sexta-feira, fevereiro 08, 2008

O riso é uma forma de resistir

( a propósito do livro «Riso de resistência», de Jean-Michel Ribes)

Um livro editado há pouco tempo em França é motivo de júbilo para todos os que se reconhecem em nomes como Rabelais, Molière, Jarry, Dário Fo, Coluche, Picabia e demais dadaístas - para todos aqueles para quem o riso, a gargalhada e a insolência são modos de resistir à ditadura da realidade e à hegemonia do sério. Esse mesmo sério que solidifica as ideias, que a moral consolida e que o bom gosto alimenta ao ponto de acabar por atrofiar o pensamento.

Tem como título «Riso de resistência» ( Rire de resistance, de Diógenes à Charlie Hebdo) e o seu autor é Jean-Michel Ribes que publicou o livro no âmbito da programação do teatro onde é encenador, o Thêatre du Rond-Point, inteiramente virado este ano para o riso da resistência(
www.theatredurondpoint.fr/saison/temps_fort.cfm?id=4978 )

Será então o riso uma forma de resistir?

Ri-se sempre de alguém, ou de alguma coisa. Rir é também uma maneira de dizer que não temos medo, e por via do riso podemos estar a resistir a alguma coisa ou a uma situação que nos é imposta.
Quando nos rimos, mostramos os dentes, tal como acontece quando fazemos uma ameaça ( = mostrar os dentes) - um paralelismo que nos pode levar a concluir que o riso é sem dúvida mais uma forma de resistência.

Ingrediente imprescindível da utopia e da criação, são numerosos aqueles e aquelas que por via das piadas iconoclastas, conseguiram fecundar o riso de modo a vermos de novo alguma luz. De Rabelais a Jarry, de Voltaire a Picabia, de Chaplin a Dário passando por Duchamp, Bunuel, Topor, Copi, Hara-kiri, oulipianos, fumistas e zutistas, muitos são aqueles que são recordados e homenageados neste livro em virtude da sua coragem, da sua insolência e da sua capacidade de rir de todas as dominações, testemunhando o seu vivo compromisso contra a tirania do sério.

Não se trata simplesmente de um dicionário ( de A, como «AH!,AH!,AH!», até Z, como os zutistas) ou de uma antologia das tiradas mais ou menos burlescas de certos autores e figuras conhecidas. Trata-se sim de um obra que reúne algumas reflexões sérias e sábias sobre o riso, tal como o riso de combate ( «rir até às lágrimas»), o riso em Aristófanes, ou então o de Paul Valéry ( «O partido do espírito é sempre aquele que diz não, não e não»). Outros autores são igualmente convocados para se entregarem a exercícios de reflexão e análise acerca do riso. Os activistas americanos do Yes Man, por exemplo, marcam também presença nesse conjunto. Le Canard Enchaîné, Diógenes, Nietzsche são outras tantas referências incontornáveis que se passeiam ao longo da obra, sem esquecer os inimigos do riso como o fundador da Companhia de Jesus, Ignácio de Loyola ( «Não se riem, nem digam nada que provoque o riso»), ou o sério Staline («um povo feliz não precisa de humor»).
Felizmente, os ataques ao riso são ineficazes e não passam de uma vã tentativa de impor a ditadura do sério nas relações sociais entre os homens.

Alguns nacos do livro:

"Les femmes qui veulent être l'égale des hommes manquent sérieusement d'ambition" (Reiser).

"Il y a beaucoup de gens dont la facilité de parler ne vient que de l'impuissance de se taire" (Savinien Cyrano de Bergerac).

"Je n'ai pas aimé la pièce mais il faut dire que je l'ai vue dans les pires conditions : le rideau était levé" (Groucho Marx).

