sexta-feira, fevereiro 08, 2008

As omissões de Sócrates

Por mais esforço que qualquer órgão de comunicação social faça, dificilmente conseguirá fugir do tema da licenciatura do primeiro-ministro obtida na Universidade Independente. Numa sociedade democrática, a actualidade impõe a agenda. Quem a tentar contornar ou ignorar arrisca-se a cair no descrédito ou, até, no ridículo.
Por isso, não espanta que mesmo jornais geralmente conotados com a política do Governo, que, numa primeira fase, resistiram a colocar o assunto na sua agenda, tenham acabado por colocar os seus grandes repórteres em campo e, também eles, avançado com notícias em primeira mão sobre o caso. Até a pudica RTP, com um director de informação que elogia publicamente o Governo, acabou dando destaque ao assunto, ainda que tarde e más horas e a reboque dos acontecimentos.
Mas vamos à análise dos factos. Primeiro, o valor social dos “canudos”. Goste-se ou não, o bacharelato sempre foi visto em Portugal como um curso menor, constituindo, geralmente, a segunda opção dos candidatos à área de Engenharia. Contudo, a meu ver, a desvalorização social destes cursos assentava mais no preconceito que numa aferição justa. Um curso superior de três anos é mais do que suficiente para proporcionar uma formação base a um aluno de engenharia ou de outra área, com raras excepções. Isto mesmo reconheceu o Tratado de Bolonha, que veio reduzir a duração das licenciatura para três anos.
De qualquer forma, no pós-25 de Abril, a maioria dos alunos saídos das Escolas Superiores de Engenharia– que conferiam o grau de bacharelato – desde sempre manifestou o desejo de aceder ao grau de licenciado. Primeiro, pelo reconhecimento social, depois pela valorização salarial e, por último, pela valorização profissional. As próprias Escolas Superiores de Engenharia passaram a conferir, a partir dos anos 90, se não me falha a memória, o grau de licenciado aos seus alunos. Provavelmente, a maioria dos bacharéis regressou então à escola para aceder à licenciatura. José Sócrates foi um deles. Até aqui, tudo na mais divina normalidade.
Todavia, é público e notório que o prestígio das escolas públicas em Portugal, com raras excepções, sempre foi bem maior que o das escolas privadas. Por isso, não ficou clara a razão que levou José Sócrates a trocar o Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL) pela Universidade Independente. Os motivos aludidos pelo primeiro-ministro na RTP não convencem: ambas as instituições funcionavam em regime pós-laboral e a Universidade Independente existia apenas há dois anos, nunca poderia ter o mesmo prestígio do ISEL, uma escola pública com muitos anos e corpo docente estabilizado. Certo é que José Sócrates tinha todo o direito de mudar de escola, ainda que, como o tempo veio comprovar, essa opção se tenha revelado um erro.
As opiniões sobre este caso têm dividido a sociedade portuguesa. Alguns desvalorizam esta questão, reduzindo-a a uma questiúncula sobre títulos académicos. Ora, não se trata de discutir se é importante ou não ter títulos académicos para exercer cargos de governação. Logo após a divulgação do elenco governativo, eu próprio me pronunciei contra o peso excessivo dos professores universitários neste Governo, como se o currículo académico fosse determinante no desempenho de cargos governativos.
Marcelo Caetano - também ele um brilhante professor de Direito - escolhia os seus ministros pelo currículo académico e os resultados foram o que sabemos. Além disso, não vi ninguém a pôr em causa a competência do actual primeiro-ministro por causa dos seus títulos universitários. O que é relevante aqui são os métodos que o actual primeiro-ministro usa para atingir os fins e todos temos o direito de saber quais são.
Por outro lado, deverão os média investigar as habilitações literárias do primeiro-ministro, uma vez que este não cometeu nenhum ilícito criminal? A resposta só pode ser afirmativa. Em primeiro lugar, um dos deveres da comunicação social é o escrutínio do poder político e um dos deveres dos políticos é submeterem-se a esse escrutínio. Quem está na política não pode ter pruridos de franquear os elementos da sua vida social, profissional ou política, presentes ou pretéritos, à comunicação social. E quanto mais elevado for o cargo, maior deve ser esse escrutínio. A opinião pública tem o direito de saber em quem vota e a transparência deve ser uma condição sine qua non para quem desempenha cargos de responsabilidade política.
Em segundo lugar, só é possível saber se o primeiro-ministro cometeu alguma ilegalidade dando início à investigação. Se ninguém investiga., como se pode concluir se praticou ou não ilegalidades? Por outro lado, a verdade é uma aliada de quem é escrutinado, se estiver inocente. A confirmação da seriedade de um político só contribui para o seu prestígio junto da opinião pública. Como tal, só tem a ganhar em prestar todos os esclarecimentos.
