Se quiser ver quão doentia é realmente a elite americana — quão moralmente depravada, quão intelectualmente enferma, quão viciada no gosto da carne humana, no cheiro do sangue humano e na visão do sofrimento humano — então tudo o que precisa fazer é ler o discurso de Mitt Romney na Conservative Political Action Conference (CPAC ) em 7 de Fevereiro de 2008.
Poderá dizer que Mitt Romney é notícia velha. Afinal de contas, este foi o próprio discurso em que declarou estar a abandonar a corrida presidencial. Ele está queimado, está ultrapassado, quem se importa com o que diz? Esta é naturalmente a visão tola da "corrida de cavalos" que domina o discurso político na América: quem está a subir, quem está a descer, quem está conseguir centímetros de coluna [nos jornais], quem aparece na TV? Mas, na realidade, a elite política americana — ou o Establishment, ou a estrutura de poder, chame a isto como quiser (desde que não chame o que ela realmente é: a classe dominante) — é como um iceberg: a maior parte do seu vasto volume permanece oculto, ela opera abaixo da superfície, sem ser perturbada pelas tempestades dos media que se enfurecem em torno de pequenos bocados de material expostos nas cimeiras.
Mitt Romney é um homem imensamente rico, bem conectado, um antigo governador do estado de Massachusetts, nascido e criado numa extensa teia de privilégios e poder. A sua derrota numa campanha presidencial não muda nada disto. Ele simplesmente submergirá — por algum tempo — naquelas profundidades onde são feitos os negócios reais da elite. Portanto, as suas palavras aos activistas conservadores constituem uma indicação altamente relevante da mentalidade que predomina no mais poderoso país do mundo. Elas mostram a barbárie, a incitação ao ódio e aos banhos de sangue que são considerados perfeitamente aceitáveis na companhia polida dos nossos dirigentes e dos seus sicofantas.
Na verdade, a coisa mais notável acerca do discurso de Romney é que não há nada de notável acerca dele; é totalmente típico da espécie de carne vermelha que muitos iluminados da sociedade americana atiram aos salivantes fieis da extrema direita. Requer um grande esforço libertar a cabeça da mentalidade dos media enlouquecidos que encaram um tal discurso como "normal" (mesmo que não concorde com ele), e vê-lo como a falsificação e a bestialidade delirante que realmente é.
O núcleo candente da oferenda vomitosa de Romney talvez possa ser encontrado nas suas observações de passagem sobre a Europa. Mais uma vez, num certo sentido, aquilo foi apenas um naco lançado para agradar a multidão: um bom eurogolpe sempre consegue que participantes do CPAC se ponham a espumar. Mas num sentido mais profundo, ele vai directo ao coração corroído da questão, directamente ao racismo vicioso, primitivo e genocida que moldou e conduziu tantas políticas das elites do ocidente ao longo de séculos. Em meio a uma longa diatribe acerca de "ataques" liberais à "cultura americana", Romney faz uma pausa para uma olhadela através do Atlântico, a fim de evocar um odioso pesadelo que poderia em breve ser o futuro da América.
A Europa está a enfrentar um desastre demográfico. Isto é o produto inevitável da enfraquecida fé no Criador, famílias fracassadas, desrespeito pela santidade da vida humana e moralidade corroída.
Por "desastre demográfico" Romney simplesmente quer dizer que há mais pessoas não brancas na Europa do que costumava haver. Para Romney e suas elites amigas, este facto constitui por si mesmo um genuíno "desastre". Embora a população da Europa ainda seja esmagadoramente branca (muito mais do que a população dos Estados Unidos), mesmo a mais mínima diluição da pureza racial no continente é para ser lamentada, condenada — e repelida. Aqui, naturalmente, Romney está a canalizar vendedores do medo como Martin Amis , Mark Steyn e Christpher Hitchens, cujo tremelicante pânico sexual frente às pessoas escuras de sangue quente e reprodução rápida seria cómico, se não fosse sinistro — e tão úteis para os fabricantes da guerra e os dominacionistas globais da elite dirigente.
