segunda-feira, março 24, 2008

A dicotomia entre “escola pública de massas” e um ensino secundário que seria ainda, supostamente, uma “escola de elite”

Devo dizer que discordo totalmente da forma como se coloca o problema, criando uma dicotomia entre “escola pública de massas” e um ensino secundário que seria ainda, supostamente, uma “escola de elite”. Acontece que o ensino secundário está hoje tão massificado como o da escolaridade obrigatória, e que muitos dos problemas que afectam o segundo destes níveis de ensino já desaguaram abundantemente para o ensino secundário. Por outro lado, a conversa sobre a “diversidade” e o passar uma esponja por cima da questão da “culpabilização” são já pretextos requentados para perpetuarmos a perspectiva sociologista na qual nunca existem responsabilidades individuais: é tudo uma questão de “factores” e de “condicionantes sociais”, em nome dos quais se pode sempre absolver quaisquer comportamentos que, em última instância, são epifenómenos de causas que os transcendem. Um bocadinho mais, e estamos em plena vitimologia: só há vítimas, só há coitadinhos. A aluna malcriada e violenta que agride a professora é só mais uma “vítima” da sociedade. E é preciso, claro está, “compreendê-la”. Pois é. São os deterministas de todas as cores (e a esquerda, “hélas”, está cheia deles) que em grande medida nos conduziram ao beco onde estamos mergulhados, acreditando que o ser humano é bonzinho, sendo a malandra da sociedade que o corrompe (ao que apetece perguntar: e quem corrompe a sociedade?). Os nossos jovenzinhos estão cheios de potencial; as malvadas das “condições sociais” é que os tornaram assim: não uns energúmenos a quem se deve dar um par de tabefes, mas uns coitadinhos que representam a “diversidade social” que a escola deve acolher. Mais uma coisa. A questão da autoridade do professor. Ela ultrapassa, de facto, o mero espaço da escola. A erosão da autoridade do professor decorre de uma situação geral em que a própria ideia de uma autoridade decorrente da posse de um saber foi totalmente desvalorizada ou, como alguns diziam há pouco tempo, “descanonizada”. Há pouco tempo também se chamava a isso “condição pós-moderna”. Essa tal descanonização dos saberes significa, basicamente, despromover a velha ideologia “iluminista”, contrapondo-lhe um nivelamento descontraído que proíbe a destrinça entre ignorância e o saber e que prolonga a diluição relativista da “alta cultura” no “todo cultural”. Os alunos, tanto os da escolaridade obrigatória como os do secundário, são hoje filhos desse processo e têm, portanto, uma dificuldade acrescida em reconhecer ao professor qualquer autoridade. Mas a resposta para isto não pode ser “mais do mesmo”. Uma escola decididamente emancipatória é uma escola que se constitui como lugar de resistência à imbecilização colectiva. E essa resistência passa por criar mecanismos de reabilitação da “autoritas” do professor. Passa, entre muitas outras coisas, por fazer compreender aos alunos e às respectivas famílias que nem tudo é igual e que não estamos todos ao mesmo nível. Passa por fazer compreender que, no espaço da democracia, nem tudo é negociável. Passa por sermos capazes de pensar as dimensões não-democráticas que necessariamente se inscrevem na democracia. Pois nem toda a autoridade pode e deve ser partilhada, nem todas as decisões podem e devem ser objecto de negociação, e nem todos os indivíduos podem deter autoridade sobre qualquer assunto. Esta concepção que, de facto, é não-democrática, atravessa no entanto o exercício da democracia. E por uma razão muito simples: nenhum sistema – mesmo a democracia mais participativa possível – funciona sem hierarquização de funções, sem uma distinção mínima entre instâncias de comando e instâncias de execução, havendo uma multiplicidade de contextos em que a distribuição das funções só resulta se for relativamente irreversível e desigual. E esta é uma situação que nenhuma denúncia foucaultiana das relações entre saber e poder consegue rasurar. Tenho para mim como evidente que o processo educativo constitui o exemplo do que acabei de referir. A sua dimensão disciplinadora tem de começar por ser imposta antes de ser auto-interiorizada. E só mais tarde ela poderá ser objecto de avaliação, de problematização e de negociação. Muitos pedagogos pensam que democratizar a relação pedagógica exige o fim da desigualdade de poder entre professor e alunos, substituída por uma relação de “simetria” e de “reciprocidade”, assente na “partilha” e numa permanente “negociação” da autoridade. Mas esta reivindicação confunde autoridade com autocracia e não reconhece a dimensão de coacção que está presente em toda a experiência educativa. Se alguma coisa aprendi na minha experiência docente foi justamente isto: que é na base das tensões resultantes da desigualdade entre professor e alunos que a relação pedagógica se pode construir e tornar-se produtiva. O nivelamento da autoridade não favorece a emancipação dos alunos ou a sua autonomia: apenas os desorienta. Pelo contrário, a autonomia cria-se no confronto criativo com a autoridade. E este é um tema comum a qualquer nível ou ciclo de escolaridade. Não perceber isto é não perceber o que é ser professor. E se as exigências inerentes ao exercício da autoridade docente forem impossíveis de preencher no contexto actual, então o melhor é fecharem as escolas ou darem-lhes outro nome.
Mário Machaqueiro

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