Mesmo que nada se apure, nenhum demérito pode ser assacado aos jornalistas, se a investigação tiver sido bem feita. Cumpriram a sua obrigação, a opinião pública e os seus leitores / ouvintes / espectadores só têm de agradecer o serviço prestado à comunidade na descoberta da verdade. Portanto, é absolutamente injusto recriminar os órgãos de comunicação que decidiram investigar o primeiro-ministro só porque não encontraram ilegalidades que pudessem ser-lhe imputadas, pelo menos até ao momento. A sua missão é investigar, independentemente das conclusões a que se chegue.
A terceira questão que se tem levantado é de esta questão perturbar a governação, logo também o País. Argumentam alguns que o País tem muitos problemas graves a resolver, pelo que não se deveria perder tempo com fait divers. Marcelo Caetano, numa das suas “Conversas em Família” na RTP, disse mais ou menos isto, a propósito da acusação de censura dirigida ao seu Governo. “Nada do que realmente interessa aos portugueses deixa de ser divulgado na imprensa”. A invocação do interesse nacional para limitar o livre exercício da liberdade de imprensa é um dos argumentos recorrentes das ditaduras. A verdade não costuma ser inimiga do interesse nacional, antes uma boa aliada.
Neste caso, porque é que esta investigação jornalística sobre a licenciatura de José Sócrates é de relevante interesse público? Porque põe a nu o padrão de comportamento do primeiro-ministro. Não iria tão longe como Marques Mendes, ao pôr em causa o carácter do primeiro-ministro. Eu diria que este imbróglio interminável põe antes a nu uma das características de José Sócrates: a sua habilidade para jogar com as omissões.
O actual primeiro-ministro esteve matriculado na Universidade Lusíada durante três anos, mas não mencionou o facto porque, provavelmente, não fez qualquer cadeira. Também se esqueceu de mencionar na entrevista à RTP que o professor António José Morais já havia sido seu professor no ISEL. Também deixou, pelo menos, que o Parlamento mantivesse durante um ano na sua biografia o grau de licenciado em engenheira civil, quando não o possuia. Também ninguém percebeu, ainda na entrevista à RTP, porque disse que Luís Arouca era reitor na altura em que entregou o seu pedido de equivalências, quando o reitor era outro.
A explicação de que entregou o cartão de Secretário de Estado do Ambiente ao seu professor de Inglês Técnico junto com o trabalho final da cadeira por cortesia não pode deixar de nos fazer sorrir. Sobretudo, depois de o director do Instituto Britânico ter tornado público que Luís Arouca deixou passar 19 erros no trabalho final (Jornal 24 Horas).
O discurso de José Sócrates parece-me pejado de omissões: naturalmente, conta a parte da verdade que lhe é mais favorável e omite a que lhe é desfavorável. Sócrates sempre jogou assim e, por isso, não é de surpreender o seu comportamento no caso da Universidade Independente. Dirão alguns que todos os políticos fazem isso, mas Sócrates não é um político qualquer: é o primeiro-ministro. Um País, para o bem e para o mal, tem os olhos postos no chefe de Governo. Dele se espera seriedade e rectidão, não meias palavras ou meias verdades.
Convém lembrar que as omissões de Sócrates começaram logo na campanha eleitoral para o Parlamento, onde nada disse aos portugueses que iria pedir sacrifícios mal tomasse posse. O argumento de que foi surpreendido por um défice orçamental muito elevado não tem base de sustentação. O então candidato a primeiro-ministro sabia perfeitamente que nos dois anos anteriores o défice só ficara abaixo dos 3% à custa de receitas extraordinárias e que, sem elas subiria, aos 5 ou 6%. Por exemplo, lembro-me perfeitamente de Luís Filipe Meneses admitir, numa estação televisiva, no início de 2005, que o valor do défice do ano anterior seria de 5%.
Contudo, nem uma palavra houve sobre os sacrifícios que iria pedir aos portugueses e sobre a diminuição do poder de compra dos trabalhadores, com especial destaque para os funcionários públicos. Em vez disso, pintou Portugal de cor-de-rosa, prometendo 150 mil novos empregos, um choque tecnológico que impulsionaria o País para a frente e auto-estradas grátis.
Também omitiu que iria encerrar maternidades, escolas e serviços de urgência por todo o País. Como já alguém disse, só falta mandar fechar o interior do País, também ele sentenciado de culpado do défice público português. Em vez de políticas promotoras do repovoamento e da sustentabilidade do interior, Sócrates, na sua obsessão pelo equilíbrio das contas públicas a qualquer preço, obriga estes portugueses - abandonados, empobrecidos e envelhecidos – a pagarem a factura do défice. Sem qualquer compensação ou esperança.