Romney torna as entrelinhas sexuais e raciais muito claras nas suas observações acerca da perda de fé religiosa, moralidade corroída, etc da Europa. Os europeus estão simplesmente demasiado ocupados a fazerem abortos e a observarem pornografia para cumprirem o seu dever pela raça e procriarem grandes famílias mantidas sob estrita disciplina religiosa. E assim os pobres cidadãos estrangeiros de uma fé alienígena estão a procriar como ratos no celeiro da Civilização Ocidental, roendo as fundações e conquistando-a a partir de dentro. O facto de "muçulmanos" serem substituídos por "judeus" nestas formulações e implicações de Hitchens, Amis, Romney e outros não diminui a precisão com que as suas diatribes reflectem aquelas que saturaram a Alemanha (e muitos outros países) nas primeiras quatro décadas do século XX. Para as elites, há sempre um "outro" escuro, sexualmente potente, cuja esmagadora ameaça à supremacia branca só pode ser ultrapassada... dando às elites mais e mais poder.
Por incrível que pareça, tem havido um desastre demográfico na Europa — mas nada tem a ver com homens muçulmanos viris e suas férteis mulheres. Ele nunca é mencionado por Romney e os elitistas da sua laia — porque é o resultado da sua própria filosofia, das suas próprias políticas e dos seus próprios desejos. Falamos naturalmente do colapso demográfico da Rússia, onde a população está a minguar enquanto as taxas de mortalidade permanecem quase o dobro das dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. O povo russo ainda está a cambalear devido à catastrófica "terapia de choque" que lhe foi infligida pelos fundamentalistas do mercado da "Escola de Chicago" sob Boris Yeltsin. (Esta história assustadora é bem contada no estudo do "desastre do capitalismo" de Naomi Klein , The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism ).
As elites ocidentais ficaram muito felizes ao observar o povo russo a afundar, extinguir-se em massa e sofrer na pobreza, caos e medo — desde que uma fatia sumarenta da riqueza petrolífera, mineral e industrial estivesse à vista. O súbito desgosto do Ocidente para com o homem forte do Kremlin, Vladimir Putin, nada tem a ver com as suas famosas tomadas de posição quanto a liberdades civis. As depredações de Putin não são menos rudes do que aquelas de Yeltsin, o qual realmente enviou tropas e tanques em 1993 a fim de destruir o parlamento democraticamente eleito, e desde então tratou com arrogância todo vestígio de lei que restringisse o poder do Estado – e também do sector privado – a fim de assegurar uma vitória na sua candidatura à reeleição em 1996. Depois disso, ele expôs toda a economia ao saqueio predador dos seus apaniguados corporativos e dos seus aliados ocidentais. Foi o facto de Putin ter tirado muito deste saque da mesa dos ocidentais – e dado aos seus próprios apaniguados – que provocou a recém-descoberta preocupação do Ocidente para com os direitos e o bem estar do povo russo.
No seu canto do cisne, Romney torna claro que ele e as suas elites querem continuar a pressionar a sua "terapia de choque" também sobre o povo americano, repelindo as tímidas tentativas do passado de melhorar, ligeiramente, alguns dos piores excessos e desigualdades da insana cobiça corporativa. De facto, Romney identifica estas medidas tépidas como horrendas ameaças à própria "cultura americana".
A ameaça à nossa cultura vem de dentro. Na década de 1960, havia programas de bem estar que criaram uma cultura de pobreza no nosso país. Agora, algumas pessoas pensam que ganhámos aquela batalha quando reformámos o estado previdência (welfare). Mas os liberais não desistiram. A cada momento eles tentam substituir a responsabilidade individual por dádivas do governo. Eles combatem pelo esvaziamento das exigências de trabalho, por colocar mais pessoas no Medicaid e impedir cada vez mais pessoas de terem de pagar qualquer imposto sobre o rendimento. A dependência é a morte da iniciativa, da assumpção do risco e da oportunidade. A dependência é a morte da cultura. É uma droga. Temos de combate-la como veneno que é.
A ignorância — e desumanidade — desta declaração é de cortar o fôlego. Pense nisto: não havia pobreza nos Estados Unidos até que chegaram os "liberais" na década de 1960 e criaram-na com os seus programas de bem estar. (Aparentemente, antes desta "cultura da pobreza" ter sido criada, os poucos pobres na América simplesmente extinguiam-se discretamente, tal como os russos, ao invés de pendurarem-se um pouco mais nas esmolas do governo, do modo como fazem agora os preguiçosos e os desgraçados. Oh, sim, e eles reproduzem-se um bocado, mais do que os indivíduos brancos.) E ainda que Bill Clinton (desacreditado, naturalmente, mas a elite está bem consciente dos seus excelentes serviços) tenha acabado por liquidar o programa de bem estar, estes malfeitores ainda não estão contentes. Vejam simplesmente o que querem fazer: "colocar mais pessoas no Medicaid" e "impedir cada vez mais pessoas de terem de pagar qualquer imposto sobre o rendimento". (Um momento: pensei que os mastigadores de carne vermelha do CPAC eram a favor de o povo não pagar impostos. Imagino que isto só se aplica à espécie certa de pessoas.)
