Com conteúdos e qualidade muito diversos, as medidas
de política educativa do actual Governo manifestam, em
qualquer caso, um princípio unificador bastante
preciso: retirar direitos ("privilégios", no
entendimento dos responsáveis governamentais), poder e
auto-estima aos professores dos ensinos básico e
secundário. Intrigado com esta estranha coerência,
terminava José Gil a sua coluna na Visão de 21 de
Fevereiro com a seguinte interrogação: "Nisto tudo,
porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento
contra a figura do professor?"
Procurando contribuir para responder à pergunta, direi
que a atitude governamental em causa, para se poder
apresentar com tanta convicção e coerência, teve de
basear-se em alguns equívocos, que passo a tentar
enunciar.
Um primeiro equívoco consiste em admitir que a
sociedade portuguesa oferece aos jovens condições
homogeneamente favoráveis de acesso e de
relacionamento com a escola, tornando por isso fácil e
padronizável a acção pedagógica. Partindo deste
equívoco, o corolário político extraído pela actual
equipa ministerial foi o de que os alegados maus
resultados obtidos no sistema educativo português são
directamente imputáveis aos seus protagonistas mais
salientes: os professores e os órgãos de gestão das
escolas.
A verdade é que, para sustentar tal posição, é preciso
acreditar que: a sociedade portuguêsa não é marcada
por fortes desigualdades económico-sociais; é
estatisticamente irrelevante a proporção de crianças e
jovens a viverem em situação de pobreza ou em famílias
com horizontes de emprego precários; não há défices
de instrução e de literacia muito elevados entre a
população adulta, portanto entre os pais de muitos
alunos que hoje frequentam a escola; não há falta de
tempo nem de preparação de muitos encarregados de
educação para o acompanhamento escolar dos filhos; não
há espaços residenciais estigmatizados nem formas de
socialização desviantes a eles associadas; não há
diluição de factores de motivação para o trabalho
escolar induzidos pelo consumismo e por ilusões de
ascensão social difundidas no campo dos media e das
indústrias culturais e de lazer; não há carências nem
falta de coordenação entre instituições de apoio
social às populações e grupos escolares mais
desfavorecidos; não há desmotivação dos jovens para o
prosseguimento de estudos por falta de perspectivas
profissionais valorizadoras das aprendizagens
escolares; não há pressão para a saída precoce da
escola em direcção a postos de trabalho precários e
muito pouco qualificados (em Portugal ou até em
Espanha); etc.
O segundo equívoco é, em grande medida, urna
projecção do primeiro no modo de conceber o
quotidiano concreto das escolas e desdobra-se, também
ele, em múltiplas crenças: os equipamentos escolares
têm sempre grande qualidade; as turmas reais têm a
dimensão que lhes atribuem as "médias" oficiais; é
estável, transparente e coerente a malha de
regulamentação das actividades lectivas de iniciativa
governamental (raramente avaliadas, aliás) a que os
professores têm de se adaptar; não há alunos com
dificuldades acumuladas nas turmas; há acompanhamento
permanente a esses alunos por parte de equipas
pluridisciplinares devidamente preparadas e estáveis;
há muito tempo disponível no horário dos professores
para se relacionarem com os colegas, para prepararem
conscienciosamente as aulas e para se encontrarem
consigo próprios no quadro de estratégias de
autoformação consistentes e estimulantes; a sala de
aula é um espaço de transmissão da mensagem pedagógica
sem resistências nem dissidências por parte dos
receptores, e onde a indisciplina é pontual e
passageira; não há sofrimento nem forte incidência de
burnout entre os docentes; etc.
Assumidas estas ficções sobre a sociedade portuguesa e
as suas escolas concretas, basta que se assuma também
o pressuposto (individualista/subjectivista) segundo o
qual a acção dos professores depende exclusivamente de
qualidades e intenções que lhes são "próprias", e não
sobretudo, como acontece na prática social em geral,
da estrutura de limitações e oportunidades com que se
confrontam - basta que se assumam aquelas ficções e
este pressuposto para se começar a acreditar, e depois
a jurar, que os problemas da escola portuguesa começam
e acabam na inabilidade, preguiça, "corporativismo",
desleixo, desinteresse dos professores,
responsabilizando-os publicamente por isso.
Foi esta a armadilha intelectual em que se deixou cair
a equipa ministerial, quase desde o momento em que
iniciou funções. Daí à hostilização sistemática dos
professores, habilmente mediada pelo ataque às suas
estruturas sindicais, não foi senão um passo. (...)
Numa altura em que os teóricos da organização e
gestão empresarial defendem cada vez mais a
importância do envolvimento e participação criativa
dos trabalhadores (encarados como actores
"reflexivos"), desconfiando dos que teimam em
racionalizar e controlar os comportamentos no espaço
do trabalho sem ter em conta a pluralidade e riqueza
das suas dimensões humanas, a obsessão "gestionária"
do Governo no modo de conceber a actividade docente
(actividade relacional por excelência) tem o seu quê
de anacróníco - e pode vir a ter consequências muito
negativas, se não forem revistas alguns dos seus
fundamentos e modos de concretização.
José Madureira Pinto
Sociólogo; professor da Universidade do Porto
(inicialmente publicado na edição de Domingo, 9 de
Março de 2008, no Público)
http://www.snesup.pt/htmls/EkpVFkkZFVYtBZYsjF.shtml
Sem comentários:
Enviar um comentário