Proveniente de Madrid, com escala em Oran, o voo da Companhia Air Algérie aterra no pequeno aeroporto militar de Tindouf, no sudoeste da Argélia. É nesta região inóspita do Saara que se situam os campos de refugiados saarauis, o complexo político/administrativo da Frente Polisário e os órgãos de Estado da República Árabe Saaraui Democrática. Delegações de cinco continentes desembarcam e pisam com emoção aquela terra solidária com a causa saaraui, sob um sol branco e forte, ainda assim uma temperatura amena e suportável e muito longe dos cinquenta e tal graus da época de Verão. A convite da Frente Polisário vão participar na Conferência Internacional de Solidariedade com o Povo saaraui, um povo que resiste e luta, em condições verdadeiramente dramáticas, pelo direito à fundação do seu Estado nacional, independente e soberano.
As formalidades são cumpridas com eficiência pelas autoridades argelinas e as delegações, agora sob a orientação directa dos responsáveis da Frente Polisário, são alojadas nos quatro campos de refugiados (Smara, El Ayon, Dakhla e Awsard) e entregues aos cuidados das famílias saarauis de acolhimento.
Nestes campos, que adoptaram os nomes das cidades ocupadas pelo regime ditatorial marroquino, estão cerca de 200 mil refugiados que aqui procuraram abrigo quando, em 1976, fugiram aos bombardeamentos com napalm por parte dos invasores mauritano-marroquinos.
Nos campos, onde a situação sanitária e alimentar é de uma precariedade permanente, as populações saarauis vivem em casas rudimentares feitas de adobe (barro) ou em tendas.
O boicote à ajuda humanitária por parte de Marrocos, perante a passividade da ONU no terreno, tem agravado este problema e as dificuldades de vida nestes campos. A população reage e enfrenta esta realidade dramática com uma vontade, coragem e uma dignidade que impressionam. O que nos leva a interrogar sobre qual o grau de sacrifícios e privações que terá de suportar um povo para que as instâncias internacionais actuem. Apesar dos responsáveis saarauis alertarem e apelarem insistentemente à comunidade internacional no sentido de obterem uma significativa ajuda no plano alimentar e sanitário, onde está o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados?
É com o raiar do dia e com despedidas cheias de emoção que as delegações partem para os territórios da República Árabe Saaraui Democrática. O destino é Tifariti, capital dos territórios libertados, onde se desenrolarão os trabalhos da Conferência de Solidariedade, o que acontece pela primeira vez desde o eclodir do conflito em 1973. Todas as conferências têm sido realizadas no exterior.
Até lá são 340 km de jeep pelo areal imenso, ou planuras pedregosas a perder de vista, onde as estradas são trilhos e os sinais de direcção meras referências na paisagem. Pelo meio, ficou uma curta pausa para uma refeição fugaz à sombra de uma acácia, a que não faltou o famoso “tê” – o chá que é uma síntese da cultura da vida e das esperanças deste povo.
Durante o longo trajecto, aqui e acolá manchas verdes escuras das acácias, que albergam famílias nómadas com os seus rebanhos de cabras ou filas de camelos, a lembrar-nos que estamos em pleno deserto do Saara.
TIFARITI, SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA
A temperatura de 27º é suportável, mas a noite é fresca. Já no interior dos jeeps o ar é irrespirável; vale nos o turbante que actua como autêntico filtro da poeira que sufoca as vias respiratórias.
Finalmente, ao longe, entre nuvens de pó e gritos de alegria, aparece Tifariti – um promontório situado no meio dum gigantesco e profundo vale, situado a cerca de 100 km das linhas marroquinas. Edifícios coloniais tipo fortins, que albergam o hospital e outros serviços administrativos, e muitas tendas gigantes constituem aquela pequena cidadela alimentada a gerador.
À entrada, elementos do exército de libertação e polícias que fiscalizam e dão indicações para o estacionamento.
É uma cidade histórica, sede de uma das quatro regiões militares existentes nos territórios libertados. É também um símbolo de resistência tenaz ao invasor marroquino e foi aqui que, em 27 de Fevereiro de 1976, a Frente Polisário proclamou a independência da República Árabe Saaraui Democrática, logo reconhecida por dezenas de países.
Das entranhas do deserto e envoltas numa nuvem de poeira continuam a chegar os jeeps que transportam as delegações de partidos, sindicatos, cooperativas, ONG’s, associações ou representações a nível de Estado, e são muitas: Argélia, África do Sul, Cuba, Venezuela, Angola, Itália, França, Espanha, Suécia, Alemanha, Mauritânia, Bélgica, Palestina, Quénia, México, El Salvador, Etiópia, Vietname, Portugal, etc.
