domingo, março 30, 2008

7 Mitos sobre o ensino e os professores

Por estes dias, o discurso a respeito do ensino e dos professores que predomina entre os fabricantes de opinião com conta aberta nos jornais tem premido uma série de teclas, delas extraindo um som invariavelmente monocórdico. É um discurso pobre, todo assente em preconceitos e lugares-comuns que, à força de circularem com a regularidade das marés, acabam por cristalizar em mitos. Talvez a designação mitológica seja excessiva para matéria tão escassa. Mas, na verdade, estas trivialidades acabam por adquirir uma espécie de vida própria, aspirando a influenciar a visão do grande público com a arrogância daquelas “evidências” que se furtam permanentemente ao exame crítico. É por isso que importa sujeitá-las a um esforço de desmontagem, embora sabendo que, qual escalracho irritante, elas acabarão sempre por reaparecer. A estupidez do preconceito, sabemo-lo, é uma hidra teimosa, dotada daquela “firmeza de propósitos” que os fiéis da ministra tanto lhe elogiam. Entreguemo-nos, pois, à tarefa crítica, com o cepticismo de sabermos que, desgraçadamente, o bom senso não é a coisa mais bem distribuída do mundo.

1.º mito: Até há pouco tempo, os sindicatos de professores controlavam o Ministério da Educação.
De acordo com este mito, os sindicatos de professores há muito que vêm dominando o Ministério da Educação, impondo às políticas educativas uma agenda toda direccionada para a férrea protecção das “regalias corporativas” de uma classe profissional basicamente composta por preguiçosos e absentistas. Independentemente de esta acusação ser ofensiva para a grande maioria dos profissionais dedicados e competentes que trabalham no ensino e de a mesma se inscrever nas trivialidades anti-sindicais, tão ao gosto da conversa neoconservadora dos nossos dias, está por demonstrar o seu fundamento. Se os sindicatos de professores detiveram semelhante influência sobre o Ministério, eu e tantos outros docentes gostaríamos de ter visto isso traduzido na melhoria da nossa condição salarial – que não é propriamente elevada –, na melhoria das nossas condições de trabalho em escolas mal equipada, com turmas e espaços sobrelotados, e, já agora, no reconhecimento pela tutela da relevância social dos professores dos ensinos básico e secundário. Um reconhecimento não apenas retórico mas efectivo, apostado em dotar os professores dos meios de autoridade pedagógica. Em mais de vinte anos de actividade lectiva, nunca senti, da parte dos sucessivos responsáveis pela pasta da Educação, qualquer sinal nesse sentido. Gostaria, pois, que me mostrassem em que consistiu esse enorme poder dos sindicatos no sector do ensino.

2.º mito: As manifestações contra o Ministério são uma conspiração dos sindicatos.
Um mito resultante de miopia analítica ou de uma percepção muito selectiva. Acontece que os protestos das últimas semanas não partiram de estruturas organizativas formais. Eles têm sido uma expressão espontânea do descontentamento generalizado dos professores, do seu cansaço em relação a uma equipa ministerial que os desautorizou, menosprezou e culpabilizou sistematicamente na praça pública, apontando-os como bodes expiatórios de tudo o que está errado no sistema educativo. Se há algo de relevante nessas manifestações e na emergência de novos movimentos de professores é justamente o facto de não participarem dos quadros institucionais já conhecidos e de escaparem, por isso, às categorias com que políticos, opinadores e jornalistas costumam analisar as iniciativas da sociedade civil. É também por isso que tais movimentos são tão perturbadores para os poderes estabelecidos.

3.º mito: Os professores têm andado em roda livre, sem prestar contas a ninguém, e é agora esta ministra que os vai pôr na ordem.
Os comentadores que difundem este mito não têm, obviamente, a mais pequena ideia do que se passa nas escolas. Se existe profissão sujeita ao escrutínio público, essa é a da docência. Desde logo porque os professores estão expostos ao olhar e ao juízo crítico dos alunos, que são muitas vezes uma plateia pouco caridosa. Por via dos alunos, os professores são igualmente escrutinados pelas famílias. A mera possibilidade de se apresentar recurso de uma classificação atribuída e a obrigação de os professores justificarem fundadamente a sua avaliação deveriam sugerir que esta profissão está muito longe de ser a “alegre balda” pintada pela ignorância de muitos opinadores. Acresce a isto que as escolas desenvolveram mecanismos de planificação das actividades lectivas e instrumentos de registo – toda uma panóplia de papelada burocratizada – que servem para enquadrar apertadamente aquilo que os professores andam a fazer nas aulas. Mais uma vez, os opinadores e os jornalistas que alimentam este mito deveriam fazer um estágio prolongado nas escolas.

