O século XXI ainda é jovem pois há mais noventa e três anos para a sua conclusão. Assim, pode parecer demasiado ambicioso afirmar que "O acontecimento do século" já está para trás de nós. Mas vou assumir esse risco com boa vontade, pois acredito seriamente que o pico da produção mundial de petróleo bruto — habitualmente conhecido como 'Pico petrolífero', ou 'Peak Oil' — verificou-se em 2006 [1] e será 'O acontecimento' limite que dominará a história do século XXI: um daqueles 'Pontos de inflexão da história' [2] que abruptamente mudam os "fundamentos" do devir da História Mundial. Não posso prever qualquer outro '"Evento" que consiga eclipsar o 'Peak Oil', nem mesmo as Guerras Mundiais que possam ser desencadeadas em consequência do Pico e outras alimentadas pela escassez generalizada de recursos. A menos, naturalmente, que a humanidade decida pelo suicídio colectivo com a utilização maciça de armas de destruição em massa, mas tal 'Evento' aniquilador pronunciaria a palavra 'Fim' para a maior parte, se não a totalidade, da espécie de humana…
Depois de uns 147 anos de quase ininterrupto crescimento da oferta, até uma produção récord de 81-82 milhões de barris/dia [mb/d] no Verão de 2006, a produção de petróleo bruto entrou no seu declínio irreversível. Esta reversão excepcional altera a equação da oferta de energia sobre a qual se baseia a vida no nosso planeta. Isto colocará pressões sobre a utilização de todas as outras fontes de energia — sejam elas o gás natural, o carvão, o nuclear e todos os tipos de renováveis, especialmente biocombustíveis. Isto acabará por afectar tudo debaixo do sol…
Tomemos, por exemplo, a população. Na era 'Pós Pico', o crescimento da população diminuirá gradualmente antes de estagnar (a seguir ao petróleo bruto) e passar o seu próprio Pico — minhas primeiras projecções mostram um 'Pico da população' a verificar-se em algum momento em torno de 2025 (um intervalo de vinte anos em relação ao petróleo) a um nível global de 7,5 a 8,0 mil milhões de pessoas. Há pouco dúvida de que o petróleo bruto é o nosso 'Dominó mestre': quando tem êxito todos os outros dominós florescem, e quando cai derruba também todos os outros. Assim, de forma curiosa, o 'Pico petrolífero' não conduz a uma revolução, mas ao invés disso a uma evolução 'em sentido contrário'.
Entretanto, agora o 'Peak oil' está no passado e nós actualmente enfrentamos a era 'Pós pico'. Há pouca dúvida de que neste novo período estão prestes a ocorrer mudanças maciças. A utilização de petróleo bruto relativamente barato invadiu todos os buracos e fendas da nossa moderna economia mundial — por vezes sem que a invasão esbanjadora seja plenamente percebida. Além disso, os ubíquos produtos petrolíferos criaram vícios (especialmente no sector do transporte) que serão extremamente difíceis de desenraizar. E não se trata apenas do vício em carros motorizados disseminado no mundo desenvolvido, pois ele também começou a efectuar profundas intrusões na China, na Rússia e mesmo na Índia: um desenvolvimento muito perigoso na verdade, porque, como observou correctamente o físico e poeta americano Oliver Wendell Holmes (1809-1894):
"A mente do homem, uma vez expandida por uma nova ideia,
nunca mais recupera as suas dimensões originais" [3]
Não são apenas os vícios que o declínio do petróleo bruto está a ameaçar mas, em última análise, o que Thomas Carlyle (1795-1881), o génio que se tornou historiador, denominou 'O sistema de hábitos' — o próprio tecido que serve de base à Sociedade:
"Sem um tal Sistema de hábitos… numa palavra, maneiras fixadas
de actuar e acreditar… A sociedade não existiria de todo.
Com eles ela existe, melhor ou pior. Aqui também, neste
Sistema de hábitos… jaz a verdade das Leis e dos Códigos e
da Constituição de uma Sociedade" [4]
No 'Pós pico', todos os nossos Sistemas de hábitos estão em perigo mortal. Devido à relativa barateza do petróleo bruto (em relação a outras necessidades diárias mais dispendiosas), as pessoas não percebem exactamente o papel essencial desempenhados pelos seus derivados na sua rotina diária — pois estes invadiram todos os nichos e desvãos da nossa vida moderna. Só quando os travões forem pressionados (como inevitavelmente terão de ser) é que o público em geral virá gradualmente a perceber a importância crítica do 'Ouro negro' — o qual actualmente proporciona não menos de dois quintos da energia mundial — e da 'Energia' em geral nos seus hábitos de vida.