Hoje como ontem, as omissões continuam ainda a ser uma constante do discurso do actual primeiro-ministro. José Sócrates repete até à exaustão que as exportações portuguesas cresceram 8% no último ano, mas esquece-se de dizer que elas dependem fundamentalmente do estado da economia europeia. Como esta se encontra em franco crescimento (ao contrário da economia portuguesa), é quase inevitável que as nossas exportações cresçam também.
Quanto aos bons resultados conseguidos com o défice orçamental, qualquer Governo baixaria o défice com esta receita de reduzir drasticamente os salários reais dos funcionários públicos e reduzir o valor das pensões de todos os trabalhadores, fazendo praticamente desaparecer também o investimento público. Por comparação, qualquer família conseguiria também equilibrar o seu orçamento se seguisse o mesmo caminho e decidisse abdicar do seu conforto diário, passando a comer apenas uma refeição por dia, prescindir do automóvel, do computador, do acesso à Internet, da TV por cabo e do telemóvel. Assim, muito obrigado!
Eu entendo que a redução do défice não pode ser feita sem sacrifícios. Em economia, não há milagres. O que não compreendo é que o Governo nos queira convencer de que o mérito é seu. Não, o mérito é dos portugueses! São eles que vêem diminuir o seu poder de compra. O Governo limitou-se a aumentar os impostos e a reduzir-lhes os rendimentos.
Anuncia o nosso primeiro-ministro, em tom triunfal, que os alunos dos ensinos básico e secundário deixaram de ter furos devido às faltas dos professores com o sistema de aulas de substituição. Esquece-se apenas de acrescentar que aquilo a que chama aulas, com professores de Educação Física a substituírem os de Matemática e vice-versa, não passa de uma caricatura. Na verdade, os alunos continuam sem aulas, só que agora permanecem trancados dentro da sala com um professor lá dentro, que nem sequer conhecem, a vigiá-los. A situação é desconfortável para alunos e professores e em nada contribui para o sucesso educativo de quem quer que seja.
Outra das suas bandeiras educativas, é o querer certificar as competências de um milhão de portugueses que “não concluíram os estudos.” Omite o senhor primeiro-ministro, primeiro, que os estudos não se terminam - aprender é uma missão para toda a vida - e, depois, que não é com sucesso estatístico que o País progride. Há 20 anos que o País aposta – erradamente – no sucesso estatístico e no facilitismo em termos de educação e formação profissional, com resultados reais trágicos. Continuamos com mais do mesmo e Sócrates, com a sua licenciatura, dá ele próprio um péssimo exemplo aos portugueses do que não deve educação.
Os professores - incluindo aqueles que são deputados pelo PS - já chamaram a atenção do Governo que estas políticas de faz-de-conta não funcionam, mas Sócrates prefere ignorar tudo e todos e tentar apresentar a sua visão ficcionada da verdade à maioria dos portugueses que, obviamente, não conhece a questão em profundidade. Por isso, alguns acreditarão no que lhes é repetido até à exaustão.
Como disse, Sócrates faz da omissão uma forma de estar na política. A sua versão dos acontecimentos é, quase sempre, uma ficção. Há sempre detalhes fundamentais que não inclui no seu discurso e que fazem toda a diferença. Se esta novela da Universidade Independente outro mérito não teve, pelo menos serviu para mostrar a alguns jornalistas e comentadores – até aqui tão cegamente deslumbrados com os discursos contundentes de Sócrates e com o seu marketing político agressivo – que, a partir de agora, terão de passar a ler também as entrelinhas dos discursos do chefe do Governo. No que me diz respeito, nunca tive ilusões e escrevi-o desde a primeira hora.
Resta a José Sócrates e ao Governo uma última bóia de salvação: tentar comparar-se com o Governo de Santana Lopes e com a actual oposição à Direita. A credibilidade do primeiro-ministro sofreu um forte abalo com este processo, por isso, a única estratégia possível é tentar que os portugueses acreditem que é o mal menor para o País e que não há alternativa. Verdade seja dita, Marques Mendes e Paulo Portas, com os seus comportamentos erráticos e constantes mudanças de discurso, tudo têm feito para lhe facilitar a vida. A política portuguesa continua com um preocupante défice de credibilidade e não me parece digno um País com quase nove séculos do história ver-se constrangido a escolher o menos mau dos políticos. Existem, seguramente, outras alternativas.
Mário Lopes

http://www.tintafresca.net/News/newsdetail.aspx?news=2303ee69-ad9d-4c0e-8922-8368e82bf676&edition=78

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