"Les morts ont de la chance, ils ne voient leur famille qu'une fois par an, à la Toussaint" (Pierre Doris)

"Les hommes appelés à en juger d'autres devraient avoir fait un stage de deux ou trois mois en prison" (Marcel Aymé)


História do Riso e do Escárnio", de Georges Minois, editado agora pela Teorema


O riso é uma virtude que Deus deu aos homens para os consolar por serem inteligentes, dizia Marcel Pagnol. Uma virtude que tem mais de dois mil anos, como testemunham as recolhas de histórias engraçadas com que já os gregos e os romanos se deliciavam. Mas podemos rir de tudo? Sim, afirma Demócrito cujo riso atrevido tem acentos espantosamente modernos. Sim, diz também Cícero, que inventaria mil formas de fazer rir. Não, proclamam em contrapartida os Padres da Igreja, porque o riso é um fenómeno diabólico, um insulto à criação divina, uma manifestação de orgulho. Os seus argumentos contudo não foram ouvidos na Idade Média: os reis fazem-se rodear de bobos, os homens divertem-se a rir uns dos outros, quando das assuadas, e o humor, que ainda não é mais do que paródia, infiltra-se mesmo nos sermões dos pregadores.


Com Rabelais, surge uma outra forma de rir, um riso ambíguo que abala todas as certezas e prolonga-se para além do Renascimento, um riso ora picaresco, ora grotesco, ora burlesco. A monarquia absoluta quer fazer entrar na ordem todos os amantes do riso. Mas será possível domesticar o riso? Disfarçado de humor ácido, o riso corrói pouco a pouco os fundamentos do poder e da sociedade. No século XIX, o humor encontra o seu terreno predilecto na sátira política, enquanto que os filósofos dissecam as suas virtudes, por vezes para as deplorarem, e Baudelaire procura o «cómico absoluto». A ironia torna-se uma forma de relação do homem com o mundo. Protege contra a angustia e, ao mesmo tempo exprime-a. «Eu rio-me com o velho maquinista Destino», escreve Vítor Hugo, que fixa em fórmulas imortais a ambiguidade do riso. O século XIX acaba com uma apoteose do riso e do nonsense. A partir de então, o mundo vai escarnecer de tudo, dos seus deuses como dos seus demónios.


As lágrimas de Heráclito e o riso de Demócrito
A lenda histórica diz-nos que o filósofo Demócrito (sec. V a.C.) se ria sem cessar, ao passo que o seu contemporâneo Heraclito de Éfeso era visto a chorar continuadamente, circunstâncias essas que eram normalmente interpretadas como sendo uma viva ilustração do nosso mundo, e motivo por que nos interrogamos ainda hoje se devemos chorar ou rir do mundo.Ou seja, o que será mais razoável: o riso de Demócrito, que zombava de tudo, ou o pranto de Heráclito, que por tudo chorava?

Demócrito, de quem não se conservou qualquer texto original, segundo a lenda, ria-se sobretudo da estupidez humana e, por isso, autores romanos como Horácio utilizam a sua figura para criticar os seus contemporâneos e dizem que o filósofo se teria rido à gargalhada deles.

O riso de Demócrito pode ser visto de duas maneiras: por um lado, expressa uma decepção perante a condição humana e, nesse sentido, seria uma variante do pranto de outro filósofo, Heraclito; por outro lado, o riso de Demócrito tem um aspecto afirmativo que mostra que, apesar de toda sua decepção perante a humanidade, o filósofo grego não estava disposto a renunciar a gozar a vida.

Diferentemente de Demócrito, para quem o riso e o humor pareciam ser um a atitude vital, Diógenes o Cínico, acérrimo rival de Platão, utilizava esses dois elementos como armas críticas. Os alvos de Diógenes eram as cidades gregas e os costumes dos seus habitantes, o poder político e, acima de tudo, a doutrina platónica.
Platão quis efectivamente desterrar o riso ao ver o hábito de rir como uma manifestação de arrogância, muitas vezes injustificada. Rabelais, por sua vez, via o riso como o melhor que há no ser humano. Kant via no humor um sintoma de argúcia e inteligência, e concebia o riso como uma consequência de uma tensão que se dilui subitamente quando entra em jogo algo absurdo e incoerente.

À teoria do riso como expressão de um sentimento de superioridade e da gargalhada em consequência de uma incoerência, aparece uma outra teoria, centrada na ideia do contraste que, com diferentes matizes, representam Arthur Schopenhauer, Soren Kierkegaard e Henri Bergson, entre outros.

O riso materialista é aquele que se ri dos temores, das superstições e até dos valores seguidos pela humanidade. É o riso de filósofos como Demócrito, Epicuro, Spinoza, Rabelais, La Mettrie, etc. Um riso que humaniza e nos aproxima uns dos outros.