Assim, actualmente, as massas globais parecem totalmente despreparadas para os dois choques que se verificarão inevitavelmente no 'Pós pico'. Por um lado, nenhuma grande instituição ou media está desejosa de informá-las seriamente acerca das não tão palatáveis consequências do 'Pós pico' e, por outro lado, as instituições especializadas – tais como a Agência Internacional de Energia [AIE], a Energy Information Administration [EIA] e a OPEP – bem como algumas grandes consultoras em energia (ex.: a Cambridge Energy Research Associates e a Wood Mackenzie com equipe de investigação em Edinburgh) continuarão a negar o 'Peak oil' através da emissão de previsões róseas quanto à futura produção do óleo.
De modo que os dois choques gémeos são agora inevitáveis a uma escala global, pois não há tempo suficiente para preparar a opinião pública para as sequelas do 'Pós pico'. Os choques primeiro surpreenderão, a seguir serão rejeitados e finalmente enredarão montes de pessoas por todo o mundo. Aqueles melhor preparados serão menos inclinados a reagir de um modo desordenado e ao pânico quando a verdade chocante for desvelada…
Exemplo: de acordo com a minha investigação pessoal, o país melhor preparado para enfrentar os choques 'Pós pico' parece ser a Austrália porque ali três grandes instituições mobilizaram-se para aumentar a consciência do público:
• A. A 'Australian Broadcasting Corporation' [ABC] — tanto nas suas redes de TV como de rádio — expuseram suas audiências ao fenómeno do 'Peak Oil' (tentando sempre permanecer imparciais com a apresentação tanto das visões pró como contra). Uma notável decisão da administração de topo da ABC que dentro em breve demonstrar-se-á ter sido muito sábia.
• B. O Senado australiano emitiu um 'Livro branco' sobre o assunto, e também uma pletora de esclarecidos ministros regionais, políticos e peritos (por vezes a actuar em conjunto em comités ad hoc) esforçaram-se por encorajar a difusão do paradigma do 'Peak oil' junto ao público em geral (com a Medalha de ouro indo claramente para o gabinete de ministros da 'Austrália ocidental').
• C. Os grupos de ONGs locais que têm estado activos desde 2003-2004 quando tomaram consciência do 'Pico' iminente, e desde então têm dado passos de gigante na preparação do seu público para os choques que estão a vir.
Mas, na grande maioria dos países, ninguém preparou (ou quis preparar) o público geral para o Evento histórico do 'Peak oil' e para as graves consequências do mesmo nas suas vidas diárias. Assim, mais provavelmente, as massas populares serão expostas directamente aos dois principais tipos de choque:
1- Um choque material;
2- Um choque psicológico.
Devido ao benigno declínio gradual na produção de petróleo bruto durante o primeiro período 'Pós pico' — apenas 3 mb/d ao longo do primeiro período que se estende até 2007-2010 — o Choque material não colocará problemas insolúveis e a acomodação será possível com o mínimo de sofrimento gradual. Além disso, quantidades apreciáveis de desperdício na maior parte das sociedades desenvolvidas proporcionarão um colchão bem vindo para os cortes iniciais a serem efectuados.
Não se passa o mesmo quanto ao Choque Psicológico. Este choque, em contraste agudo, será súbito e abrupto. Tensão, medo, depressão, desesperos e pesadelos estarão na ordem do dia — pois as pessoas verão de chofre as facetas não tão agradáveis do 'Pós pico'. Quando confrontadas com esta série de desconhecimentos, com o trauma da Mudança, as pessoas tentarão proteger-se a si próprias revertendo automaticamente para o seu passado, para o conhecido, para aquilo que acreditam ser "real e verdadeiro" — numa palavra, para a suas 'Raízes' reconfortantes…
Defino o conceito abrangente de 'Raízes' como uma mistura de tradições, língua, arte, festivais, monumentos, academias, museus, instituições, religião, crenças, lendas e mitos — e Deus sabe que os mitos são sempre infinitamente mais atraentes do que a realidade. Ou ainda, poder-se-ia dizer que 'Raízes' são:
"As excelências do passado que resistiram ao Teste do tempo".