A presença de tão grande número de participantes na Conferência, realizada de 26 a 28 de Fevereiro, é a confirmação de que está vivo o espírito solidário e internacionalista entre os povos que lutam e resistem e, neste caso particular, o apoio de combate militante com a nobre e patriota causa do povo saaraui. É também a compreensão da importância que esta conferência poderá significar, como fórum de alerta e pressão sobre as instâncias internacionais e de mensagem de esperança para as populações, militantes e patriotas que resistem nas condições particularmente difíceis de repressão policial e militar nos territórios ocupados pela monarquia marroquina.
Mas afinal o que está em causa no Saara Ocidental? Para situar a questão importa lembrar um pouco de história.
O Saara Ocidental foi uma colónia espanhola desde 1884. O interesse de Espanha era meramente militar já que as suas costas atlânticas protegiam as Ilhas Canárias e a retaguarda de Marrocos, território na altura cobiçado por Madrid e Paris.
A ocupação contou desde sempre com a resistência dos chamados “homens azuis” do deserto, que desencadearam uma longa luta de guerrilhas contra os propósitos das potências colonialistas de dominarem o interior do território.
A TRAIÇÃO DA ESPANHA
Os ventos de independência que atravessaram a região de Magreb (a Argélia, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Tunísia) estimularam os nacionalistas saarauis que fundam, em 1967, o movimento Al Muslim e, em 1968, a Frente de Libertação do Saara. Em 1979, manifestações pró-independência foram brutal e sangrentamente reprimidas, colocando aos dirigentes saarauis a inevitabilidade da luta armada. Em Maio de 1973 foi constituída a Frente Popular de Libertação de Saguia el Hamra e Rio do Ouro (Frente Polisário). A luta armada inicia se com um ataque bem sucedido a um posto militar espanhol. Os êxitos militares da Frente Polisário, a par de sucessivas resoluções da ONU a favor da independência do Saara, obrigam a ditadura franquista a aceitar o princípio da autodeterminação. É nesta altura que se descobrem importantes jazidas de fosfatos e se suspeita da existência de ferro, petróleo, gás natural, ouro e urânio, o que, somado à riqueza pesqueira do seu mar de 150 mil km2, aguça os apetites expansionistas da monarquia marroquina que, perante a iminência da independência do território, começa a reivindicar a soberania sobre o Saara, uma alegação recusada pelo Tribunal Internacional de Justiça de Haia.
Negociando secretamente com a Espanha, o rei Hassan II organiza uma operação de provocação e propaganda (a “Marcha Verde”), supostamente pacífica sobre o Saara e, logo de seguida, introduz no local 11 batalhões de blindados e de infantaria, perante a impotência e desorientação do exército colonial espanhol.
Tudo se torna claro quando, dias antes da morte do ditador fascista, a 14 de Novembro de 1975, um acordo tripartido, assinado em Madrid por Arias Navarro, cede o território do Saara a Marrocos e à Mauritânia, atraiçoando desta forma as expectativas e promessas feitas ao povo saaraui.
LUTA DE LIBERTAÇÃO
À retirada das tropas espanholas, a Frente Polisário proclama em Tifariti, capital dos territórios libertados, a República Árabe Saaraui Democrática.
A resposta da Mauritânia e Marrocos foi o bombardeamento indiscriminado de populações civis com napalm, obrigando centenas de milhares de saarauis a procurar abrigo no país vizinho – a Argélia.
À Frente Polisário e ao exército de libertação saaraui não resta outra saída a não ser a de prosseguir a guerra patriótica e de libertação, desferindo os seus eficazes ataques no próprio território de Marrocos e da Mauritânia, levando este último país a uma crise profunda. Em Junho de 1978, os militares mauritanos depõem o presidente Uld Daddah, pondo fim à guerra e, em 5 de Agosto de 1979, assinam um acordo de paz com a Frente Polisário.
Com a retirada das tropas mauritanas, o regime totalitário marroquino ocupa a parte Sul do Saara deixado pela Mauritânia e, com a ajuda da França, Estados Unidos e da própria Espanha, prossegue a guerra. Mas o invasor não consegue mais do que dominar os fortins militares que ocupa. Os homens do exército de libertação saaraui são os senhores da noite e os seus ataques relâmpago infligem milhares de baixas ao exército marroquino, o que, a par da sangria económica, leva ao interior da monarquia marroquina importantes manifestações e protestos do seu próprio povo.
Entretanto, importantes vitórias no plano diplomático alcançadas pela Frente Polisário e o isolamento crescente de Marrocos acabam por impor um cessar-fogo, com base nas resoluções 658 (1990) e 690 (1991) do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que previa, para Janeiro de 1992, a realização de um referendo livre, legítimo e sem restrições administrativas nem militares, bem como a participação exclusiva da população saaraui registada no censo espanhol de 1974.
Mas a monarquia marroquina depressa esqueceu os acordos aprovados por ambas as partes em 1991. Através de manobras dilatórias e constantes provocações, tem rejeitado qualquer hipótese de referendo, a não ser um referendo determinado por Marrocos que «não ponha em causa a soberania e integridade territorial de Marrocos», onde obviamente está incluído o território do Saara Ocidental.