4.º mito: Os professores são os principais culpados dos maus resultados escolares dos alunos.
Para os resultados escolares dos alunos contribuem diversos factores que se articulam entre si numa geometria complexa: a qualidade do ensino ministrado pelo professor, claro está, mas também o empenhamento dos alunos, a sua preparação anterior, o acompanhamento levado a cabo pelas famílias, a irrisão descontraída e distraída enquanto padrão dominante de uma cultura “juvenil”, e, acima de tudo, as políticas educativas do Ministério. Este quarto mito contempla apenas a primeira variável como se dela dependesse exclusivamente o resultado atingido pelos alunos. Tal concepção surge, de resto, em perfeita sintonia com a forma como os responsáveis do Ministério da Educação se desresponsabilizam sistematicamente pela situação do ensino em Portugal, centrando toda a responsabilidade nos docentes ao mesmo tempo que eliminam demagogicamente as famílias e os próprios alunos do cenário que explica as taxas de abandono e os fracos resultados escolares, estes últimos mais notórios no secundário. Será preciso repetir, pela enésima vez, que tais resultados derivam, acima de tudo, das várias “reformas” dos programas e das estruturas curriculares, bem como da pressão que o Ministério foi fazendo sobre os professores, especialmente nos ciclos da escolaridade obrigatória, para que os alunos tivessem uma progressão praticamente assegurada, sem esforço e sem a consolidação de aprendizagens básicas? E será preciso insistir, de novo, que apesar disso muitos professores têm procurado resistir a esse abastardamento do nível de exigência?

5.º mito: Os professores nunca foram avaliados.
Uma das mistificações que a tríade ministerial tratou de pôr no ar, e que uma comunicação social desinformada reproduziu, foi que os professores sempre tiveram uma progressão automática na carreira, sem serem, por conseguinte, submetidos à avaliação do seu desempenho. É espantoso que, depois de tantos docentes e responsáveis sindicais terem desmontado esta falsidade, ainda haja quem continue a repeti-la. Para memória futura, fica aqui então registado, uma vez mais, que o antigo Estatuto da Carreira Docente condicionava a progressão na carreira à apresentação de um relatório em que o professor analisava o seu desempenho no período sujeito a avaliação. Para além disso, estavam os professores obrigados à frequência de acções de formação para a obtenção de créditos em número proporcional aos anos de permanência no escalão da carreira. Todos os que se recusaram a frequentar tais acções ficaram, pura e simplesmente, estacionados no escalão em que se encontravam. Finalmente, também é falso que este modelo de avaliação não distinguisse o mérito: as classificações de Bom e de Muito Bom estavam previstas no anterior Estatuto para quem as solicitasse, embora, na verdade, nunca fosse regulamentado o efeito que a última dessas classificações poderia ter para a progressão da carreira. Era este sistema de avaliação insuficiente ou mau? Poderia ser melhorado? A minha resposta a estas perguntas é afirmativa em ambos os casos. Sublinhe-se, porém, que não foram os professores a escolher semelhante sistema.