Toda a sociedade viva sobre a Terra — seja numa comunidade, numa cidade, numa região, num país ou num continente — tem o seu próprio conjunto de 'Raízes' desordenadas. Algumas algo primitivas, algumas extremamente desenvolvidas. Curiosamente, há pouco correlação entre as 'Raízes' de uma sociedade e o status actual da 'Árvore' que elas suportam e alimentam — as anteriores estando no Passado, e as últimas no Presente. Mas, curiosamente, o Futuro virá a depender mais do Passado do que do Presente…
Logo, a atracção das 'Raízes' demonstrar-se-á irresistível, e ai daquelas sociedades que têm poucas ou nenhuma, e daquelas que tem algumas mas cortaram-nas (por exemplo: mudando suar língua ou seu alfabeto), e também daquelas que fracassaram em cuidar das suas valiosas 'Raízes' ao longo do tempo.
Alguns, como os belgas, já começaram o seu histórico 'Retorno às raízes' tentando viver na Idade Média (um período glorioso para o seu pequeno país quando os seus centros comerciais de Bruges e Antuérpia dominavam então o mundo). Na Bélgica, este retorno ao passado
"tornou-se uma paixão nacional… com grupos de entusiastas medievais
tais como a 'Ordem dos Hagelanders' e
os 'Gentsche Ghesellen' [Companheiros de Ghent] tendo
germinado ao longo dos últimos dois anos" [5]
Por todo o país, um número crescente de belgas "está a substituir os seus jeans por conjuntos de armadura… estão a friccionar pedras para fazer fogo, a comer os seus jantares em caldeirões, a representar batalhas heróicas… e, na sua vida medieval, a apreciar o valor de tudo o que fazem".
Na Europa, a Bélgica é apenas o topo do iceberg. Logo muitos outros se seguirão — países como a França, Alemanha, Espanha e Itália. Especialmente a Itália que é definitivamente o 'Número um' no mundo (a grande distância) pelas suas magníficas 'Raízes' — as quais atingem profundidades em todos os tempos e em quase todo domínio possível, com as Catedrais de S. Pedro (O Vaticano) e aquela de S. Francisco (O 'Porziuncola' na Basílica de Santa Maria dos Anjos, próximo de Assis) como dois dos seus Faróis únicos e universais.
Como de hábito, serão os génios que irão a mostrar o caminho conducente às 'Raízes' colectivas das suas nações. Faz sentido que Homens de excelência sejam aqueles que apontam para o passado de excelência. Como conseguirão fazer isso (através das principais instituições ao seu alcance) pode-se demonstrar de absoluta importância para o futuro bem estar da sua própria sociedade.
E vamos terminar com o veredicto passado por um dos grandes sábios do século XX, o pensador francês André Malraux (1901-1976), que prestou a maior homenagem possível às 'Raízes' ao adiantar que:
"Le seul monde qui vaille la peine d'etre sauve est le monde des statues"
["O único mundo que vale a pena salvar é o mundo das estátuas"]
Abril/2007
Referências
[1] Ver documento 'Peak Oil: The End of The Modeling Phase' (March 2007) no sítio web www.samsambakhtiari.com
[2] Tomando a ideia básica da expressão 'Ponto de inflexão estratégico' cunhado por Andrew Grove, o antigo administrador executivo da Intel (1987-1998) — no seu livro intitulado "Only the Paranoid Survive" (Doubleday, 1996). Citamos: "Um Ponto de inflexão estratégico é definido como: um momento na vida de um negócio em que os seus fundamentos estão prestes a mudar".
[3] 'Wikipedia' em http://en.wikipedia.org --- Oliver Wendell Holmes, Sr.
[4] Thomas Carlyle, "The French Revolution", (New York, The Modern Library, 2002) p.33.
[5] Dan Bilefsky, "Pining for power, modern Belgians return to the Middle Ages", no International Herald Tribune, April 3, 2007.
Samsam Bakhtiari
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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