quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Colmatando a lacuna entre torturador e vítima

No novo livro de Andrew Cockburn, Rumsfeld [1], a lacuna entre o poder desenfreado e as suas vítimas distantes é colmatada. Ali se revela que Donald Rumsfeld, secretário da Defesa dos EUA até ao ano passado e arquitecto do banho de sangue no Iraque, dirigiu pessoalmente do seu gabinete no Pentágono a tortura de seres humanos, seus semelhantes, explorando «fobias individuais, tais como o medo de cães, para induzir stress» e o uso de «uma toalha molhada e água gotejante para induzir a percepção equivocada de sufocação». A prova documentada de Cockburn mostra que outros mafiosos de Bush, tais como Paul Wolfowitz, agora presidente do Banco Mundial, «já tinham concordado em que Rumsfeld deveria aprovar tudo excepto as opções mais severas, tais como a toalha molhada, sem restrição».

Em Washington, perguntei a Ray McGovern, antigo responsável sénior da CIA, o que ele dizia da observação de Norman Mailer de que a América tinha entrado num estado pré-fascista. «Espero que ele esteja certo», respondeu, «porque há outros a dizerem que já estamos num modo fascista. Quando se vê quem está a controlar os meios de produção aqui, quando se vê quem controla os jornais e periódicos, e as estações de TV, a partir das quais a maior parte dos americanos recebe as suas notícias, e quando se vê como a chamada guerra ao terror está a ser conduzida, começa-se a entender para onde somos direccionados … É de assinalar que a ameaça nuclear hoje deveria ser vista em primeiro lugar e sobretudo como vinda dos Estados Unidos da América e da Grã-Bretanha».

McGovern era o autor do resumo diário de inteligência da CIA para o presidente. Entrevistei-o há mais de três anos, e as suas palavras prescientes são tão fulminantes hoje quanto a revelação de Cockburn da vida secreta de Rumsfeld é esclarecedora. A sua descrição do fascismo no interior de uma sociedade nominalmente livre recorda a advertência de George Orwell de que o totalitarismo não exige um estado totalitário.

As mentiras que provocaram estes tempos extremamente perigosos são entendidas e rejeitadas pela maioria da humanidade. Isto foi ilustrado de forma vívida em 15-16 de Fevereiro de 2003 quando uns 30 milhões de pessoas foram às ruas de cidades de todo o mundo, incluindo a maior manifestação na história britânica. Foi ilustrado outra vez há poucos dias na América Latina, a qual George W. Bush na sua viagem tentou recuperar como “quintal” perdido da América. «O distinto visitante», notou um comentador em Caracas, «foi recebido com medo e abominação».

Há muitas conexões na América Latina com o sofrimento no Médio Oriente. O esmagamento de governos populares e reformistas pelos EUA e a instalação de regimes de tortura, da Guatemala ao Chile, reflecte se do Irão ao Afeganistão. Os ataques actuais dos media ao governo de Chávez na Venezuela, os quais Ray McGovern descreve como sendo «domesticados pelo seu desejo de servir», são essenciais para recusar o direito dos pobres a encontrarem outro caminho.

Eleito em Dezembro último com o recorde esmagador dos votos de três quartos da população eleitora – a sua 11ª vitória eleitoral – Hugo Chávez exprime a espécie de genuína democracia exuberante há muito abandonada na Grã-Bretanha, onde a classe política oferece em vez disso as artríticas piruetas de Tony Blair, um criminoso, e do ministro das Finanças Gordon Brown, o tesoureiro de aventuras imperiais combatidas por soldados de 18 anos de idade que, no seu retorno a casa, são tão maltratados que não há ninguém para mudar o saco da sua colostomia.

Chávez, tendo-se libertado do mortífero FMI da América Latina, ousa utilizar a riqueza do petróleo da Venezuela para unir os povos latino-americanos e expulsar um sistema económico estrangeiro que se autodenomina liberal e é a fonte de sofrimento histórico. É apoiado por governos e por milhões por toda a América do Sul dos quais ele deriva o seu mandato.

Você não saberia isto em ambos os lados do Atlântico a menos que investigasse cuidadosamente. A propaganda que converte uma democracia viva e aberta numa ditadura “autoritária” é escrita sobre as cruzes enferrujadas dos camaradas de Salvador Allende, de quem se dizia o mesmo. Ela é disseminada pelos fracos amargurados cujo herói liberal era Blair, até que ele fez uma confusão embaraçosa, e que agora clamam a respeitabilidade da “esquerda” a fim de disfarçar o seu seguidismo por pessoas como Wolfowitz, a sua promoção do ridículo “império islâmico mundial” de Dick Cheney e, acima de tudo, a sua paixão por guerras cujo sangue derramado nunca é o deles.

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[1] Rumsfeld: His Rise, Fall, and Catastrophic Legacy, de Andrew Cockburn, foi publicado nos Estados Unidos pela Scribner.
John Pilger
http://www.infoalternativa.org/autores/pilger/pilger065.htm

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