6.º mito: As “reformas” agora impostas pelo Ministério vão corrigir os males do sistema educativo, nomeadamente o peso do “eduquês”. Este é o mito mais falacioso, mas nem por isso menos propagado. Para o refutar, basta pegarmos no modelo de avaliação dos professores, esse que agora está no centro da contestação. Nada nele rompe com o tal “eduquês” predominante no Ministério da Educação. E dificilmente poderia fazê-lo, porque Valter Lemos, um dos agentes principais da actual equipa ministerial, é um produto directo dessa ideologia educativa importada de Boston. As grelhas de avaliação que o Ministério elaborou dizem tudo (e deveriam ser de leitura obrigatória para os opinadores mais fanáticos na devoção que dedicam à actual ministra). Para além de forçarem os avaliadores a correr permanentemente atrás dos colegas e a controlar os seus mais ínfimos gestos de forma a preencherem os cerca de vinte itens de avaliação, essas grelhas contêm critérios que, longe de serem pacíficos, pretendem na verdade impor um único formato de docência. Um desses itens, a “correcção científico-pedagógica”, dificilmente terá em conta a pluralidade das práticas pedagógicas e a própria existência de uma disputa, provavelmente insanável, em torno dos modelos de pedagogia, uma disputa que deveria levar a reconhecer serem estes apenas ideologias do ensino, problematizáveis e discutíveis enquanto tal. É de recear que, pelo contrário, se procure ditar um único modelo pedagógico e, consequentemente, se vise punir os professores que se desviem do mesmo, isto é, que façam prova de ser “pedagogicamente incorrectos”. Este modelo de avaliação pode vir a revelar-se um poderoso instrumento de pressão para que docentes mais inconformistas se deixem formatar pelo canto de sereias das “novas pedagogias”. Deste modo, e porque haverá infelizmente avaliadores que se prestarão a esse serviço, o “eduquês” triunfará em toda a linha, esmagando aqueles que no interior do sistema educativo têm conseguido opor-lhe alguma resistência. Um resultado diametralmente contrário àquilo que Madrinhas, Monteiros e Tavares julgam descortinar nestas “reformas” ministeriais.

7.º mito: A defesa da escola pública obriga a reconhecer que ela já é o melhor dos mundos possíveis.
Até aqui, comentei mitos sobretudo sustentados por comentadores de direita, mais ou menos convertidos a um ideário neoliberal ou neoconservador. Mas o actual combate dos professores também tem sido vítima de equívocos à esquerda. O mais pernicioso de todos é a ideia de que defender a escola pública equivale a admitir que os seus trinta anos de existência democrática são uma história repleta de sucessos, que não nos devemos envergonhar de tudo o que foi alcançado, que os alunos saem hoje da escola com muito mais conhecimentos e que afirmar o contrário é fazer profissão de fé reaccionária. As ilusões piedosas da esquerda relativamente à catástrofe do ensino em Portugal são uma das variantes daquela atitude que consiste em enterrar profundamente a cabeça na areia. E em não assumir que a gritante impreparação da esmagadora maioria dos jovens à saída do secundário se deve, em grande parte, ao inferno resultante das melhores intenções igualitaristas e inclusivas que uma certa esquerda procurou introduzir, da pior maneira, no sistema educativo. Só quem não trabalha no ensino se permite ignorar o facto de hoje a média dos adolescentes manifestar uma ignorância descontraída em relação à história remota ou recente do seu país e do restante mundo, ser incapaz de elementares operações de cálculo aritmético sem o auxílio de um qualquer substituto mecânico do cérebro, não conseguir escrever duas frases com um mínimo de inteligibilidade e de erros ortográficos, sofrer agonias para interpretar um texto com alguma densidade teórica e argumentativa.É preciso explicar a uma certa esquerda que a exigência e o rigor no processo de ensino e de aprendizagem não são reaccionários, que reaccionário é fazer acreditar aos grupos sociais desfavorecidos que terão tanto sucesso escolar como os outros se forem avaliados com base em padrões de qualidade muito menos exigentes e desafiantes, que reaccionário é alimentar a ilusão de uma escola falsamente emancipadora ao permitir que crianças e jovens daqueles grupos nela ingressem sem, ao mesmo tempo, lhes serem facultados os instrumentos cognitivos indispensáveis a uma efectiva emancipação, com isso contribuindo para perpetuar as assimetrias onde se forjam as condições de uma subalternidade opressiva. É preciso explicar a uma certa esquerda que uma escola pública genuinamente inclusiva não abdica da sua exigência, sabendo que só esta pode dotar os jovens dos meios intelectuais de emancipação social. E é preciso explicar-lhe que não compete à escola a correcção de assimetrias sociais cujas raízes ultrapassam em muito o sistema educativo e que têm de ser combatidas dentro da escola, sim, mas sobretudo fora dela. É preciso explicar, enfim, que a escola não é a grande panaceia, nem o supremo instrumento de um qualquer megaprocesso de engenharia social. Exigir à escola o que ela não pode nem deve dar é contribuir para acrescentar mais frustração ao desencanto que nela se acumula em proporções crescentes.
Mário Machaqueiro
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