O riso é necesário, indispensável mesmo. Mas o riso tanto pode ser a expressão de um prazer, como um máscara que assumimos. Diz-se por exemplo que os profissionais, que fazem rir os outros, são pessoas desesperadas.



Em 1674, na corte da Rainha Cristina da Suécia, em Roma, o padre Antônio Vieira profere - em italiano - um discurso em que defende o pranto de Heráclito em contraposição ao riso de Demócrito. Traduzido mais tarde para o português, As Lágrimas de Heráclito passaria a integrar as principais edições das obras de Vieira.


«Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria».
(…)

«Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso: chorar com lágrimas é sinal de dor moderada, chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva... »
Padre António Vieira - O Pranto e o Riso ou as Lágrimas de Heráclito

Discurso integral do Padre António Vieira,
em Roma no ano de 1674,
a convite da Rainha Cristina da Suécia


Se o mundo é mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como Demócrito, ou quem chora, como chorava Heraclito, eu pretendo defender a parte do pranto.
Confesso que a primeira propriedade do riso é o risível; e digo que a maior impropriedade da razão é o riso.
O riso é o final do racional; o pranto é o uso da razão.
Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há-de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.
Que é este mundo senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes?
E à vista deste teatro imenso, tão trágico, tão lamentável, que homem haverá (se acaso é homem) que não chore?
Se não chora, mostra que não é racional, e se ri, mostra que também as feras são capazes de rir.
Mas se Demócrito era um homem tão grande entre os homens, e um filósofo tão sábio, e se não via este mundo, mas tantos outros mundos por si inventados como poderia rir?
Poderá dizer-se que ele não ria deste mundo, mas daqueles seus mundos.
E com razão; porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso.
É certo porém, que ele ria neste mundo e que se ria deste mundo. Como pois se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas coisas que via e chorava Heraclito?
A mim, senhores, me parece que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heraclito ambos choravam, cada uma seu modo.
Que Demócrito não risse, eu o provo.
Demócrito ria sempre, logo, nunca ria.
A sequência parece difícil, mas é evidente.
O riso, como ensinam todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração; e cessando a novidade e a admiração, cessa também o riso.
Por isso, quando vemos uma figura ridícula, ou então ouvimos algum dito engraçado e faceiro, rimos de princípio, mas uma vez dada razão àquela primeira surpresa, uma vez que cesse a novidade, cessa ao mesmo tempo o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo e o que quando sai de casa rindo, sendo sem controvérsia, já que o que é comum e vulgar não pode causar nenhuma admiração nem novidade, depreende-se, como consequência, que, se ria sempre, nunca ria, e aquilo que parecia, de facto não era riso.
Há chorar de lágrimas, chorar sem lágrimas e ainda chorar com riso.
Chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suprema e excessiva.
A dor moderada solta as lágrimas, a grande dor as enxuga e as seca.
Dor que pode sair pelos olhos, não é grande dor; por isso não chorava Demócrito.
E como era pequena demonstração da sua dor, não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria.
Desta sorte a tristeza, se moderada, faz chorar, se excessiva, pode fazer rir.
Se a excessiva alegria é causa de pranto, a excessiva tristeza não será causa de riso?
Na guerra morrem muitos soldados rindo e a razão é, diz Aristóteles, porque são feridos no diafragma.
Não se ria Demócrito, como contente, ria como ferido.
Os olhos poderão queixar-se desta minha filosofia mas, acho eu, sem razão, pois o pranto vem da dor provocada pelo batimento nas mãos e, se se reflectir, vê-se que os olhos não são necessários à capacidade de falar.
E se choram as mãos por que não há-de a boca chorar?
Heraclito chorava com os olhos; Demócrito chorava com a boca; o pranto dos olhos é mais fino; o da boca mais mordaz.
Demócrito ria porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava porque todas lhe pareciam misérias; logo, tinha mais razão Heraclito para chorar do que Demócrito para rir, porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias e não há ignorância que não seja miséria.
E como nem todas as misérias são ignorâncias e todas as ignorâncias são misérias, razão tinha Heraclito de chorar que Demócrito de rir, antes digo, que só Heraclito tinha toda a razão e Demócrito nenhuma.

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