Mesmo os “planos de paz”, conhecidos por planos Baker I, II, III (nome do enviado especial do Secretário geral das Nações Unidas), aprovados pelo Conselho de Segurança em diversas resoluções e que previam um período de 4 a 5 anos de autonomia, seguido de um referendo aberto, tanto à população saaraui como marroquina estabelecida no território do Saara Ocidental até 31 de Dezembro de 1999, têm sido sistemática e criminosamente rejeitados pela monarquia marroquina.
É uma evidência que o cessar-fogo de 1991, cumprido escrupulosamente pela Frente Polisário e, na palavra dos seus dirigentes, através de «mil gestos de boa vontade», como a libertação de 2110 soldados de Marrocos, tem sido permanentemente torpedeado por Marrocos, numa perspectiva da continuação da guerra por outros meios, a saber: o genocídio do povo saaraui.
Esta verdade dramática encontra expressão na edificação pelo regime marroquino do chamado “muro da vergonha”, que divide o território do Saara Ocidental, numa linha longitudinal Norte-Sul, em 1700 km, e onde estão plantadas 7 milhões de minas antipessoais; na crescente militarização de Marrocos, acompanhada por uma inusitada arrogância face às decisões e resoluções da comunidade internacional, nomeadamente da OUA e da ONU; e na repressão policial e militar nos territórios ocupados, sob a forma de intimidação, detenções, tortura, desaparecimentos e assassinatos a sangue-frio da população e activistas saarauis.
É incompreensível e chocante que, perante esta realidade de ocupação e colonização, abusos e assassínios em massa de um povo, desrespeito ostensivo e provocatório pelo direito internacional, a ONU e o Conselho de Segurança se limitem a produzir resoluções (que já são 50) e a reduzir os efectivos e meios de intervenção da sua força no território (MINURSO), conformando-se e agindo em função da prática do facto consumado da política marroquina.
Daí que os trabalhos da Conferência de Solidariedade com o Povo Saaraui tenham sido marcados por uma firme condenação de Marrocos e pelo apoio incondicional à Frente Polisário e à causa saaraui, que já hoje é apoiada e reconhecida por 86 países.
NOVAS CONSPIRAÇÕES
É também hoje evidente, pelo próprio agravamento da situação mundial, que o Saara Ocidental enfrenta novas conspirações por parte da Espanha, França, União Europeia, Estados Unidos e da NATO – que o Governo português de forma subserviente acompanha (recente acordo de pescas com Marrocos) – , conspirações essas que tentam reforçar e consagrar a criminosa ocupação militar por parte de Marrocos e legalizá-la através de projectos de “autonomia alargada”, o que é liminarmente rejeitado pelo Povo Saaraui e pela Frente Polisário.
Em plena Conferência foi dado conhecimento e denunciado que o governo socialista espanhol tinha firmado novos acordos com a monarquia marroquina e se preparava para lhe entregar 1200 carros de combate e cerca de 600 viaturas de transporte de tropas, em flagrante violação do direito internacional.
Considerando as responsabilidades que Espanha tem, como antiga potência administrante, no problema do Saara Ocidental, esta aliança com o regime despótico de Marrocos é pérfida e uma ameaça para a paz e a estabilidade em toda a região do Magreb.
A história tem confirmado que a supremacia militar não é tudo. A demonstração está em inúmeros exemplos: a guerra do Vietname, as guerras de libertação em África, na América Latina e na Ásia.
A supremacia militar de Marrocos, caucionada pelas potências imperialistas, não é suficiente para sufocar a resistência civil nos territórios ocupados, assim como será insuficiente para impedir a inquebrantável coragem e vontade do Povo Saaraui de viver numa pátria livre e soberana.
A declaração final ou “Declaração de Tifariti”, que sintetiza os intensos trabalhos da Conferência Internacional de Solidariedade com o Povo Saaraui e foi aprovada por unanimidade, aclamação e muita emoção, não só confirmou a importância deste fórum como, pelas repercussões que irá ter nos domínios político, diplomático e militar, abre perspectivas e esperanças completamente novas a favor do reforço do processo de descolonização do Saara Ocidental e à fundação de um Estado independente e soberano sob a direcção da Frente Polisário.(...)
A República Árabe Saaraui Demorática, que celebrou no dia 27 de Fevereiro o 31.º aniversário da sua proclamação com uma parada militar nos territórios libertados, é já uma parte importante do país futuro que o Povo Saaraui e o seu legítimo representante, a Frente Polisário, vão construindo com dignidade, luta e sacrifícios e a solidariedade e apoio de todo o mundo revolucionário e progressista.
José Martins
http://www.infoalternativa.org/africa/sara-ocidental004.htm
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