Tudo isto — especialmente a conversa cerca da "assumpção de riscos" e "dependência" das dádivas do governo — é muito bonito vindo de um ícone de uma classe dominante que está saturada de herdeiros amimalhados da riqueza e do poder os quais, como Romney, começaram as suas carreiras totalmente livres de risco até o topo extremo da escadaria, e que são continuamente engordados com contratos sem concurso, subornos, isenções fiscais, subsídios, lucros de guerra e miríades de outras formas de "dádivas do governo". Mas além da hipocrisia transparente — e da ridícula pretensão de que os "liberais" no Partido Democrático de hoje colocam alguma espécie de ameaça genuína a esta cornucópia — a rajada de Romney é uma síntese perfeita do ódio da elite para com a ralé que eles utilizam como carne de canhão e vacas leiteiras. Deixem-nos ficar doentes, deixem-nos morrer, deixem-nos vegetar na pobreza, deixem-nos perder os seus lares, deixem-nos trabalhar em três empregos para atender às suas necessidades — mas por Deus não façam qualquer coisa, qualquer coisa de todo, para mudar o sistema que produz estas desigualdades crónicas e mantém a elite amimalhada na riqueza. Eis o mal. Eis o "veneno". E isto não será permitido.
O discurso vai em frente por este caminho, lê-lo é como avançar através da tubagem do esgoto de um matadouro. A China, a Índia e outros países asiáticos apresentam um desafio que deve ser confrontado e vencido. Por que? Porque eles podem "ultrapassar-nos como super-potência económica, assim como nós ultrapassámos a Inglaterra e a França durante o último século". E devemos travar os diabos amarelos, porque "a prosperidade e a segurança dos nossos filhos e netos depende de nós". Aparentemente, não é possível aos países asiáticos e os Estados Unidos estarem seguros e prósperos ao mesmo tempo; "nossos filhos" só podem prosperar a expensas de outros. Isto também é transparentemente ridículo, mesmo sem sentido, se assumido literalmente. Naturalmente, asiáticos e americanos comuns poderiam estar prósperos ao mesmo tempo. O que Romney realmente quer dizer é que a elite americana não pode exercer domínio e empanturrar-se da maneira a que se habituou se outros países estiverem seguros e prósperos pelos seus próprios méritos.
E é aqui que a "Guerra ao terror" – o eixo do discurso de Romney e a justificação que ele apresenta para a sua campanha – entra em cena. A Guerra ao terror é simplesmente uma extensão do objectivo de sempre da elite americana (e seus "parceiros júnior" britânicos) de manter e estender seu domínio sobre os recursos naturais do mundo e as suas disposições políticas – e os lucros exorbitantes que este domínio produz. Há provas amplas no registo histórico das contínuas – e bastante abertas — ansiedades da elite sobre estes resultados, que remontam a gerações. Literalmente, milhões de pessoas por todo o mundo foram sacrificadas a estas ambições e ansiedades, as quais não foram reduzidas mas cresceram mais furiosamente e a cada ano.
E daí o clímax da peroração de Romney: um frenesim total quanto à "má e radical jihad" e "as inevitáveis ambições militares da China" e a candente necessidade de "aumentar as despesas militares para 4 por cento do nosso PIB" e o imperativo prioritário de manter a enorme Guerra ao terror, particularmente na sua frente central no Iraque. Nada disto está remotamente ligado ao bem estar real, à segurança e à prosperidade do povo americano, muito pelo contrário. Contudo, isto é absolutamente vital para a preservação do poder, do privilégio, da auto-imagem e do status da elite. E, como eles demonstram dia após dia, pouco se importam com quantas pessoas devam morrer ou sofrer por isto.
Trata-se de uma psicose moral numa escala monumental. Ela constitui o repúdio completo e absoluto de todo ideal civilizado, de todo fragmento de iluminismo arrancado do amontoado de escórias empapadas em sangue da história humana. Mas isto passa por normalidade no nosso discurso político.
Chris Floyd
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
Sem comentários:
Enviar um comentário