domingo, março 30, 2008

Este é um ciclo de progresso da barbárie e da naturalização da violência com a permissão da nossa indiferença

Em nome da eficiência, da competitividade, da produção de bens mais acessíveis e baratos, do sagrado equilíbrio orçamental, da concorrência, do crescimento económico, da produtividade e da outra verborreia que todos conhecem, continua a ser destruído, de forma cada vez mais acelerada, o modelo social europeu. Em vez da civilização substituir gradualmente a barbárie em todo o mundo é esta que retoma o lugar daquela.

A direita sempre assumiu a desigualdade como forma de motivar o crescimento económico. Sempre acreditou que o que faz mover o ser humano é o egoísmo e não a auto-estima e o prazer. Sempre prometeu para o futuro as delícias do paraíso, em troca das penas do inferno no presente. Para suavizar a exploração dos pobres invocou sempre o nome de Deus e a miséria da condição humana. Não estranho que numa conjuntura que lhe é socialmente favorável tenham levado a violência e a exploração do capital aos escandalosos extremos do neoliberalismo. Como é regra da História, chegará o momento em que o lacrau sentirá que levou longe de mais as suas contradições e morder-se-á a si mesmo.

Os socialistas e afins são por todo o lado um caso que dá nas vistas. Seduzidos pela partilha do poder e sem qualquer ideia de melhoria da condição humana, aninharam-se no regaço das políticas mais reaccionárias da conjuntura. E, sabe-se, não há maior entusiasmo e fervor do que aquele que resulta das deserções e das paixões tardias. Mesmo o que restava duma espécie de esquerda socialista deixou de ser socialista quando foi chamada a partilhar a contagem dos dinheiros do Estado com a sua mãozinha esquerda.

Neste contexto, a comunicação social desempenha maravilhosamente a função, que já foi competência da Igreja, de preparar as consciências, e as almas, para aceitarem as doutrinas do poder dominante. As leis e os caminhos do Senhor foram substituídos pelas leis e caminhos do mercado. Noutros tempos, a Igreja criou bruxas, hereges e demónios, excomungou o Belzebu, o tinhoso, acendeu fogueiras, queimou, deu espectáculo e manteve o povo numa conveniente ignorância. Hoje, a comunicação social escolhe, cria, engorda e queima diabos na praça pública, ao sabor dos interesses dominantes, depois vende o espectáculo e com ele estabelece as convenientes fronteiras da ignorância popular.

Assim alienado, o povo aceita e até se sente participante e democrata. Aplaude as mais infames formas de violência, com a naturalidade com que muitos dos nossos antepassados aceitaram a queima de bruxas e de hereges na fogueira.

Nesta sociedade onde tudo se transforma em mercadoria, tudo é efémero. Os gestores do pensamento popular criam em nós o vazio a ser preenchido com a mercadoria da moda. Este é o mês do Natal, o da festa dos comerciantes. O frenesim da troca de mercadorias, com crianças por pretexto, aprofundará em nós o vazio para que notícias como as que se seguem passem por nós sem nos tocar. Os malabaristas das finanças julgam que tudo se pode e deve transformar em mercadoria, em dinheiro, dos testículos à alma dos homens. Os princípios do mercado e os seus gestores são cada vez mais os gestores das políticas e das práticas comunicacionais. As leis do mercado não são mais do que a lei dos mercadores.

1. A junta militar birmanesa recruta crianças para servir no Exército, comprando e retirando à força meninos a partir dos 10 anos de idade às suas famílias. Uma criança contou que foi obrigada a alistar-se aos 11 anos, apesar de medir apenas 1,30 m de altura e pesar menos de 31 quilos.

2. A roupa da gama infantil da Gap (Gap Kid) a ser vendida no período de Natal, é confeccionada por milhares de crianças de apenas 10 anos, numa fábrica da Índia.

3. Trinta e cinco mil crianças são exploradas sexualmente pela indústria de turismo colombiano. A exploração é incentivada dada a procura por parte dos turistas estrangeiros.

4. Um milhão e meio de crianças são obrigadas a trabalhos forçados no Cambodja onde as fábricas estão submetidas a uma violenta competitividade.

5. A filha de Boris Becker, de 7 anos, foi acusada de trabalho ilegal. A empresa Alessandro Girls, que a contratou como modelo, durante uma hora, foi condenada a pagar uma multa de 1.315 euros.

6. A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos não conseguiu impedir o veto do presidente George W. Bush a um projecto de lei que dava cobertura de saúde a pelo menos 6,6 milhões de crianças pobres. Os democratas acusaram Bush de não se preocupar com a saúde das crianças.

7. A polícia boliviana vai investigar como crianças são vendidas ou alugadas pelos seus pais para que realizem trabalhos agrícolas em aldeias localizadas na fronteira com o sudoeste peruano. Há informações de que pais bolivianos, desesperados pela pobreza, vendem os seus filhos por cerca de 30 euros ou alugam-nos ao mês por cerca de 4 euros para trabalharem em aldeias do Peru.

8. Os serviços de emergência americanos estão muito mal preparados para socorrer as crianças, revela um estudo. Esta falta de preparação ignora «acontecimentos recentes que deixaram muitas vítimas, entre as quais vítimas pediátricas». O estudo lembra que uma creche foi atingida pelos atentados de Oklahoma City, em 1995, e menciona também tiroteios em várias escolas como o que deixou 15 mortos em 1999 em Columbine.

9. Centenas de crianças asiáticas, escravizadas, entram ilegalmente na Grã-Bretanha para trabalhar em plantações de cannabis. Este fenómeno terá sido multiplicado por cinco no último ano. Organizações criminosas levam para a Grã-Bretanha crianças, muitas delas procedentes do Vietname, os mais novos com 13 anos, para trabalhar como escravos e aumentar o recorde na produção de drogas. As crianças trabalham em casas dos subúrbios ingleses, até ao limite da resistência, dormindo em caixas de papelão, sem possibilidades de fuga.

10. O cabo Humberto Mendoza contou que após a explosão de uma bomba numa estrada próxima de Hadiya [Iraque], que matou um marine, o sargento Wuterich ordenou que o seu grupo atirasse contra todas as casas. Horas após a explosão da bomba o sargento Wuterich determinou que se atirasse também sobre qualquer pessoa que abrisse a porta. «Ele disse: só esperem que a porta abra e atirem». Dentro de uma casa, Mendoza disse que recebeu ordem para atirar contra sete mulheres e crianças que estavam escondidas num quarto: «Quando abri a porta, havia apenas mulheres e crianças (...) pareciam assustadas e recusei-me a disparar». Momentos depois, quando estava diante da casa, Mendoza ouviu fortes disparos e quando voltou ao quarto, encontrou todas as mulheres e crianças mortas.

11. Duas crianças palestinianas morreram e outras duas ficaram feridas atingidas por disparos israelitas em Jabaliya, na Faixa de Gaza. Yahya Ramadan Ghazal, de 12 anos, e o seu primo Mahmud Musa Ghazal, de 10, morreram enquanto brincavam num campinho perto da sua casa. Uma das suas primas, Sara Suleiman Ghazal, de 9 anos, ficou gravemente ferida e foi internada. Após o assassínio de crianças é costume o exército israelita alegar que estas são usadas para ir recolher lança-foguetes após dispararem contra eles.

“Santo Natal”. “Festas felizes”. É tudo tão natural, não é? Ainda bem que fazemos parte dos povos religiosos e civilizados do ocidente. Já viram o que seria se pertencêssemos à barbárie africana, asiática, latino-americana ou muçulmana?
José Paulo Serralheiro
http://infoalternativa.org/mundo/mundo274.htm

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