lenine.
NO MÉXICO ENCANTATÓRIO
No México invade-me sempre a sensação estranha de que descubro aquilo que contemplei em visitas anteriores. É um redescobrimento do conhecido.
Não voltei desta vez a Teotihuacan, a cidade mágica cujas ruínas apareceram como obra divina aos astecas, no século XIV, quando caminhavam pelo planalto rumo à grande laguna onde fundariam Tenochtitlán destruída pelos espanhóis duzentos anos depois.
Mas passei horas no museu de Antropologia e no do Templo Mayor, em meditação sobre a história de uma civilização assassinada.
A herança monumental e as mensagens pungentes deixadas pelo povo de Cuauhtemoc empurram-me sempre para viagens pelas estradas da imaginação. Na busca de um paralelo para o encontro e o choque de Hernan Cortez com a grande metrópole asteca ocorre-me que o desenvolvimento brutal da história foi ali algo não muito diferente do que teria acontecido se Afonso de Albuquerque, ao chegar a Ormuz, tivesse encontrado uma cidade como a Babilónia de Hamurabí.
No meu perambular pelo centro histórico da metrópole tentacular redescobri o genocídio da colonização e o pulsar da epopeia revolucionária do século XX nos murais de Diego Ribera tão harmoniosamente inseridos na monumentalidade do Palácio Nacional dominando o Zocalo, a maior praça da América.
Revisitar Coyoacan, ilha de arte e tranquilidade incrustada na megalópolis, foi um dever para sentir na Casa Azul a magia humana de toques surrealistas da companheira de Diego, Frida Kahlo, outro génio da pintura contemporânea. Ali viveu Trotsky, na primeira fase do seu exílio mexicano, antes de se mudar para a vivenda, a dois quarteirões de distância, onde foi assassinado em 1940. Hoje é um Museu onde se sente o movimento da História. Tudo ali parece ao visitante simultaneamente próximo e muito distante.
O tempo era curto, mas encontrei um dia para ir até Taxco, uma das mais belas cidades coloniais da América. Percorrendo as suas ruelas emolduradas por brancos casarões setecentistas, senti algum mal-estar pela contradição entre o tempo parado da Nova Espanha da época dos Bourbons e a modernidade agressiva da onda turística. Na velha Plaza de Armas, uma Igreja de pedra rosada exibe os esplendores floridos do churrigueresco e do plateresco da Espanha em decadência. O ouro, no retábulo e nas capelas, recorda a riqueza insolente dos senhores da Conquista nascida da dominação criminosa sobre os filhos da terra. Li num guia que o templo foi construído por um espanhol dono de nove minas de prata e uma de ouro.
Taxco, desafiando o tempo, apareceu-me como imagem do México encantatório, um país no qual o sofrimento e a alegria formam um amálgama comovente. Sob o manto de um pessimismo secular mantém-se viva ali uma esperança infinita.
Essa esperança tocou-me como chicotada na antiga hacienda que foi Quartel General de Emiliano Zapata, perto de Jojutla. A Revolução Mexicana, como outras, foi antropofágica. Devorou os seus melhores filhos. Mas as sementes não secaram. Podem germinar novamente.
Pavel Blanco, o jovem dirigente comunista, afirma que no México "a vontade de luta de um povo que sabe esperar, mas cuja paciência chegou ao limite, se combina hoje com situações objectivas inaceitáveis para a vida e com um elemento novo, a unidade de rebeldes e revolucionários".
O México, insisto, lembra uma mulher grávida, em cujo ventre germina uma nova vida.
[1] Octávio Rodriguez de Araújo, México en Vilo, 2ª edição, Jorale Editores, México, Setembro de 2006
Miguel Urbano Rodrigues
http://resistir.info/
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